Quem foi Hipólito da Costa, jornalista que sonhou com império luso-brasileiro sediado na América

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Isabel Lustosa

Pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa e autora dos livros "Insultos Impressos: a Guerra dos Jornalistas na Independência" (Companhia das Letras, 2000) e "O Jornalista que Imaginou o Brasil: Tempo, Vida e Pensamento de Hipólito da Costa" (Editora da Unicamp, 2019)

[RESUMO] Personagem marcante no processo de emancipação do Brasil, Hipólito da Costa defendeu no jornal Correio Braziliense, fundado por ele em 1808, o projeto de um grande império luso-brasileiro com sede na América, sob a forma de uma monarquia constitucional que modernizasse as instituições. Desdobramentos da Revolução do Porto, em 1820, enterraram o sonho de união, levando Hipólito a aderir à Independência.

O brasileiro que, por meio de seus escritos, mais contribuiu para a Independência do Brasil não queria que o país se separasse de Portugal.

Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, ou simplesmente Hipólito da Costa, personalidade da ilustração luso-brasileira, desejava mesmo era que os dois reinos continuassem unidos, se engrandecendo mutuamente, confirmando o sonhado projeto de um império português com sede na América.

Hipólito José da Costa, fundador do jornal Correio Braziliense e um dos pioneiros do jornalismo brasileiro - Reprodução

Esse foi o motivo pelo qual ele lançou em 1808 —e manteve até 1822— um jornal que, apesar de impresso em Londres, onde vivia, era escrito em português. O Correio Braziliense se destinava aos leitores do país em que Hipólito depositava o seu sentido de pertencimento.

Na verdade, ele nem sequer tinha nascido no que hoje consideramos o território brasileiro. É originário da Colônia do Sacramento, na Cisplatina, região objeto de disputa entre Portugal e Espanha. Pertencia aos portugueses em 1774, quando Hipólito nasceu, e voltou ao domínio espanhol em 1777, quando sua família, de pai brasileiro e mãe açoriana, precisou deixar o lugar, junto com todos os outros portugueses.

Eles se estabeleceram no Rio Grande do Sul e foram importantes na criação da cidade de Pelotas. Hipólito teve dois irmãos mais novos e foi educado por dois tios padres —o mais influente deles, o chamado Padre Doutor, preparou-o para estudar em Coimbra.

E para lá o rapaz seguiu munido de cartas de recomendação. Uma delas devia ser destinada a d. Rodrigo de Sousa Coutinho, pois esse importante ministro de d. João seria o padrinho do jovem brasileiro na viagem de trabalho que ele faria, em 1798, logo depois de formado.

"Diário de Minha Viagem à Filadélfia", título dado à publicação das notas que produziu durante os dois anos em que viveu nos Estados Unidos, é um documento fascinante que nos faz lembrar "A Democracia na América", de Alexis de Tocqueville. Não que a obra de Hipólito, que nem mesmo foi escrita e pensada para publicação, tenha a densidade ou a pretensão analítica da do pensador francês.

Reprodução de tela do pintor Théodore Chassériau, que retrata o escritor e historiador francês Alexis de Tocqueville - Reprodução

Em comum em ambos é esse olhar entre surpreso, admirado e desconcertado diante de uma ordem social toda nova, de uma sociedade que se fazia de forma totalmente diferente, a partir da realidade objetiva de seus cidadãos. A sensação de que assistiam ao nascimento de uma grande nação, muito diversa das que conheciam, está presente nos dois textos.

O sentido de liberdade que se respirava ali não escapou ao brasileiro que vinha do opressivo Portugal, onde a Inquisição ainda agia. Sua adesão à maçonaria, então fortíssima entre as elites norte-americanas, foi um ato de subversão, de rebeldia mesmo contra o que o Portugal velho representava.

Para lá voltou, em 1800, disposto a trabalhar pelo progresso e pela difusão das luzes em sua pátria que se estendia então por vários continentes. Suas ações em favor da maçonaria, incluindo uma viagem a Londres, em 1802, no entanto, o levariam à prisão por ordem do intendente Pina Manique e de lá para os cárceres do Santo Ofício.

Experiência que deixou registrada em uma notável obra, "Narrativa da Perseguição", que publicaria em Londres, em 1811, seis anos depois de ter fugido da prisão e de Portugal. Impressionante relato dos interrogatórios a que foi submetido, esse livro é a defesa mais contundente que se fez, em língua portuguesa e em seu tempo, da maçonaria.

Revela ainda o grande conhecimento que o prisioneiro tinha das leis, tanto as de Portugal quanto as de Roma, a ponto de questionar os inquisidores alegando que nem as leis de um nem as de outra previam punições para a prática da maçonaria.

A obra merece ser lida também pelos estudiosos do direito, que se surpreenderão com a atualidade dos protestos de Hipólito contra a prisão sem culpa formada, contra a manutenção do preso em isolamento sem direito a advogado, contra as torturas morais causadas pela sujeira do lugar em que foi mantido, ficando sem banho e sem roupas limpas por meses a fio.

Vale ainda pela interessante referência aos interrogatórios de Galileu Galilei, especialmente para os que, como eu, assistiram à peça de Bertolt Brecht, montada pelo Teatro Oficina nos anos 1970.

Correio Braziliense

Na Inglaterra, Hipólito reencontrou o amigo que fizera em Lisboa no âmbito das atividades da maçonaria, o duque de Sussex. Augusto Frederico, o sexto filho do rei George 3º, representaria uma grande salvaguarda para Hipólito contra as tentativas da coroa portuguesa de fazê-lo repatriar, especialmente depois que ele começou a publicar, em junho de 1808, o Correio Brasiliense.

O papel do duque de Sussex seria também muito importante para sua integração social, por conceder-lhe o lugar de seu principal assistente na maçonaria inglesa da qual aquele príncipe passara a ser o grão-mestre, em 1813.

Não se pode atribuir só a uma coincidência histórica o fato de o jornal ter sido lançado em 1808 e ter encerrado sua publicação em 1822. A vinda da corte portuguesa para o Brasil foi vista por Hipólito como uma chance de vir a ser concretizado o ideal de um grande império português transoceânico, com sede na parte americana.

Mais de uma vez, ele falaria das vantagens a dom João de ter seu trono solidamente fincado na América. Lembrava a confortável distância em que estava de seus dois opressores, a França e a Inglaterra, e procurava valorizar o fato de que dom João, sendo a única cabeça coroada das Américas, poderia ter grande influência sobre seus vizinhos.

O mais importante para Hipólito, porém, era fazer com que a administração portuguesa estabelecida no Brasil tivesse bases diversas das que tinha em Portugal. Hipólito era, essencialmente, um constitucionalista em um contexto em que o modelo de monarquia constitucional experimentado sem sucesso no começo da Revolução Francesa se mostraria funcional depois da subida ao trono de Luís 18.

Na verdade, vivendo na Inglaterra no ambiente dominado pelas avançadas ideias de Jeremy Bentham, ele teria muitos elementos para demonstrar as vantagens da Constituição para o progresso de uma nação. Preferiu, contudo, provocar os brios dos portugueses publicando uma série de artigos sobre a antiga Constituição portuguesa que teria sido criada pelas Cortes que se reuniram para fundar Portugal e escolher um rei.

O apelo a essa suposta tradição portuguesa tinha por finalidade formar entre os seus compatriotas a convicção de que Constituições não eram estranhas ao país —o estranho era o absolutismo. Como disse um contemporâneo seu: "As cortes velhas trariam no ventre as cortes novas". Ou seja, aos poucos a ideia seria naturalizada e se aceitaria uma Assembleia Constituinte nos moldes modernos, eleita pelo voto e sem a divisão entre os três estados do Antigo Regime: clero, nobreza e povo.

Hipólito esperava que o governo português instalado no Brasil modernizasse as instituições existentes e adotasse um corpo de leis que fosse aplicado a todas as capitanias. E que fossem leis para valer, e não daquelas coisas que um ministro decide pela manhã e outro desfaz à tarde.

Ao defender uma política de emigração de trabalhadores europeus para o Brasil, lembrava que eles preferiam ir para os EUA porque se sentiam seguros e protegidos por viverem em uma nação governada a partir de um corpo de leis estável e imutável.

Uma reforma institucional como essa precisava de gente competente para ser tocada. E esse era um ponto central no liberalismo tal como praticado por Hipólito: a revelação e a valorização das capacidades pela educação, propiciando a formação de uma classe burocrática ilustrada. Algo que, enquanto se mantivessem as regras do Antigo Regime que reservavam os melhores lugares para a nobreza, não se concretizaria.

Daí é que partem suas constantes e intensas críticas aos ministros do rei pelo fato de terem transposto para além-mar instituições caducas e inúteis e de preencherem cargos importantes com ociosos desqualificados, selecionados apenas por serem fidalgos. Também lutaria contra a falta de transparência nos gastos públicos, ambiente facilitado pela falta de uma imprensa livre.

Ele contrastava a situação do governo português com a do governo da Inglaterra, onde as contas eram divulgadas e o orçamento era debatido por meio da imprensa, permitindo-se assim que particulares se manifestassem.

Entre as tantas ideias que apresentou, a de desenvolvimento de um serviço nacional de correios foi a que mais o empolgou. Hipólito via a criação desse serviço como um fator de integração nacional e detalhava: estradas seriam abertas para viabilizar a circulação das cartas e encomendas; em alguns pontos delas se estabeleceriam naturalmente postos de troca de cavalos, de venda de alimentos e de pouso, constituindo-se essas paragens, aos poucos, em novos lugarejos, onde inevitavelmente se ergueria uma igreja.

Outro projeto que o inspirava de modo especial era o da transferência da corte para o interior do Brasil. Em março de 1813, quando apresentou essa proposta, ele concluiu dizendo: "Se os portugueses tivessem patriotismo e quisessem de fato agradecer ao Brasil que os acolheu, se estabeleceriam em uma região do interior, central, e perto das cabeceiras dos grandes rios; construiriam ali uma nova cidade, começariam por abrir estradas que se dirigissem a todos os portos de mar e removeriam os obstáculos que possuem os diferentes rios navegáveis. Lançariam, assim, os fundamentos ao mais extenso, ligado, bem defendido, e poderoso império que é possível que exista na superfície do globo, no estado atual das nações que o povoam".

Retrado de Dom João VI
Reprodução de pintura de Domingos Sequeira que retrata Dom João 6º - Reprodução

Revoluções

A elevação do Brasil a Reino Unido, em 1815, passando a ter o mesmo status de Portugal, parecia indicar que os desejos de Hipólito iriam ser atendidos. D. João estava muito bem adaptado à vida no Rio de Janeiro e dava indícios de que não pretendia voltar.

Ele recusara navio inglês que havia sido enviado para que voltasse a Portugal no final de 1814; com a morte de sua mãe, em 1816, tornou-se rei e, em 1817, casou o herdeiro do trono, dom Pedro, com a arquiduquesa da Áustria, d. Leopoldina, numa jogada estratégica de aproximação com o imperador Francisco 1º e com a Santa Aliança, a ver se adquiria alguma independência diante da Inglaterra.

Dom João 6º foi coroado rei em 1818, fazendo com que os principais eventos relacionados à família real acontecessem no Rio de Janeiro.

Não ficaram contentes os portugueses, cuja insatisfação crescia envolvendo vários setores da sociedade. No ambiente de ressurgimento do liberalismo na Europa, em 1820, Espanha e Portugal foram os primeiros reinos em que rebentaram revoluções constitucionalistas, abrindo um ciclo que culminaria com a Revolução de Julho de 1830, em Paris, que marcaria o fim do reinado da dinastia Bourbon.

A Revolução Constitucionalista de 1820, acontecida na cidade do Porto, logo se estendeu a Lisboa, onde os revolucionários escolheram uma junta para escrever as bases da Constituição portuguesa. Logo foram eleitos deputados, e o rei foi convidado a voltar e a assumir o lugar de chefe do governo que seria constituído sob a forma de uma monarquia constitucional.

A revolução foi recebida com entusiasmo por Hipólito da Costa e pelos liberais do Rio, mas as medidas relativas ao Brasil tomadas pelas Cortes começaram a causar insatisfação e terminaram por provocar o rompimento marcado pelo chamado dia do Fico, 9 de janeiro, que se confirmaria no 7 de setembro de 1822.

Esse processo foi acompanhado detidamente por Hipólito da Costa —e foi ao longo dele que deixou de ser português para ser exclusivamente brasileiro. A causa desse rompimento com uma identidade construída ao longo de uma vida foi a política restritiva das cortes para as províncias do Brasil que ganhavam autonomia diante do Rio de Janeiro.

Essas medidas prenunciavam o fim do Brasil como unidade, tal como acontecera com a América Espanhola, e enterravam o projeto de um grande império luso-brasileiro com sede na América. Era o fim de um sonho que embalara gerações de brasileiros e portugueses ilustrados do final do século 18 às primeiras décadas do século 19.

Para Hipólito, tratava-se de preservar a integridade da parte que lhe era mais cara. Só quando constatou que deputados portugueses não fariam concessões aos brasileiros é que ele aderiu à Independência e passou a se dedicar à luta pela consolidação do Império do Brasil. Essa tarefa consumiu o pouco tempo que lhe restava de vida, pois morreu em 11 de setembro de 1823, em Londres, aos 49 anos.

Texto integra série Perfis da Independência

Esse texto é a segunda publicação da série Perfis da Independência, que destaca nomes relevantes —muito conhecidos ou não— do período da emancipação do Brasil em relação a Portugal. O texto sobre a imperatriz Leopoldina deu início à série em fevereiro deste ano.

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