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Mulher negra é força política mais promissora, diz Heloisa Buarque

Para crítica literária, mulheres pobres e periféricas têm forma própria de feminismo, bastante sofisticado

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Obra de Frida Orupabo exibida na 34ª Bienal de São Paulo, em 2021 Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo/Divulgação

Marilene Felinto

Escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”. Email: textosfazendaria@gmail.com

[RESUMO] Autora dos mais abrangentes estudos sobre feminismo já publicados no Brasil, Heloisa Buarque de Hollanda, 82, comenta em entrevista seu mais recente livro, que retrata jovens mulheres do século 21, sobretudo negras e da periferia, a seu ver a força política mais promissora de hoje.

Em novo livro, "Feminista, Eu?" (Bazar do Tempo), Heloisa Buarque de Hollanda analisa a presença feminista na literatura, no cinema e na música popular brasileira da década de 1960 até hoje. Aponta a contribuição de dezenas de mulheres artistas para o fortalecimento do feminismo no país, ainda que nem todas se dessem conta disso.

Com mais de 50 livros publicados, ao longo de seus 83 anos a serem completados em julho, Heloisa diz que escreveu este novo texto a partir de sua descoberta e paixão pela quarta onda feminista, das jovens mulheres do século 21, a quem chama de suas "netas políticas".

Heloisa Buarque de Hollanda, professora emérita da UFRJ, em mesa da Flip de 2016 - Keiny Andrade - 2.jul.16/Folhapress

Crítica literária consagrada, professora emérita da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), estudiosa e militante feminista, já nos anos 1970 ela se interessava pelo que chama de microtendências, a vanguarda na cultura. Publicou em 1976 a coletânea "26 Poetas Hoje", sobre a poesia marginal, com o mesmo envolvimento com que reuniu 37 autores que divulgam seus trabalhos via internet ("Antologia Digital", 2009).

Seus estudos sobre o feminismo no Brasil e no mundo são, provavelmente, a mais completa pesquisa no tema no país. Sua atuação na universidade é marcada pelos laços com as comunidades periféricas, especialmente no projeto Universidade da Quebrada, que criou e desenvolve no Rio pela UFRJ. Nesta conversa com a Folha, Heloisa fala desses vários campos que constituem sua apaixonada e apaixonante trajetória pessoal e profissional.

Como se formou seu interesse por movimentações de vanguarda na cultura? Acho que nunca fui uma boa acadêmica. Me sinto um pouco desconfortável, desinteressada quando vou estudar coisas que já estão estudadas. Tenho uma compulsão política de "mudar o mundo", que ficou marcada a ferro em mim pelo DNA revolucionário de minha geração, a dos anos 1960. Mas como entendi que "revolução" é um sonho mais complexo do que pensávamos, tento usar meu trabalho dando visibilidade a coisas pequenas nas quais acredito e aposto.

Foi o caso da antologia com a poesia marginal, que era totalmente desacreditada e tornou-se um dos poucos testemunhos da juventude na época do AI-5, e, hoje, o caso das culturas feministas, negra e das periferias, que me parecem ser as forças políticas mais promissoras que temos.

Em texto seu, em coautoria com Marcos Augusto Gonçalves, "Anos 70 – Literatura", de 1979, há um elogio à crítica literária da época, especialmente à "escola de São Paulo". Que papel desempenham hoje a crítica e o cânone literário? A crítica literária a qual nós nos referíamos era a daqueles tempos de chumbo, censura e medo, a crítica com poder transformador e sua atitude diante do status quo. Outra coisa é o cânone com o qual essa crítica lidava, ainda com sotaque universalista, excludente e com uma configuração elitista muito demarcada, o que facilitava de certa forma o trabalho crítico.

Hoje, esse cânone foi interpelado e se quer múltiplo e setorizado, o que coloca para a crítica o problema de ter que lidar com a questão do valor literário, um debate que provoca um claro desconforto nos meios acadêmicos.

Naquela mesma publicação, fala-se da universidade brasileira, após a "limpeza" perpetrada pela ditadura, como "um território apático e atônito, [...] interditado à discussão da realidade do país". Como vê a universidade hoje, você que é professora universitária, com experiência inclusive fora do país? Minha experiência universitária fora do Brasil me mostrou as facilidades gigantescas das universidades estrangeiras, suas bibliotecas, bolsas, seus equipamentos. Uma Disney acadêmica. Mas, quando fui convidada a me estabelecer em Stanford, essa ideia ruiu.

Tive certeza de que não queria ficar ali, em uma universidade de caráter "privado", mesmo que pública, com liberdade de expressão e de comportamento limitada pela competitividade acirrada entre pares, sem projeto crítico e subserviente aos alunos ou clientes e às autoridades universitárias.

A universidade pública hoje no Brasil, que é a que conheço, me parece meio à deriva, sem um projeto forte, apagando fogueira atrás de fogueira, marcada pela desvalorização do ensino e da ciência pelo Estado. Por outro lado, a política de cotas começa a produzir professores negros capacitados, e o feminismo começa a reconhecer a capacidade gerencial e política das mulheres.

Você é uma mulher branca da classe dominante, mas que tem um olhar voltado também para a cultura periférica e seus movimentos de resistência, para as novas epistemologias de gênero e sexualidade, entre outras questões tão atuais. O que a academia consegue trocar com esse grupo social e o que aprende com ele? Minha visão nesses casos não é assistencial nem desejo capacitar ninguém. Aprendi, ao longo do meu trabalho, que a diferença e a escuta forte são os maiores propulsores da inovação e da produção de conhecimento.

Meu projeto Universidade das Quebradas já existe há 12 anos. É um laboratório de tecnologias sociais onde experimentamos vários tipos de trocas e articulações entre artistas, ativistas e produtores culturais das periferias. Uma metodologia que ainda não chegou aonde quer chegar, mas cujo processo tem dado resultados inesperados.

Vejo hoje muitos participantes das periferias em posições de poder e desejo que a academia tenha percebido que sua cultura tem que se articular com outras para se desenvolver. Sonhos.

No que se refere aos estudos sobre o feminismo, você percorre um arco extenso ao longo de tantas décadas. Em "Pensamento Feminista: Conceitos Fundamentais", você vai de Lélia Gonzalez, que nasceu na década de 1930, a Paul B. Preciado, que nasceu na década de 1970. Houve um primeiro momento em que todas pareciam, e provavelmente foram, fundamentais. As que compartilhei no livro são aquelas que estudei, fichei, rabisquei.

Depois, comecei a filtrar e a trabalhar com as feministas brasileiras, nordestinas, negras, periféricas, a ficha vai caindo, e você percebe que tem que localizar suas escolhas teóricas mais perto de seu objeto de pesquisa.

Das estrangeiras desse primeiro livro, fiquei com a Donna Haraway na cabeceira. Hoje, me sinto bem mais confortável com as decoloniais. Trabalhar com elas dá a sensação de estar chegando em casa.

Considera que alguma onda feminista foi mais importante que outra? Até que ponto o feminismo atinge as mulheres pobres? A ideia de chamar de ondas as fases do feminismo me encanta por conta disso. É uma água que vai, volta e vai de novo, infinitamente. Infelizmente, ainda precisamos de muitas outras ondas para chegar aonde queremos. As demandas dos anos 1960 ainda estão em pauta 60 anos depois: a violência, o assédio, a desigualdade salarial, a liberdade reprodutiva e sexual. Mas já avançamos muito.

Paralelamente, as mulheres pobres têm sua própria forma de feminismo, bastante sofisticado, criado através de redes, estratégias, apoios legais e em situações criminais. Sentem o meu feminismo como um movimento de elite que não tem escuta para suas demandas enquanto mulheres individuais.

Os estudos geralmente falam de grupos ou categorias profissionais, sindicatos, saúde. Procurando saídas, organizei o seminário Feminismos e Favela: Diálogos Urgentes, um encontro raro que está disponível no YouTube.

De onde vem tanta vitalidade para produzir aos 82 anos? Uma médica amiga diz que aos 40 anos achamos que vamos morrer, e que, aos 60, temos certeza disso. Aos 80, o que você diria? Aos 80, achamos que estamos a um passo da morte. O que faço, e que você está chamando de vitalidade, é o que todo e qualquer velho, depois dos 80, faz. Contar repetidamente sua história e distribuir seus guardados do baú para quem ele acha que merece ou vai fazer bom uso deles.

Feminista, Eu? Literatura, Cinema Novo, MPB

  • Preço R$ 59,90 (224 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autor Heloisa Buarque de Hollanda
  • Editora Bazar do Tempo
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