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Ana Carolina Evangelista, Jacqueline Teixeira e Livia Reis

O que querem as mulheres evangélicas nesta eleição?

Chances de vitória de Bolsonaro e Lula estão atreladas a respostas a anseios sobre família e políticas de cuidado

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Ana Carolina Evangelista

Cientista política e pesquisadora do Iser (Instituto de Estudos da Religião)

Jacqueline Teixeira

Antropóloga e professora da UnB (Universidade de Brasília)

Livia Reis

Antropóloga e pesquisadora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Iser (Instituto de Estudos da Religião)

[RESUMO] A ideia de família, que traduz preocupações com a autonomia financeira e a gestão da vida cotidiana de mulheres das classes populares e evangélicas, deve ser entendida como uma categoria que estrutura a vida de boa parte da população brasileira, ultrapassando a imagem moralista explorada pelo bolsonarismo, argumentam pesquisadoras. Esse caminho é fundamental para atrair o segmento evangélico feminino, mais resistente a votar em Bolsonaro nesta eleição.

"Pois o marido descrente é santificado por meio da mulher, e a mulher descrente é santificada por meio do marido. Se assim não fosse, seus filhos seriam impuros, mas agora são santos." (1 Coríntios 7.14)

A última pesquisa Datafolha, divulgada na quinta-feira (18), apontou que o presidente Jair Bolsonaro ampliou sua vantagem de 10 para 17 pontos percentuais entre eleitores evangélicos. Isso era esperado.

Há algum tempo, o presidente vem dobrando a aposta no segmento religioso, que lhe garantiu 70% dos votos em 2018. A diferença é que, em 2022, a mensagem vem sendo direcionada às mulheres evangélicas, público com mais resistência às propostas de Bolsonaro e no qual ele mais perdeu votos em relação aos obtidos na disputa de 2018.

Michelle Bolsonaro (esq.), Jair Bolsonaro e Damares Alves em encontro com líderes evangélicos no Palácio da Alvorada - Pedro Ladeira - 8.mar.22/Folhapress

Além disso, quando comparadas aos seus pares masculinos, as mulheres são aquelas que têm o voto menos consolidado: 34% das mulheres evangélicas ainda não conseguem apontar um candidato à Presidência antes de serem apresentadas a uma lista, enquanto esse percentual é de 14% entre os homens evangélicos.

Não foi à toa que Michelle Bolsonaro entrou de cabeça na campanha, na esteira de uma atuação nada discreta durante o mandato do marido. Além de coordenar projetos atrelados ao Ministério da Cidadania, a primeira-dama participou, ao lado de Damares Alves, do lançamento de programas desenvolvidos pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Sua relação com a pasta recebeu novos holofotes em 2022, quando passou a atuar mais incisivamente na divulgação de iniciativas de combate à violência doméstica e familiar.

Já na pré-campanha, Michelle explorou ainda mais sua identidade crente. Além da visível mudança estética, a primeira-dama tem empregado em seus discursos o repertório e a corporeidade evangélica, enfatizando a ideia de luta do bem contra o mal.

Para os crentes —e, como uma, Michelle sabe disso—, a ideia de batalha espiritual está longe de se restringir ao plano espiritual, estendendo-se ao mundo material. Os problemas da ordem do cotidiano são percebidos como uma atuação contundente do inimigo, o demônio.

Após o evento de lançamento da candidatura do presidente, enquanto vários veículos da imprensa se concentraram em apontar as inconsistências das falas de Michelle sobre as políticas públicas para as mulheres, a primeira-dama apareceu comparada à Rainha Ester em grupos e páginas voltados para o público evangélico.

Na narrativa bíblica, Ester é conhecida por ser uma mulher forte, sábia e virtuosa. Judia, casou-se com o rei da Pérsia e, em momentos cruciais de guerra, assumiu o trono para proteger o povo judeu do governo persa. Assim, enquanto parte do povo persa se sentia governado pelo rei, para o povo judeu, o governo estava nas mãos de Ester. Por isso, proteger o governo persa também representava proteger o governo de Ester.

Seguindo a narrativa bíblica, Michelle aparece agora como a rainha capaz de garantir uma aliança entre o governo e seu povo. Bolsonaro, o Messias, seria o escolhido para vencer o inimigo, materializado nas figuras do ex-presidente Lula e do PT.

Reforçando essa identificação, o presidente faz discursos que indicam que a fé da mulher redime o homem —como quer fazer acreditar que Michelle faz com ele— e aposta em uma retórica de valorização da mulher, reconhecendo-a como responsável pelos vínculos familiares em todas as dimensões: de cuidado, econômicos e espirituais.

Recorrendo-se ou não à ideia de batalha e redenção, o voto das mulheres evangélicas será importante para definir quem presidirá o país. No mínimo, elas pode levar as eleições ao segundo turno, o que parece ser a aposta da campanha bolsonarista agora.

Terá mais chances de vencer o pleito aquele que melhor souber ouvir e responder às preocupações da maioria das mulheres brasileiras, sobretudo das camadas populares, evangélicas ou não. Quais são elas?

Pesquisas qualitativas indicam que o engajamento em pautas armamentistas e discursos violentos é atravessado pela variável de gênero. Entre as mulheres em geral, há uma recusa à apologia da violência, inclusive aquelas direcionadas a outras religiões.

Sobretudo entre mulheres das classes populares, há uma valorização de políticas públicas de cuidado para elas e seus familiares. Elas também desejam autonomia financeira e direitos iguais e focam questões cotidianas, traduzidas a partir da ideia de família, especialmente entre as evangélicas.

Família, portanto, é um elemento central para a compreensão do que está em jogo já há alguns pleitos eleitorais. Essa é, aliás, uma das razões pelas quais precisamos qualificar a percepção sobre as ações sociais no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chamadas, em uma estratégia de marketing, de políticas públicas familiares.

A figura da ex-ministra, pastora e advogada Damares Alves é essencial para esse entendimento. A pesquisa do Iser (Instituto de Estudos da Religião) sobre as eleições de 2020 constatou que muitos dos candidatos com identidade religiosa preferiram associar sua imagem pública durante a campanha a Damares, não a Bolsonaro.

Tanto ela quanto Michelle Bolsonaro personificam as propostas de ação social do atual governo. Embora a família seja um elemento insistente no discurso bolsonarista, coube ao ministério de Damares construir a materialidade dessas afirmações.

Para isso, fez uso do repertório de políticas públicas para mulheres, crianças e idosos desenvolvidas nos governos anteriores, agora redesenhadas, restringidas e reorganizadas sob o nome de políticas públicas familiares. Isso conferiu ao governo Bolsonaro um certo reconhecimento de políticas de cuidado e de assistência, ainda que, contraditoriamente, o ministério tenha aplicado o menor percentual de orçamento público dos últimos anos.

Mulheres são responsáveis pelo cuidado e pela subsistência das famílias e, portanto, dão prioridade à oferta de ações públicas que remetam ao cuidado e que façam diferença na gestão da vida cotidiana, algo que tem sido instrumentalizado por movimentos políticos de direita apenas sob o slogan "família". Família, entretanto, não se resume a uma imagem abstrata de cunho moralista, tal como é usada por esses atores—também é um elemento afetivo e social importante, diretamente ligado à responsabilidade dos vínculos que recaem sobre as mulheres.

Observando esses e outros aspectos, fica uma questão: como conquistar esse eleitorado sem ter que adotar a retórica excludente e superficial do bolsonarismo?

Em primeiro lugar, as mulheres precisam ocupar papéis centrais nas campanhas eleitorais, nos partidos e nos governos. Esse protagonismo vai além da representatividade.

Em segundo lugar, os medos que reforçam certo pânico moral —como temores de desordem, de bagunça e de ameaça à família— não podem ser tratados como simples mentiras. Eles existem, são compartilhados e precisam ser levados a sério, a partir de propostas concretas de melhora nas condições de vida dessas mulheres e da denúncia e orientação quando forem casos de propagação de ódio, intolerância e racismo.

Por fim, é preciso incorporar demandas e pautas de mulheres e, particularmente, de mulheres negras evangélicas. Esse tem sido um caminho muito explorado por igrejas evangélicas, que falam abertamente sobre desigualdades de gênero e racial, ainda que de maneira limitada e direcionada a seus próprios interesses.

Deslegitimar as políticas de assistência, escuta e cuidado oferecidas pelas igrejas ou questionar sua importância para a autonomia das mulheres é um equívoco. Ao contrário, é preciso escutá-las, levando a sério seus dramas e suas esperanças com o futuro em demandas que passam por violência, cuidado com a família e medos, mas também pelos efeitos das políticas restritivas de direitos do governo Bolsonaro.

O medo do futuro é um elemento forte no cotidiano, embalado por desemprego, queda da renda e da qualidade de vida, aumento da fome e da insegurança alimentar, retrocessos na educação e na saúde e fortalecimento da repressão policial nas favelas e periferias. Considerar que aquilo que os próprios crentes dizem sentir, viver e reivindicar, incluindo suas contradições e ambivalências, é muito mais relevante que a importância que se dá aos discursos de lideranças.

Já passou da hora de revermos estereótipos, sobretudo aqueles relacionados ao eleitorado evangélico, e reconhecer que a famigerada pauta moral passa pela produção de pânicos morais sobre direitos sexuais e reprodutivos —um retrocesso, portanto—, mas que envolve outros elementos.

Mais que nunca, convém enxergar a família como categoria geradora de políticas públicas, um elemento organizador simbólico que extrapola o universo evangélico e alcança o eleitorado brasileiro de forma geral. Não se trata de um recurso retórico ou descolado da realidade, mas que faz sentido no cotidiano das pessoas, sobretudo das mulheres. Só assim será possível entender os sentidos atribuídos ao cristianismo e às negociações que as pessoas fazem cotidianamente enquanto crentes, conservadoras ou não.

Ignorar tais lições é correr o risco de perder, se não as eleições, a oportunidade de compreender o que mobiliza parte considerável da população do país.

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