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Teté Ribeiro

David Byrne me disse em 2009 que era autista, mas resolvi não publicar

Repórter relembra entrevista nos 40 anos de clássico show da banda do músico

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Teté Ribeiro
Teté Ribeiro

Jornalista, autora de "Minhas Duas Meninas", "Divas Abandonadas" e de dois guias de Nova York. Foi apresentadora do programa “Saia Justa” e editora da revista Serafina.

[RESUMO] Às vésperas das celebrações dos 40 anos de clássico show da banda Talking Heads, eternizado em filme que será relançado, repórter relembra entrevista de 2009 em que David Byrne, vocalista do grupo, disse a ela ter a síndrome de Asperger, uma condição psiquiátrica do transtorno do espectro do autismo. A revelação foi feita após o fim da entrevista, com o gravador já desligado, e a repórter, após intenso questionamento interno, resolveu não publicá-la.

Calma. Respira. Repita a operação. Você não é obrigado a ter uma opinião formada sobre tudo, como parece ser a regra universal de conduta dos dias de hoje. Mas, caso já se sinta em condições de julgar, faça a gentileza de não expor seu pensamento neste segundo. Se isso se provar impossível, um último pedido: faça pelas costas.

Agora, a história desde o começo. No segundo semestre de 2009, o selo Amarilys se preparava para publicar, no Brasil, o livro "Diários de Bicicleta", escrito por David Byrne e lançado nos Estados Unidos naquele mesmo ano, em que o ex-Talking Heads contava suas experiências pelo mundo vistas de sua "janela panorâmica", como ele descrevia a sensação ao andar de bicicleta por outras cidades além daquela em que vivia desde os anos 1970, Nova York, e na qual se deslocava em duas rodas desde os anos 1980.

imagem em preto e branco de david byrne por cima de uma bola vermelha com fundo cinza
Ilustração sobre imagem do artista David Byrne - silvis

"Mais rápido que uma caminhada, mais lento que um trem e muitas vezes ligeiramente mais elevado que uma pessoa", ele escreveu. "Através dela, eu acompanho fragmentos de como são as mentes das outras pessoas, expressos em meio às cidades onde elas vivem."

Fã de sua obra desde que me entendi como projeto de gente no mundo, logo percebi que aquele lançamento seria uma outra espécie de janela, esta para a minha curiosidade. Escrevi para a assessoria de imprensa da editora, para o escritório de Byrne e para a jornalista Lulie Macedo, criadora e, à época, chefe da revista Serafina, que circulava mensalmente na Folha, e com a qual eu colaborava desde o seu lançamento, em março de 2008.

Eu morava em Washington, a capital dos EUA, havia três anos, e já tinha aprendido a delícia de ir até Nova York a bordo de um Amtrak, nome da empresa estatal norte-americana de transporte ferroviário, que, desde seu surgimento, em 1971, é deficitária, porém pontual, com estações sempre centrais e elegantes e trens confortáveis, limpos, rápidos e passagens razoavelmente em conta (em dólares e naquela época; de novo, respira, não se apresse para expressar o que pensa).

A empresa foi criada pelo governo americano quando o transporte ferroviário entrou em declínio no país. As primeiras linhas de trens, de companhias privadas, construídas no século 19, foram essenciais para a formação e o desenvolvimento dos Estados Unidos até os anos 1920.

A maior rede ferroviária do mundo, que até hoje corta o país inteiro, produziu enormes fortunas no século 19 e alterou completamente o status social da elite norte-americana, até então formada apenas de ricos que já chegavam ricos ao país, vindos da Europa com seus costumes caretas e suas certezas absolutas.

A chacoalhada geral provocada pela entrada dos "novos ricos" na cena norte-americana, de famílias com sobrenomes como Vanderbilt, Rockefeller, Roosevelt, é tema da série "A Idade Dourada", da HBO Max —a segunda temporada estreou há pouco e tem um dos homens mais lindos que jamais existiram como um dos personagens centrais, Mr. Russell (o nome do ator é igualmente sexy, Morgan Spector).

Algo parecido, em outra proporção, aconteceu no final dos anos 1970 em Nova York, quando uma banda de covers formada por amigos de faculdade de design de Rhode Island, inicialmente chamada de The Artistics, e logo apelidada de The Autistics, começou a tocar músicas compostas pelo vocalista e guitarrista, David Byrne.

A banda —formada por outros três músicos, o baterista Chris Frantz, a baixista Tina Weymouth e o tecladista e guitarrista Jerry Harrison— optou por mudar de nome quando decidiu apostar em suas próprias criações, e assim surgiu o Talking Heads.

Fãs do punk dos Ramones, do rock experimental do Velvet Underground e do grupo vanguardista Pere Ubu, mas também de tudo que ouviam no rádio, na casa de amigos ou na própria cabeça, produziam um som que não se enquadrava em nenhuma definição preconcebida. Foi chamado de "art rock", como se a banda fosse uma espécie de performance artística, e não uma banda de rock de verdade.

Com o tempo, e com os hits que não paravam de botar todo mundo no mundo todo para dançar —exceto a turma mais mal-humorada, que via como pretensão o que era, na verdade, apenas a estranheza de um som único e, principalmente, de um frontman tão singular—, ficou meio estabelecido que o Talking Heads foi uma espécie de precursor do new wave.

Definição meio preguiçosa essa, feita só para catalogar os LPs nas lojas de disco (olha como essa história é antiga). O fato é que tudo que tem a assinatura de David Byrne é difícil de rotular.

É assim com a música do filme "O Último Imperador", de Bernardo Bertolucci, pela qual ganhou um Oscar em 1988, junto com Ryuichi Sakamoto e Cong Su. Ou a trilha do ótimo "De Caso com a Máfia", de Jonathan Demme, lançado no mesmo ano.

E o que dizer da associação do músico com o comediante John Mulaney, que lançou neste ano o especial de stand-up "Baby J", na Netflix, com trilha original de Byrne?

O musical "American Utopia", primeira incursão do músico no teatro, começou como um show normal, em que Byrne teve uma única ideia, só que ninguém tinha tido antes: tirar tudo do palco a não ser o que fosse absolutamente essencial. Ficaram as pessoas e os instrumentos musicais, todos sem fios. Virou um musical da Broadway considerado uma obra-prima, que virou filme de Spike Lee (dá para ver na Apple TV).

Vi o musical pela primeira vez no teatro, em 2019, e a segunda na TV, no fim de semana passado. Byrne está à frente de uma banda com gente vinda de diversos países, inclusive com dois músicos brasileiros, todos vestidos de cinza em um palco também cinza circundado por uma cortina de correntinhas prateadas que cobrem o fundo e as laterais.

David Byrne em cena do filme "Stop Making Sense" (1984), que retrata show da banda Talking Heads - Youtube

Os instrumentos foram adaptados de maneira que funcionassem sem fio e fossem encaixados nos ombros dos músicos como uma mochila vestida na frente, em vez de nas costas. Assim, todos estavam de mãos livres para tocar seus instrumentos e andar para lá e para cá. E descalços.

A dupla de backing vocals e dançarinos, uma mulher negra e um homem ruivo de rosto inesquecível, alternavam coreografias em que mexiam só os dedos de uma mão com dancinhas elaboraras e divertidas, como se fossem duas crianças arteiras atrapalhando a apresentação dos adultos.

Neste ano, Byrne botou no palco da Broadway um novo musical, feito a partir de um álbum criado em parceria com o músico inglês Fatboy Slim chamado "Here Lies Love", em que conta a historia da ex-primeira-dama das Filipinas Imelda Marcos.

Byrne subverte tudo, absolutamente tudo, para que a inacreditável trajetória de Imelda Marcos, mulher do ditador Ferdinando Marcos, que comandou as Filipinas de 1965 a 1986, vire um musical com clima de uma noite no lendário Studio 54.

Assisti a este espetáculo em julho deste ano, em Nova York. A plateia tinha quase 80% de filipinos, e o elenco, 100%. O palco não era o palco, a plateia não era só a plateia, o público fazia parte do cenário e ajudava na contrarregragem, e a história se passava também por telões espalhados por lugares inusitados entre o que seria o palco e a plateia. Um DJ narrava trechos da história.

E foi assim com o livro de 2009, "Diários de Bicicleta", em que ele descreve as vantagens de se locomover em duas rodas, mesmo em lugares que não conhece bem, e que costumava visitar por pouco tempo, durante as turnês de sua banda. "É o momento ideal para ouvir música sem interrupções, resolver problemas e perdoar pessoas. Depois de 20 minutos, qualquer chatice do dia a dia fica menos importante."

David Byrne em mesa da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em 2011, quando comentou seu livro "Diários de Bicicleta" - Leticia Moreira/Folhapress

Depois de algum vai e vêm de e-mails trocados entre a assessoria, a editora da revista e a secretária de Byrne, uma data e um horário foram combinados. Ele me receberia em seu escritório, no SoHo, em Nova York, para uma entrevista e uma sessão de fotos.

Chego a Todomundo, como se chama o seu escritório, um pouco adiantada, e dou de cara com ele saindo do banheiro, onde costuma tomar banho quando sua muito no trajeto, feito sempre de bicicleta, faça chuva, sol, neve, vento frio.

Eu estava ansiosa, tímida, mas preparada. Ele, por sua vez, parecia ter sido pego de surpresa, como se eu tivesse chegado ali sem avisar, e ele não tivesse por onde fugir. Optamos por começar pelas fotos, para tentar desarmar aquele constrangimento que preenchia todos os espaços.

Aos poucos, Byrne começou a dizer coisas que deixava claro que ele sabia que o clima estava estranho e que era ele quem dava o tom daquele encontro. Ele tem uma mania engraçada de responder as perguntas como se descrevesse o que está sentindo, ao mesmo tempo em que observa de longe o diálogo.

Pergunto como escolheu as cidades do livro, que batizam seus capítulos, e ele responde prontamente: "escolhi as cidades que eu conhecia". Então faz uma interpretação de como pode ter sido seu raciocínio: "Posso usar Berlim para falar de história, Buenos Aires será ideal para costumes sociais e músicos que conheço. Poderia usar Curitiba para falar das mudanças na estrutura da cidade, mas fui até lá só uma vez e não achei muito divertida, não gostaria de voltar".

O senso de humor de David Byrne é um personagem à parte, como se tivesse algum parentesco com o Mr. Bean, com aquela inocência traquina do personagem do comediante inglês Rowan Atkinson, magrinho como ele. Mas algumas vezes ele ri alto e relaxa totalmente, de um jeito que nem no palco eu vi acontecer.

Quando acabo de fazer as perguntas, agradeço a entrevista, desligo o gravador e continuamos conversando alguns minutos a respeito dos suportes para bicicletas que ele criou e que a Prefeitura de Nova York tinha comprado e espalhado pela cidade, um diferente do outro.

Ele me diz, enquanto caminhamos em direção à porta do loft: "Quando eu me interesso por alguma coisa, tenho a capacidade de focar naquele assunto por muito tempo, é como uma obsessão, mas também é como um superpoder. É por causa do Asperger". Pausa dramática.

Essa revelação, feita depois da entrevista concluída, deveria ser considerada um off [termo jornalístico para uma informação confidencial]?

Ele não pediu que a informação não fosse incluída na matéria. Eu estava ali como repórter, ele como entrevistado. Não havia dúvida disso. A tarde tinha sido agradável, amigável, porém não estávamos trocando confidências nem nada. Mas isso mudava todo o rumo da história.

Peguei o Amtrak de volta para Washington logo em seguida, saindo da Penn Station. Três horas depois, estava em casa. Eu não tenho nenhum superpoder, mas passei aquelas três horas com um único pensamento: o que fazer com aquela informação?

David Byrne me disse que é autista, mas eu não tenho isso gravado. Em 2009, o mundo era um lugar muito diferente. O transtorno do espectro autista ainda não tinha, como se diz, saído do armário.

Não contei para ninguém na época, nem meus amigos mais próximos. Escrevi minha matéria sem isso, virou capa da Serafina, uma das minha preferidas.

Nos anos seguintes, Byrne comentou seu diagnóstico em diversas entrevistas. Deu depoimentos inclusive para publicações que tratam especificamente dos transtornos do espectro autista, e foi reverenciado por ajudar a desconstruir o estigma carregado de preconceitos que os pacientes carregavam.

E aí a filmagem de "Stop Making Sense" completa 40 anos, e os quatro Talking Heads decidiram remasterizar o que é considerado o melhor longa-metragem feito a partir de um show e exibir de novo nas telas de cinema. Pareceu-me a janela ideal para contar essa história.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto afirmava que o músico  David Byrne nunca havia comentado publicamente, até entrevista para Serafina em 2009, que tinha a síndrome de Asperger. No entanto, meses antes, em maio daquele ano, ele disse ao  jornal neozelandês Sunday Star Times  que acreditava que, na juventude, era "meio" autista, ou "talvez fosse um caso não diagnosticado de síndrome de Asperger, mas que foi superado". O texto foi corrigido.

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