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Clara Drummond

'Succession' mostra dubiedade ao representar 1% mais rico

Maneira como nos relacionamos com a extrema riqueza é mistura mal resolvida de fascínio e repulsa

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Clara Drummond

Jornalista e escritora, autora de "Os Coadjuvantes" (Companhia das Letras)

[RESUMO] "Succession", cujo último capítulo foi exibido neste domingo (28), expõe os limites e as possibilidades de retratar a extrema riqueza nas telas. Embora em termos estéticos evite glamorizar os ultra ricos, a série da HBO, ao privilegiar dramas e traumas íntimos, acaba por reforçar o fascínio da riqueza, deixando em segundo plano os imensos impactos sociais negativos da concentração de renda.

Em 1973, o cineasta François Truffaut fez o seguinte comentário em uma entrevista para o jornal Chicago Tribune: "Todo filme que retrata a guerra acaba sendo um filme a favor da guerra". Nesse sentido, "Os Boinas Verdes" (1968), filme propaganda de John Wayne, e "Apocalypse Now" (1979), de Francis Ford Coppola, seriam basicamente a mesma coisa.

A princípio, o uso de Wagner durante o ataque a um vilarejo vietnamita parece fazer uma comparação óbvia entre a Alemanha nazista e os Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã. No entanto, a cena fora de contexto serve como glorificação da guerra, e não como denúncia.

Kieran Culkin, Alan Ruck, Sarah Snook e Jeremy Strong na quarta temporada da série "Succession", da HBO
Os atores Kieran Culkin, Alan Ruck, Sarah Snook e Jeremy Strong na quarta temporada da série "Succession", da HBO - Divulgação

É possível aplicar o mesmo pensamento para recentes filmes e séries que retratam a crueldade e estupidez daqueles que são o 1% mais rico do planeta.

Nos últimos anos, temos assistido a uma leva muito bem-sucedida de histórias que repetem o slogan rousseauniano: "comam os ricos", como os filmes "Parasita" (2019), de Bong Joon-ho, "Triângulo da Tristeza" (2022), de Ruben Östlund, "O Menu" (2022), de Mark Mylod, e as séries "The White Lotus" e "Succession", ambas da HBO.

É uma tendência facilmente explicável pelo nosso momento histórico. A desigualdade econômica galopante faz com que qualquer bilionário, mesmo simpático, soe meio Maria Antonieta. No mundo real, a guilhotina é um sonho distante, então que ao menos façamos justiça na ficção.

O cinema e a televisão sempre retrataram a vida dos super-ricos. Mas, antes, o apelo para o espectador comum era vivenciar um pouco daquela opulência através dos personagens. Mesmo os filmes críticos à ambição desmedida dos seus protagonistas cumprem essa função.

Em "Wall Street" (1987), dirigido por Oliver Stone, Gordon Gekko é um vilão retratado de modo tão sedutor que é irresistível não desejar, ao menos por alguns minutos, aquela vida. "As pessoas chegam até mim e dizem: você é o motivo pelo qual eu me tornei um corretor na Bolsa de Valores. Gordon Gekko foi para a prisão, mas tinha roupas bonitas, várias namoradas, então as pessoas pensam: ele tem tudo", costuma contar Michael Douglas, que interpretou o papel. Não importa a mensagem moral. A riqueza sempre vai ser representada de modo atraente.

"Succession", cujo último episódio foi exibido no domingo (28), encapsula bem os limites e as possibilidades da representação dos super-ricos na tela. A câmera resiste à tentação de seduzir mesmo com os cenários luxuosos que parecem implorar por uma panorâmica.

O foco geralmente é a expressão facial tensa e triste da família Roy. A pele dos personagens tem textura, rugas e poros. O estilo documental pega emprestado algumas referências do movimento dinamarquês Dogma 95.

A câmera não é neutra, e sim subjetiva, e se assume câmera, como se fôssemos nós ali, respondendo à cena na medida que ela ocorre, com zooms súbitos, personagens bloqueando a visão, enquadramento desastrado.

Não há planos e contraplanos limpos, como seria em uma série comum, sobretudo uma série com o orçamento de "Succession".

As locações podem ser grandiosas, mas a decoração é sem personalidade, não muito diferente de um hotel cinco estrelas padrão de alguma rede tipo Four Seasons.

Não deixa de ser realista, pois quem tem tantas casas, espalhadas por tantas cidades, não tem tempo de imprimir seu toque pessoal —contrata uma decoradora, e é isso. O figurino também é pensado para ser o mais "baunilha" possível; em suma, alfaiataria ou peças básicas em cores neutras. E, sobretudo, sem logomarcas, que não simbolizam poder, e sim a falta de poder, como a famigerada bolsa Burberry da namorada de Greg.

Se a ideia era não ser sexy, falhou: a terminologia ‘quiet luxury’ (luxo discreto), inspirada no figurino da série, é onipresente em qualquer publicação sobre moda em 2023. Ao que parece, todo mundo quer se vestir igual a Shiv Roy.

O humor, presente na maioria das produções atuais com essa temática, também é um bom antídoto contra a sedução inerente ao dinheiro. Os personagens podem ser ricos, mas são ridículos, rimos deles, e não com eles.

No entanto, é preciso cuidado para a sátira não pesar a ponto de tirar a humanidade dos personagens e torná-los vilões caricatos, sem complexidade ou nuance. É uma linha tênue, considerando que não raro os bilionários no mundo real podem mesmo parecer vilões caricatos, ainda que também tenham seus momentos de insegurança e angústia, assim como os membros da família Roy.

Se "Succession" acerta ao fazer uso da câmera e dos cenários para evitar a glamorização dos ultra ricos, peca em focar apenas nestes, e não naqueles que sofrem os reveses de tamanha concentração de renda. O máximo de acesso que "Succession" nos dá àqueles que são impactados pela crueldade da família Roy é através dos funcionários —e, ainda assim, sem grande destaque.

A estrutura da narrativa ficcional moderna nos convida a empatizar com os protagonistas da história. Roman Roy, por exemplo, é um ser humano horrível suficiente a ponto de sabotar as eleições do país a favor de um simpatizante do nazismo apenas para satisfazer suas ambições pessoais. Mas Roman também é sensível, frágil e uma vítima de abuso —e, por isso, um personagem tão bem escrito.

Nós somos levados a concluir que seu sadismo e imaturidade são mecanismos de defesa de uma pessoa em imensa dor. E sentimos mais pena desse personagem asqueroso que das milhões de pessoas que são negativamente afetadas por suas ações. Afinal, se não estão representadas dentro desse universo ficcional, elas não existem.

No livro "A Ascensão do Romance", Ian Watt conecta o nascimento do romance moderno ao início do liberalismo econômico. O romance avança mais por conta das ações do indivíduo, ou seja, o protagonista, e menos em consequência da ordem social.

Da mesma forma, é difícil que uma história concebida pela indústria cultural americana consiga realmente questionar o sistema capitalista que possibilitou a existência da família Roy. De certo modo, não deixa de ser conveniente que a forma não colabore com o conteúdo. Afinal, as corporações que produzem "Succession" não são tão diferentes assim da Waystar Royco (a HBO faz parte da Warner Bros. Discovery).

"Succession" é mais que um conto moral sobre a corrupção necessária para garantir que os bilionários continuem com todo o poder e impunidade do mundo, e como é essa estrutura de poder que destrói suas almas.

É também um estudo sobre o efeito do abuso físico e emocional que transpassa diferentes gerações. Logan Roy nasceu em uma família abusiva, e seus filhos herdaram não só a sua fortuna, mas também seu trauma. Os problemas de personalidade dos personagens vêm do âmbito privado, não social.

Nesse sentido, "Succession" consegue ser mais conservadora que a fábula do homem que conquista o poder, mas se isola daqueles que ama —como "O Poderoso Chefão" (1972), de Francis Ford Coppola, que é uma referência importante para a série.

É subentendido que, se não fosse o trauma geracional, aquela poderia ser uma família saudável e generosa, mas com alguns bilhões na conta (e, com isso, a possibilidade de cometer assassinatos, explodir foguetes, iniciar guerras e decidir eleições presidenciais).

A hostilidade geral em relação a bilionários é relativamente recente. Até pouco tempo atrás, a crença geral era que uma pessoa atinge tamanha posição de destaque por conta do mérito e do cérebro. A crise de 2008 expôs ao mundo que não é bem assim.

O 1% sempre vai sair impune, independentemente dos seus crimes, e quem pagará a conta, inevitavelmente, serão as classes médias e baixas. A pandemia exacerbou ainda mais o vão entre os bilionários e o restante da população.

No entanto, a maneira que nós nos relacionamos com a extrema riqueza é ambígua, uma mistura mal resolvida de fascínio e repulsa. Talvez essa ambiguidade seja justamente o motivo do sucesso desse tipo de produção: vivenciar tanto a opulência quanto a catarse, se sentir moralmente superior, mesmo com algum prazer em ver o sofrimento alheio, para então suspirar e pensar: coitados dos ricos.

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