Descrição de chapéu
André Conti

Felipe Neto se engana sobre preço dos livros

Não dá para concordar com a ideia de que quem produz livros é 'ganancioso'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

[RESUMO] O comunicador digital Felipe Neto criticou, em postagem recente no Twitter, o preço dos livros no Brasil, culpando suposta "mistura de ganância com burrice" dos agentes envolvidos e retomando um debate recorrente no país. Em resposta, o editor André Conti explica a seguir, com base em exemplos práticos, os custos e as dificuldades de produção do mercado editorial no Brasil, país de baixa renda em que pouco se lê e em que pouco se valoriza o livro.

Na semana passada, Felipe Neto reacendeu a polêmica em torno do preço dos livros no Brasil. Disse que o livro está caro, que para a imensa maioria das pessoas constitui um artigo de luxo e, por fim, que é "uma mistura de ganância com burrice que transforma o livro em item da elite".

Livraria Eiffel, especializada em arquitetura e urbanismo, na praça da República, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Difícil discordar que, num país pobre, o preço é um dos principais impeditivos para que mais pessoas possam comprar livros. Difícil concordar que somos gananciosos —pessoas gananciosas tendem a trabalhar em ramos mais lucrativos.

Dentro de uma editora, o preço é um assunto que paira em todas as conversas. Ao longo de quase 20 anos de carreira, participei de centenas de reuniões de preço, onde os departamentos comercial, de produção e editorial decidem quanto vai custar um livro para o leitor. Nunca testemunhei editores lutando por um preço mais caro. Você passa meses, às vezes anos, trabalhando em um livro, e dói ver que lá na ponta ele irá custar R$ 75.

Que caminho esse livro fez desde sua chegada na editora? Vamos pensar em um romance estrangeiro recebido um ano antes do lançamento. O editor leu, gostou e decidiu publicá-lo. O livro tem 300 páginas e foi escrito em inglês. O primeiro passo é oferecer um adiantamento, um valor que será recebido pelo autor, mas depois descontado das vendas futuras.

Pensando em um valor médio —um livro que não esteja sendo disputado por várias editoras, quando esse número pode disparar—, essa será uma oferta de US$ 3.000, mais ou menos R$ 14 mil. Metade desse valor é pago no ato, e o taxímetro começa a rodar.

O próximo passo é traduzi-lo, a um valor médio (com enorme variação entre editoras) de R$ 40 por lauda. São seis meses para a entrega e mais R$ 12 mil no taxímetro, um valor que ainda precisa melhorar. Nos próximos dois meses, teremos uma preparação de texto (ou copidesque) e duas revisões, a um valor médio total de R$ 5.000 (que também precisa melhorar).

Em oito meses, portanto, o taxímetro já marca cerca de R$ 24 mil, sem que um real tenha entrado, e em apenas um livro (a editora em que trabalho faz em média seis livros por mês; os grandes grupos passam de 30). Com a capa e os textos de divulgação (orelha, contracapa), chegamos a R$ 27 mil.

Agora vamos imprimi-lo sem firulas gráficas (capa dura, cores especiais, silkscreen etc) e sem outros aparatos (índice e caderno de imagens, por exemplo). Para um livro de 300 páginas, podemos usar uma média de R$ 10 por exemplar, e uma tiragem hipotética de 3.000 exemplares.

Tiragens maiores ajudariam a diminuir o preço unitário, mas a maioria dos livros não justifica esse risco. Dez meses depois, portanto, o taxímetro está marcando R$ 57 mil. Na publicação, pagamos o restante do adiantamento, então o valor sobe para R$ 64 mil.

Esse livro precisa remunerar toda uma cadeia de profissionais: tradutores, preparadores, capistas, revisores, gráfica, livrarias, autores e o custo fixo da própria editora, mas ele nem sequer chegou às livrarias.

As livrarias funcionam, na imensa maioria dos casos, com o sistema de consignação. Elas recebem o livro e só vão pagar as editoras a partir dos exemplares efetivamente comercializados para os leitores finais. Quando um livro consignado é, enfim, vendido, a editora só receberá esse valor, em média, depois de três meses.

A consignação é vista como um dos nós mais problemáticos dessa cadeia, e volta e meia há movimentos para acabar com a prática. Todavia, sem a consignação, como manter nas livrarias os catálogos das editoras? Se elas tiverem de pagar no ato por centenas de livros lançados às vezes há décadas, qual cenário encontraremos nas prateleiras? Uma diversidade de títulos e autores ou apenas lançamentos e best-sellers?

Vamos dizer que esse livro hipotético de 300 páginas chegue na livraria custando R$ 74, um valor considerado alto. Grosso modo, dos R$ 74 que o leitor pagará no livro, 50% ficará com a livraria e 50% com a editora, ou seja, R$ 37 para cada lado.

O desconto para as livrarias, embora possa parecer exagerado, é absolutamente vital ao funcionamento do nosso mercado. Sem ele, as livrarias não pagam seus aluguéis e funcionários, e são elas que estão na linha de frente com o leitor. Preservar as livrarias e apostar em sua diversidade é preservar nossa indústria.

Com os R$ 37 que ficam com a editora, é preciso remunerar o autor, que recebe em média 10% do preço do livro. Se ao longo de um ano toda a tiragem for vendida, o que é bem raro para a nossa realidade, o autor receberá cerca de R$ 22.200, menos o que já recebeu de adiantamento. Custos com transporte e armazenamento vão representar mais uns R$ 1.000.

Ou seja, se ao longo de um ano toda a tiragem for vendida —o que, vale repetir, frequentemente não ocorre—, sobrará para a editora um faturamento de mais ou menos R$ 39 mil, de um investimento inicial de R$ 65 mil, e de mais de 12 meses de taxímetro ligado (na melhor das hipóteses). Com esse dinheiro, a editora paga aluguel, salários e todos os demais custos fixos. O que sobra é lucro.

É um negócio de margens apertadas, porque exige capital de giro (já que a editora começa a pagar muito antes de começar a receber) para seguir repetindo esse investimento mês a mês com cada lançamento. É uma média, claro: um livro sem tradução tem custo menor, um livro com imagens tem custo maior, um livro mais disputado pode ter um adiantamento dez vezes maior etc.

Nem todo livro bate seu custo, e não é raro que ele passe anos no catálogo sem cobrir o que foi gasto. Os livros de sucesso ajudam a compensar os que não foram bem, numa matemática que envolve riscos (nunca sabemos qual livro vai vender), escolhas (a decisão de publicar livros de menor potencial comercial, mas de enorme mérito literário etc.) e mais custos (um livro de sucesso exige dinheiro para ser reimpresso).

E mesmo livros que vendem num ritmo mais lento eventualmente precisam ser reimpressos. Diferentemente de uma marca de roupas, que troca de coleção a cada quatro meses, em uma editora o catálogo só cresce, e manter todos os livros disponíveis engole uma parte considerável do caixa.

(Isso tudo, claro, falando de editoras de porte médio ou maior, onde sempre trabalhei. Nas independentes, pelas conversas com colegas, a vida me parece bem mais complicada, e os problemas ainda mais diversos.)

É desagradável falar de dinheiro e livro. São justamente as características positivas do livro –sua capacidade de informar, de promover debates, de entreter, de registrar e disseminar conhecimento– que tornam a percepção de seu valor tão difícil.

Se algo é tão bom, se algo tem um impacto tão positivo na sociedade, como ele pode estar inserido na roda e na lógica do capital? O livro vale muito, e ao mesmo tempo não pode valer nada.

Ainda assim, o problema do acesso persiste. Felipe Neto está certo: R$ 74 é um valor difícil em um país em que o salário mínimo é R$ 1.320. Mas, afinal, quanto vale um livro?

Um ingresso para o filme "Missão Impossível" custa, em média, R$ 50. Com uma pipoca e o estacionamento, esse valor chega facilmente a R$ 100. Multiplique por uma família, um grupo de amigos. Um único livro de R$ 74 pode ser compartilhado por todos eles.

A conta não é tão fácil, claro. Ainda assim, não estranhamos quando uma estrela de cinema ganha uma bolada, ou quando um influenciador digital fecha um contrato milionário com alguma marca. É uma conta de investimento e retorno, e ambos sabem o valor que têm e o que podem gerar.

No livro, R$ 39 mil de faturamento sobre um investimento de R$ 65 mil, e após meses sem receber nada, é ganância. O livro é uma espécie de Madre Teresa de Calcutá da indústria cultural.

As saídas não são simples. Felipe Neto ecoa a percepção errada de que as editoras estão "metendo a faca no livro digital", que seria "quase de graça para produzir". O livro digital tem todos os custos que mencionei, menos o de impressão. E, se no livro físico a remuneração é pelo preço original (chamado de preço de capa), mesmo se ele estiver em promoção, no ebook é pelo preço que o leitor pagou (mais alguns descontos).

Uma parte grande desses livros não pode ter um desconto no digital maior do que o estipulado em contrato. Nos demais, seria possível cobrar, digamos, R$ 10? É justo que o autor e editora sejam remunerados com R$ 2,50 (arredondando para cima) por exemplar vendido? É sustentável numa cadeia que envolve livreiros, tradutores, preparadores, gráfica?

O que isso diz sobre o quanto realmente valorizamos o livro? Um influenciador que endossa um produto no Instagram, por ser apenas uma plataforma digital e com custos baixos, também vai baixar seu valor?

Felipe Neto fala também em regulamentação e incentivos do governo. O livro já é subsidiado via isenções de impostos, uma conquista que o atual governo manteve na Reforma Tributária, após as ameaças de Paulo Guedes. Para o governo, estamos lá, com o feijão e o arroz, na lista das necessidades básicas. Não sei exatamente o que mais poderia ser feito além disso.

Você pode, é claro, diminuir seus custos, mas isso é diminuir a remuneração de uma parte da cadeia. Traduções mais baratas, apenas uma revisão —o corte é na qualidade e no bolso das centenas de profissionais que fazem parte da nossa indústria. Em um ecossistema já tão frágil, o que acontece quando você precariza o trabalho?

O que o governo pode fazer, e faz, é comprar livros, em programas municipais, estaduais e nacionais, como o PNLD. São tiragens altas, que chegam a estudantes do Brasil inteiro, a muitos lugares que não possuem nem livrarias. O governo brasileiro é o maior comprador de livros do país.

Inúmeras editoras no Brasil contam com esses programas de governo, em graus variados de dependência. São negociações difíceis, porque têm margens baixas e custos altos, mas pela sua escala continental os programas são sempre bem-vindos e comemorados.

O leitor tem a opção de buscar um preço melhor nas lojas. Quando uma livraria oferece um preço mais baixo em um livro, o desconto oferecido por ela sai da sua própria margem de lucro. Um grande varejista digital tem caixa para oferecer descontos exorbitantes —uma livraria de rua não tem.

Quando falamos em lei do preço fixo —um desconto máximo, digamos, de 10% durante o primeiro ano de vida do livro—, o leitor se sente prejudicado, pois o livro vai encarecer. O mesmo leitor professa seu amor pelas livrarias pequenas e demoniza o varejo online. Em um cenário de aperto financeiro para centenas de livrarias físicas, vamos lutar para que elas lucrem menos ou mais?

Um produto mais barato vende mais e, como eu disse, nunca vi um editor defender que seu livro fique mais caro. No entanto, se não sabemos quais livros vão vender, temos perfeita ciência de que alguns não encontrarão milhares de leitores.

É claro que você quer que o calhamaço em linguagem experimental chegue ao leitor. E é importante publicar ensaios acadêmicos, filosofia. Alguns livros bons simplesmente são menos comerciais que a média, o que em nada diz respeito à qualidade deles.

Mas eles vendem em um ritmo mais lento, é mais difícil de acertar sua tiragem, e muitas vezes terão de custar mais de R$ 74 para cobrir o que foi gasto neles. Nesse cenário, deixaremos de publicá-los? O que isso significa para a bibliodiversidade?

De modo que, quando estamos numa reunião de preços e vemos aquele livro no qual o autor trabalhou por anos, no qual toda a editora esteve de alguma forma envolvida, e do qual depende a sobrevivência de um ecossistema que vai da pessoa que emite a primeira nota fiscal ao caixa da livraria, quanto esse livro deve custar? Quanto ele vale para o leitor?

O cenário não é bom: o papel, que é um monopólio da Suzano no Brasil, é uma commodity dolarizada, e está caro. Os serviços gráficos também subiram muito acima da inflação.

O livro de bolso, outra sugestão frequente, representa uma pequena economia de impressão, e a queda no preço só fica mais expressiva se o autor passa a receber 6%, que é a média para esse formato. É justo diminuir a remuneração do autor?

Ainda assim, o livro não pode ser um artigo de luxo. A revolta de Felipe Neto é a revolta de milhares de leitores, que gostariam de ter mais livros, de ler mais.

Mas, e se começássemos a dar valor ao livro, pelo menos o valor de duas horas de Tom Cruise e um balde de pipoca? Vivemos em um país que valoriza a leitura —a criança que gosta de ler é o orgulho da família—, mas não o livro.

Somos uma indústria frágil, suscetível a qualquer brisa que atinja a economia. Felipe Neto fez e faz muito pelo livro no Brasil, inclusive combatendo a censura, como no episódio na Bienal do Rio.

Ele é um aliado do livro e um leitor. Quando fala, milhões de pessoas prestam atenção. Seu papel nessa discussão pode ser fundamental, mas não em detrimento de quem escreve, publica e vende livros.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.