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Greve dupla em Hollywood pode acelerar investimentos fora dos EUA

Globalização da indústria afeta centros de produção em todo o mundo, mas tem potencial para beneficiar o Brasil

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Eduardo Sombini
Eduardo Sombini

Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

[RESUMO] A paralisação concomitante de roteiristas e atores de Hollywood, que não acontecia desde 1960 e mira as mudanças estruturais promovidas por plataformas de streaming no setor, terá impactos globais. Países que recebem grandes produções americanas sofrerão perdas com a suspensão de filmagens, enquanto centros emergentes, como o Brasil, podem se beneficiar com o apetite por conteúdos estrangeiros, o que abre uma janela para a regulação do vídeo sob demanda no país.

Da última vez que Hollywood enfrentou uma paralisação semelhante, Reagan era presidente —não dos Estados Unidos, mas do SAG-AFTRA, o sindicato de atores e atrizes do país.

Depois de meses de negociação com a AMPTP, a associação que representa os conglomerados de cinema, streaming e televisão, não houve acordo entre as partes e a categoria decidiu entrar em greve nesta quinta-feira (13), se somando à paralisação dos roteiristas, que chega ao terceiro mês sem perspectivas de resolução.

Membros do SAG-AFTRA, sindicato de atores e atrizes dos EUA, levantam cartazes em apoio à greve de roteiristas, em frente a escritório da Netflix em Los Angeles - Mario Tama - 13.jul.23/Getty Images via AFP

Como em 2023, atores e atrizes decretaram greve em 1960 depois do início dos piquetes de roteiristas. Como em 2023, a reivindicação central dos sindicatos é uma divisão mais justa dos lucros obtidos com a exploração comercial das obras, em mais um sinal de que a hegemonia das plataformas de streaming tem levado a retrocessos para os trabalhadores em acordos pactuados ao longo das últimas décadas.

A ruptura tecnológica e a concentração de capital no setor, estremecido por inúmeras fusões e aquisições, também criaram problemas novos. Os sindicatos reclamam da diminuição das temporadas das séries, que solaparam os rendimentos dos artistas, e veem o avanço da inteligência artificial como uma ameaça existencial ao seu trabalho.

A globalização da produção audiovisual, que ganhou tração a partir dos anos 1990, também mudou os termos da equação em Hollywood.

Em tempos de liberalização econômica e competição de países e cidades de todo o mundo para atrair os investimentos vultosos de produções de cinema e televisão, os grandes estúdios deslocaram parte de suas filmagens e de atividades de pós-produção, como efeitos visuais, para destinos com boa infraestrutura e menores custos.

A indústria de Vancouver se estruturou a partir das "runaway productions" de Hollywood, que logo se estenderam para outras províncias do Canadá e para a Austrália e o Reino Unido. Hoje, Netflix, Prime Video e suas concorrentes investem uma fração nada desprezível de seus orçamentos bilionários de conteúdo em países como Colômbia, Coreia do Sul, Espanha, França e México — e, em menor grau, no Brasil.

Com uma indústria globalizada e centros de produção altamente dependentes das corporações americanas, os impactos da dupla paralisação de Hollywood também serão globais.

A iminência da greve de atores e atrizes levou à conclusão apressada de filmagens de vários projetos nas últimas semanas, mas há uma lista extensa de produções que conseguiram contornar a greve dos roteiristas e terão que ser adiadas ou canceladas em razão da paralisação dos membros do SAG-AFTRA.

As filmagens da quarta temporada de "Emily em Paris", por exemplo, haviam sido transferidas para outubro e devem ser mais uma vez adiadas, de acordo com a Variety, que também cita a interrupção das filmagens no Marrocos da sequência de "Gladiador", protagonizada por Paul Mescal e Pedro Pascal, e de "Mortal Kombat 2" na Austrália.

Um dirigente sindical britânico resumiu à revista o problema: "Sempre dissemos que, se o circo deixar a cidade, que tipo de produção nativa teremos?". "Dependemos do investimento estrangeiro, e isso expõe um ponto fraco."

A organização da produção de cinema e televisão em extensas redes globais certamente não será revertida, mas é possível que produtoras com maior poder de negociação com as plataformas americanas reavaliem os riscos dos projetos depois da greve dupla deste ano. Gestores de políticas audiovisuais também devem questionar se programas voltados à atração de projetos estrangeiros não ganharam peso excessivo e tornaram suas indústrias locais vulneráveis.

Um cenário muito diferente se desenha para os países com setores menos maduros e mais abertos aos investimentos de Hollywood, como o Brasil, e as plataformas americanas com forte programação de conteúdos originais estrangeiros, como a Netflix, vista como vilã nos piquetes por ter protagonizado a grande disrupção da última década.

Em abril, antes do início da greve dos roteiristas, Ted Sarandos, diretor-executivo da corporação californiana, mencionou as vantagens dos tentáculos globais da companhia frente à concorrência: "Não queremos uma greve. [...] Mas, se houver uma, temos uma grande base de séries e filmes futuros de todo o mundo. Por isso, provavelmente, podemos servir nossos membros melhor que a maioria".

"Precisamos fazer planos para o pior. Temos uma lista de lançamentos bastante robusta para aguentarmos por bastante tempo." O mesmo não pode ser dito de NBC, CBS e ABC, as principais redes de televisão controladas, respectivamente, por Comcast, Paramount e Disney, que devem sangrar com a estiagem de novos programas.

Desde a pioneira "3%", de 2016, as produtoras brasileiras ganharam experiência capitaneando projetos ambiciosos para as plataformas de streaming, que vêm demonstrando interesse crescente pelas histórias do país. Se esse movimento se consolidar, as empresas locais poderão ganhar alguma margem de manobra e ter chances de negociar contratos menos desiguais, mas os grandes nós dessa relação não vão ser resolvidos.

O maior deles diz respeito aos direitos patrimoniais das produções originais. Produtores independentes vêm se queixando das limitações do modelo de prestação de serviço para as plataformas globais, em que, por não controlarem a propriedade de suas obras, não tem direito aos lucros futuros de sua exploração.

As plataformas pagam um valor fechado e nada mais se a série ou o filme tiver sucesso —não é nem possível ter acesso aos dados de audiência—, o que fragiliza a perspectiva de sustentabilidade financeira das empresas brasileiras e a própria ideia de um setor menos dependente de investimentos públicos.

O combo de greves em Hollywood, o amadurecimento da produção independente nacional desde a entrada em vigor, há 12 anos, da Lei da TV Paga, cujas cotas de conteúdo nacional expiram em setembro, e a aposta de plataformas globais em conteúdos estrangeiros só faz aumentar a urgência do debate sobre a regulação do vídeo sob demanda, que sofreu com a letargia das políticas culturais durante o governo Jair Bolsonaro (PL) e os constantes ataques ao setor.

Vivemos, sem dúvida, uma conjuntura muito favorável para enfrentar antigos e novos entraves que põem freios à produção audiovisual brasileira.

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