Descrição de chapéu
Caio Sens

'Barbenheimer' não é uma contradição

O que é mais eficaz, o poder bélico ou a influência ideológica?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Caio Sens

Formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, é jornalista

São Paulo

[RESUMO] O meme "Barbenheimer" compara o apelo visual dos filmes "Barbie" e "Oppenheimer". A estética das duas produções é claramente contrastante, mas há uma possibilidade de leitura que aproxima as obras. O impasse militar da Guerra Fria, em grande parte motivado pelo controle da tecnologia nuclear pelas maiores potências mundiais, gerou a necessidade de expansão do campo de influência desses blocos. Nesse contexto, a boneca Barbie simboliza um ideal de vida liberal, difundindo um padrão a ser seguido.

Desde que foi anunciado (ainda em 2022) o lançamento concomitante dos filmes "Barbie" e "Oppenheimer", memes pipocaram comparando as duas obras. De um lado, as cores saturadas e o sorriso branqueado de Margot Robbie; de outro, a monocromia e as olheiras proeminentes de Cillian Murphy. O contraste é tão óbvio que se torna cômico; mas são temáticas tão diferentes assim?

Memes que brincam com as estréias de "Barbie" e "Oppenheimer" viralizam nas redes sociais
Memes comparam a estética de "Barbie" e "Oppenheimer" - Reprodução/Redes Sociais

A princípio, o longa-metragem sobre o físico teórico representaria o espectador mais tradicional, preciosista a ponto de escolher a sala de cinema com base nos critérios técnicos de reprodução do rolo de filme. Alguém no limiar entre o adepto da estética noir do Nolan e o intelectual estereotipado  — que já sabia quem era Oppenheimer antes de pesquisar no Google, e faz questão de deixar isso claro.

O filme sobre a boneca, em direção oposta, cumpriria o papel definitivo de ser mais leve e alienado. Construído para um público que preza por um entretenimento menos sisudo. Que é saudosista e afeto das estridências dessa "criança interior" que habita o espectador que já passou dos 30. Exigências? Só se for no tom rosa choque das roupas, do chapéu, do carro, da comida, do cenário para os vídeos de Instagram.

Todavia, essa aparente antítese talvez ofusque outras camadas da relação entre os filmes. É possível uma leitura a partir de um contexto mais amplo, que os aproxima. A verdade é que, guardadas as proporções, ambos são desenvolvimentos diferentes de uma mesma questão.

A invenção de Oppenheimer teve consequências lúgubres. Os ataques a Hiroshima e Nagasaki resultaram na devastação completa de alvos civis. A comunidade internacional se mostrou atônita com os resultados, e logo o domínio da tecnologia nuclear se tornou uma questão de sobrevivência para as grandes potências. Um "mal necessário" que garantiria um revide à altura para qualquer agressão.

A ameaça mútua de pulverização de populações inteiras chocava até os líderes mais radicais. Estados Unidos e União Soviética entraram em um impasse sem solução, e a guerra fria se tornou "fria" justamente por isso. O medo correspondido gerou tensão constante, mas possibilitou, ironicamente, um longo período sem guerras sistêmicas.

Se o ataque nuclear deixava de ser uma opção de ação, a alternativa encontrada era uma disputa por influência. O conflito bélico deu lugar à persuasão através da ideologia e da cultura. Algo que nas relações internacionais se apelidou de soft power.

Trazendo foco para os EUA, nesse ambiente se desenrolam a doutrina Truman, a corrida espacial e um esforço constante por mostrar para o mundo que o modo de vida capitalista era a melhor opção para o progresso e a liberdade  — em oposição à alternativa socialista.

No entanto, para que a meritocracia –que justifica a competição liberal– fizesse sentido, ela precisava de um objetivo claro e didático. Nesse sentido, é difícil pensar numa referência mais óbvia e eficaz que uma boneca feita de plástico. Um produto reprodutível que personifica esse padrão de vida (e de beleza). Uma meta clara e simples; não necessariamente alcançável, mas que sem dúvida alguma pode ser almejada.

A Barbie cumpria todos os requisitos para se tornar o padrão de vida ideal para a mulher do século 20 (em uma sociedade profundamente patriarcal). Ela começa vestindo um maiô, reafirmando seu papel de "modelo" feminina, mas com facilidade absorve as reviravoltas das décadas seguintes. Versátil, criativa e adaptável  —como a imaginação infantil—  ela vai pouco a pouco abraçando tudo aquilo que ganha projeção na sociedade. Do modernismo dos anos 60 à contracultura e o movimento hippie, das mangas bufantes ao estilo pop de Madonna.

A emancipação não poderia ser completa sem a independência financeira que viria com as profissões da Barbie. As opções no início eram bastante restritas, mas crescem exponencialmente nos anos 90. Seguindo o conceito liberal, a boneca pode expressar sua liberdade sendo quem ela quiser. Há ainda um esforço contínuo da Mattel por incluir mais diversidade (mesmo que lentamente), respondendo a um mundo que exige revisão constante de posicionamento.

A Barbie reúne uma vantagem clara sobre o trabalho de Oppenheimer. É eticamente muito mais palatável que a bomba atômica. Além disso, desconfio que a hegemonia conquistada pela admiração tem a capacidade de ser mais durável que aquela arrancada pelo medo. Não que na ausência de uma, a outra não seja uma alternativa, mas me parece interessante trocar um pouco dos gastos militares exorbitantes por lucro nas vendas de um bem de consumo.

Sob esse aspecto, a Barbie e o trabalho de Oppenheimer convergem no objetivo da manutenção de uma posição hegemônica —ainda que a União Soviética já não exista mais e que a Guerra Fria esteja hoje restrita aos livros de história.

A diretora de "Barbie", Greta Gerwig, tem uma atuação excepcional, principalmente dirigindo papéis femininos. Quem esperava um filme simplista, se decepcionou. A boneca que chegou aos anos 90 não cabe em 2023, e essa questão já foi compreendida e incorporada pelo mercado há muitos anos.

Greta foi escalada provavelmente para corresponder a essa necessidade de atualização. Quem, por outro lado, esperava uma revolução subjetiva de um símbolo tão fortemente comercial, também não encontrou eco. A Mattel precisa continuar existindo, e a Barbie precisa se manter presente nas casas do maior número de famílias possível.

Os 17 km de película de "Oppenheimer" tampouco iriam representar uma culpabilização direta dos EUA pelas mortes causadas com o uso da bomba. Não vai haver um mea culpa incondicional –como foi a rendição do Japão após a destruição das duas cidades. Ainda assim, não estamos mais em tempo de planificar um personagem ao nível de herói nacional absoluto.

Ambos os filmes são fruto da cultura de exportação da (ao menos por enquanto) maior potência mundial. Acontece que esse soft power não é facilmente mantido. É preciso se adaptar como a Barbie. Melhor que nadar contra a maré é se adiantar e, se possível, orientar o caminho —evitando a perda do controle da narrativa.

Quanto à pergunta do início, sobre qual é mais eficaz, deixo a resposta definitiva para alguém que se debruce academicamente sobre o assunto. Talvez ela nem exista — como mensurar? Mesmo que a associação seja possível por um aspecto, em muitos outros ela não existe.

Indiscutível é o sucesso desbalanceado do filme "Barbie" em comparação com "Oppenheimer" nos últimos dias. Ingressos esgotados na pré-venda, cidades tomadas por cor-de-rosa. Até a última terça-feira (25), o primeiro havia faturado cerca de US$ 472 milhões no mundo, contra US$ 220 milhões do último. Pode ser uma dica.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.