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Zeca Camargo

Filme de Taylor Swift se opõe à energia caótica de obra do Talking Heads

'Stop Making Sense', gravado há 40 anos, abriu portas que o atual show business se recusa a ultrapassar

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[RESUMO] O filme "The Eras Tour", que registra um show da atual turnê superlativa de Taylor Swift, é a antítese do que o Talking Heads apresentou em "Stop Making Sense", lançado em 1984, uma das melhores obras do gênero. O pandemônio comandado por David Byrne, que apontava para o inesperado, não tem espaço no mundo pop de hoje, em que todos os detalhes são minimamente controlados.

"Um conselho para não ser racional o tempo todo". Foi assim que David Byrne, então com o Talking Heads, descreveu em uma cândida entrevista a David Letterman em 1984 o título do clássico "Stop Making Sense", considerado até hoje um dos melhores registros de um show de música para o cinema.

Não é incrível pensar que, quase 40 anos depois, outro marco histórico da categoria, "The Eras Tour", com Taylor Swift, tenha batido todos os recordes de bilheteria trazendo à grande tela exatamente o oposto do que sugeria Byrne?

O blockbuster de Taylor, que estreou há duas semanas em salas brasileiras, já é o maior filme de um show lançado até hoje —apenas um documentário musical, "This Is It" (2009), de Michael Jackson, uma variação desse universo musical, registrou bilheteria maior. O feito é merecido.

"Eras" é exatamente tudo que os swifties, como são conhecidos os fãs da cantora, esperavam ver: músicas perfeitas, coreografias (em sua maioria, dançadas por um elenco impecavelmente diversificado) sob medida, efeitos que combinam o melhor da tecnologia com a quintessência da moderna (leia-se à la Cirque du Soleil) direção de arte.

Cada canção que Taylor entoa, cada introdução de um segmento do seu show de quase três horas, cada close que o diretor Sam Wrench se esforça para mostrar sem a interferência de uma tela gigantesca de LED ou do ruído incômodo dos milhares de celulares da plateia —tudo isso resulta no filme impecável. Tudo nele faz sentido.

É, ironicamente, a antítese do que o Talking Heads propunha quase 40 anos atrás. "Stop Making Sense" foi relançado nos cinemas dos Estados Unidos neste ano para celebrar a genialidade e o frescor que ele trouxe àquele já exuberante início dos anos 1980.

Os elogios, claro, vão para a banda, em especial para as performances icônicas de Byrne, mas é inegável que o diretor Jonathan Demme é parte importante também na criação dessa obra-prima.

Morto em 2017, Demme, que ganharia um Oscar de melhor diretor por "O Silêncio dos Inocentes" (1991), ainda era o que se podia chamar de alternativo naquele começo de década, e a vontade de capturar a energia do Talking Heads no palco acabou criando a oportunidade perfeita para uma colaboração memorável.

A abordagem de Demme é espartana, o que fica nítido logo de início, quando Byrne entra sozinho no palco, com um violão e um toca-fitas e diz: "Tenho um cassete que quero tocar para você". O palco está pelado, vê-se escadas das coxias, paredes de fundo e mais nada. A batida, os fãs logo reconhecem, é de "Psycho Killer", um dos maiores sucessos da banda. Dali em diante, nada mais faz sentido ou, como diria o Radiohead em 2000, tudo estava no seu lugar certo.

Aos poucos, os outros membros da banda vão chegando, canção por canção. Além do quarteto original, que conta com Chris Frantz, Tina Weymouth e Jerry Harrison, vem um reforço precioso de duas "backing vocals", Ednah Holt e Lynn Mabry, do percussionista Steve Scales, do guitarrista Alex Weir e da referência nos teclados Bernie Worrell (ex-Parliament-Funkadelic). As coisas fazem cada vez menos sentido e ficam cada vez mais geniais.

Gravado em dezembro de 1983 na mesma Los Angeles onde foi captado o material para o filme de "Eras", "Stop Making Sense" é pura energia caótica. Dos sopetões que Byrne dá na própria testa ao repetir o verso "Same as it ever was" de "Once in a Lifetime", ao "pas-de-deux" improvável que ele faz com um abajur de chão no final de "This Must Be the Place (Naive Melody)", quem assiste ao concerto pela primeira vez, mesmo hoje, em 2023, não para de se indagar: "O que está acontecendo?". Ou ainda: "O que ainda pode acontecer?".

Perguntas como essas nem passam pela mente de quem teve (ou terá, já que Taylor Swift está chegando ao Brasil para apresentações ao vivo) o privilégio de ver qualquer apresentação da "Eras Tour". As surpresas estão lá, não duvide, desde a aparição mágica de Swift no meio daqueles leques colossais, em uma possível releitura de "O Nascimento de Vênus", de Botticelli. Mas a diferença é que os fãs ali sabem exatamente quando vão arregalar o olho, quando vão soltar um grito entusiasmado, quando vão beirar a histeria. Tudo funciona bem.

Mesmo um swiftie bissexto como este que aqui escreve, que admira musicalmente toda a obra da cantora e ainda se encanta com o poder que ela devolveu aos artistas no corrupto mundo do show business, mas que (confissão) não reconheceu nem metade das músicas da turnê, é capaz de acompanhar seus 169 minutos em um estado de suspensão e fascínio.

Durante os créditos, mais que o refrão, o que fica na sua cabeça é a compreensão total do poder que Swift tem. Sobre um estádio com dezenas de milhares de espectadores. Sobre a música. Sobre o palco. Sobre a mídia. Sobre as câmeras. Sobre você.

Os figurinos, sempre com muito brilho, vão de Liza Minelli em "Cabaret" (1972) revisitada, com uma camiseta onde se lê "Muita coisa acontecendo nesse momento", à Cinderela reimaginada como uma Elsa ("Frozen") para o século 22. Botas brilham tanto quanto os vestidos e os violões mudam de cor conforme o clima no palco. É tudo tão feérico que se alguém disser que flutuou durante o show, você é capaz de acreditar.

Mas aonde Swift, com seu enorme talento, está levando toda essa gente toda mesmo? A algum lugar que elas já conhecem. Que é exatamente o que o show business exige hoje em dia. Daquele pedido surrado de Byrne 40 anos atrás, já não ouvimos nem o eco. Talvez porque, como uma audiência exausta de tanta oferta, nos cansamos de sermos surpreendidos. Veja onde chegamos: uma artista incrível como essa e que experiência vivemos?

Novamente, é o Radiohead que nos empresta uma referência musical, mas dessa vez com ironia. Em 1997, já perto do fim de "OK Computer", Thom Yorke suplicava: "Sem surpresas, por favor". Parece que o mundo pop aquiesceu.

Raras são as vozes realmente destoantes que vieram depois disso. Madonna inevitavelmente seguiu provocando, mas quem ainda queria ser instigado por sua inteligência transgressora? Amy Winehouse chegou e soprou esperança, apenas para desaparecer como uma triste promessa não cumprida. Aí tem Gaga, sim, mas que com tantos projetos saindo de sua cabeça de talentos infinitos, só deixa nós, little monsters, com saudades de quando ela não fazia questão de fazer sentido.

Beyoncé, que logo chega com seu próprio filme, registro da turnê "Renaissance", comanda irreparavelmente outro tipo de revolução: a de uma sociedade inteira que, com a força da sua música, questiona seus valores ao mesmo tempo que celebra seus shows com uma idolatria maravilhosamente religiosa. Ou, como ela mesma já cantou, "going apeshit". Mas precisamos de mais.

Tudo o que vem desses faróis adorados e adoráveis do pop é grande demais, porque é assim que parece que tem que ser. Mas, insisto, lá em 1983, em um teatro em Los Angeles, David Byrne escolheu fechar "Stop Making Sense" com um terno exageradamente maior que seu próprio corpo porque ele queria que sua cabeça parecesse pequena no palco. Aliás, totalmente de acordo com a proposta de não ser racional o tempo todo.

Para promover o relançamento de "Stop Making Sense", Byrne foi recentemente ao "Late Show", de Stephen Colbert, em uma raríssima aparição com seus antigos companheiros de banda. Ele deu quase a mesma resposta para a mesma pergunta quarentona sobre o nome do filme: "Eu queria que as pessoas confiassem mais nos seus instintos, seus sentimentos, só para ver o que pode acontecer".

No caso de "Stop Making Sense", o que aconteceu no palco foi um glorioso pandemônio. A banda nunca foi fraca nas suas apresentações ao vivo —e quem precisar de uma prova definitiva disso só precisa ouvir "The Name of This Band Is Talking Heads" (1982), o épico álbum duplo com gravações de shows entre 1977 e 1981. Mas aí chega Byrne com aquele terno e o mundo se prepara para dar mais uma volta sobre seu eixo. No sentido contrário.

A música é "Girlfriend Is Better", uma favorita do público, e primeiro vemos só uma sombra, em uma velada referência a outro clássico, "A One Man Show", de Grace Jones (1982), dirigido pelo genial Jean-Paul Goude. Aí vem o terno, com a cabeça diminuta de Byrne. Nos primeiros versos, apenas um holofote dança com a sombra do cantor, mas logo a apresentação evolui para uma apoteose de um corpo sambando solto em uma silhueta que nunca parece muito adequada.

Certamente inspirado pela coreógrafa Twyla Tharp, com quem ele havia trabalhado um ano antes em um projeto chamado "The Catherine Wheel", Byrne começa a oscilar como se fosse feito só de cartilagem. Seu rosto é tão diabólico quanto o de Mick Jagger no filme de Jean-Luc Godard ("Sympathy For the Devil", 1968") e a banda a essa altura já transcendeu o plano terrestre. Quando, no quarto minuto da música, ele começa a gritar "Stop making sense" repetidamente, toda a causa está perdida. Mesmo assim, todo um universo se abre.

Ninguém fechou essas portas ainda. Artistas incríveis, entre eles os vários que citei aqui, continuam a espiar por suas frestas, mas sem ainda ter a coragem de entrar nelas integralmente, como fez o Talking Heads. Torço para que esse dia chegue.

Porque, se essa realeza pop já é capaz de nos dar tanto controlando os mínimos detalhes de tudo o que nos apresentam, imagine o que ela pode nos oferecer se atrevidamente deixar de fazer sentido. Ao menor sinal de hesitação, voltem sempre para Byrne, que termina sua apresentação com uma pergunta generosa: "Do you have any questions?".

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