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Peça traz realismo fantástico de Borges para nova geração

'O Outro Borges' tem biblioteca como eixo central e explora a ideia de duplo por meio de encontro do escritor consigo mesmo

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Ubiratan Brasil

Graduado em jornalismo pela USP, cobriu esportes e cultura e escreve sobre literatura, cinema e teatro

[RESUMO] Peça em cartaz no Sesc Pinheiros, baseada em "O Aleph", amalgama contos em que Jorge Luis Borges traça um perfil de si próprio e traz à tona um jogo de espelhos que lembra os multiversos que hoje se multiplicam em blockbusters.

O conto "O Outro", de "O Livro de Areia", descreve um encontro que o escritor argentino Jorge Luis Borges teve em 1969 com seu eu mais jovem, que vive em 1918. É a história de um homem idoso que, a essa altura, estava cego e, portanto, ditava sua escrita a um assistente.

Refletindo sobre sua vida, ele informa o que o jovem pode esperar no futuro: "Quando você atingir a minha idade, terá perdido quase totalmente a visão. Você poderá ver a cor amarela, luz e sombra. Mas não se preocupe. A cegueira gradual não é trágica. É como a escuridão crescente de uma noite de verão."

Jorge Luis Borges em Paris em 1983 - 17.jan.1983/AFP

A história abre o conjunto que envolve as espirais do tempo e o motivo do duplo, que Borges (1899-1986) aprendeu a admirar nas páginas lidas e relidas de Robert Louis Stevenson e refaz agora em delicada chave pessoal.

"Hoje o conto seria um belo exemplo do metaverso encontrado no cinema de ação", observa a atriz Chiara Lazzaratto, 22, referindo-se a uma concepção de múltiplos universos ou realidades paralelas existentes em simultâneo, presentes em filmes blockbusters como "Homem-Aranha: Através do Aranhaverso". "Aqui também há o encontro de uma pessoa consigo mesma em momentos distintos da vida."

Chiara é uma das intérpretes da peça "O Outro Borges" que, desde sua estreia no Sesc Pinheiros, atrai uma legião de jovens espectadores que descobriu, em um autor complexo e erudito como Borges, temas que lhe são caros, mesmo desconhecendo a obra do autor argentino.

"Borges sentia profundamente aspectos ligados à decadência do mundo moderno e cultivou símbolos e temas recorrentes na sua ficção —o labirinto, o sonho, os espelhos, o tempo e a eternidade, a divina comédia, o budismo— que ainda exercem um poderoso fascínio, em enredos que misturam o fantástico, a mística, a filosofia, a trama policial, para além das dificuldades que a sua literatura apresenta", afirma Cassiano Sydow Quilici, professor do Instituto de Artes da Unicamp, em comentário sobre o espetáculo.

Escrita por Samir Yazbek, a peça conta a história do dia em que Borges, vivido por Marcello Airoldi, já ciente de que a morte está próxima, se prepara para viajar para a Suíça e é informado de que sua casa (e outras da redondeza) em Buenos Aires terá de ser demolida para ampliar a rede de estações do metrô.

A notícia tende a se agravar com a chegada de um engenheiro (André Garolli) que vai oficializar a destruição. Ele, porém, confessa ser um ex-aluno de Borges e o faz acreditar na existência do Aleph, objeto mágico que permite a quem olha dentro dele viajar por diversos lugares do mundo. Trata-se do título do conto do livro que leva o mesmo nome, publicado em 1949 e considerado pela crítica um dos pontos culminantes da ficção de Borges.

Homem de meia idade está em pé e, na sua frente, uam mulher está sentada; ela segura seu braço de forma fraternal
Marcello Airoldi e Helô Cintra Castilho em cena de 'O Outro Borges' - João Caldas/Divulgação

Na peça, o Aleph está incrustrado no meio das inúmeras estantes de livros da casa e, como na literatura, isso acentua o gênero fantástico, pois a realidade é transformada, com a vida real deslizando para contextos incomuns e ganhando significados extraordinários. O escritor permite que a "descoberta" do Aleph seja feita por uma menina, vivida por Chiara, que chega à casa naquele momento de incertezas.

"É uma jovem que não vê a literatura como intenção de vida, mas, mesmo assim, estabelece uma forte ligação com Borges: ele permite que ela descubra o que virá a ser. Isso é outro ponto de atração do público mais jovem, que tem avós que partem e deixam um sensível legado do conhecimento", diz o diretor Marcelo Lazzaratto. "É um duplo rito de passagem, pois tanto o escritor como a menina se sentem modificados."

Yazbek trabalhou durante anos na criação da peça. "Comecei a escrever o texto por um convite feito pelo diretor Antunes Filho no final da década de 1980. Era desejo dele mesclar a obra de Borges com o universo de 'As Mil e uma Noites', mas as pesquisas nos fizeram perceber que a obra do Borges era suficientemente rica no sentido de oferecer material para uma peça de teatro", relembra.

"Foi assim que chegamos ao conto 'O Aleph', do livro homônimo, como base ficcional para a dramaturgia, mas logo percebemos que não queríamos exatamente fazer uma adaptação do conto."

Durante a reclusão obrigatória imposta pela pandemia, Yazbek pesquisou outros textos do autor argentino, que também foram decisivos na elaboração da peça, como "O Outro" e também o conto "Borges e Eu", incluído no livro "O Fazedor", de 1960. Trata-se de uma narrativa ardilosa, em que o autor traça um perfil distinto de si mesmo —mas que é ele mesmo.

"Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica", diz o texto.

"É possível imaginar quanta leitura das obras de Borges e sobre ele foi feita pelo dramaturgo a fim de criar ficção a partir de pessoas reais. É sempre um desafio esse tipo de trabalho que exige uma imaginação vigiada o tempo todo pelo cuidado para não extrapolar a verossimilhança", afirma o pesquisador teatral João Roberto Faria, que também assistiu ao espetáculo.

Nascido em Buenos Aires em 1899, Borges era um rapaz franzino e de óculos grossos que se tornou alvo fácil de valentões. Era uma cultura, como aponta o crítico Joseph Epstein, "que dava grande valor à capacidade física e à coragem".

Na falta de ambos, Borges passou a maior parte de sua juventude vasculhando a eclética biblioteca de seu pai. "Se me pedissem para nomear o principal acontecimento da minha vida", escreveu Borges, "eu diria a biblioteca do meu pai". Ele foi um autodidata clássico, um menino que se abrigou da crueldade real no mundo da literatura.

Não é nenhuma surpresa descobrir que o menino —que sobreviveu à adolescência em mundos de fantasia, aventura, história e poesia— cresceu e se tornou um escritor de ficções pseudo-acadêmicas.

"É uma ideia genial fazer da biblioteca o eixo central do enredo, atualizando a figura de Beatriz Viterbo, do conto 'O Aleph', como musa inspiradora de Borges", completa Jorge Schwartz, professor e pesquisador, autor de "Borges Babilônico" (Companhia das Letras), glossário crítico com mais de mil verbetes que ajudam a decifrar Jorge Luis Borges. "Não se pode esquecer do equilíbrio preciso que a encenação propõe, entre o drama e o humor, típicos do imaginário e da vida de Borges."

"O Aleph surge como metáfora da cultura, assim como o embate com as forças do progresso que são representadas pela linha do metrô", diz Yazbek. "A peça se chama 'O Outro de Borges' não só para aludir ao conflito entre a persona pública do autor e a sua subjetividade, mas, sobretudo, para destacar a personagem do jovem Borges (aqui representada por uma mulher, feliz decisão de Lazzaratto), que representa no atual contexto a possibilidade de impedir o declínio dessa cultura."

Nas discussões dos jovens que assistem ao espetáculo, outro destaque é a forte influência da presença materna. Na peça, a Mãe (Lilian Blanc) é uma mulher conservadora, mais preocupada com suas perdas materiais que com a matança provocada pelos militares ditadores. Também não aceita a argumentação favorável à construção do metrô como útil à população e é contrária à relação amorosa do filho com a Mulher (Helô Cintra Castilho), alusão a Maria Kodama, que acompanhou Borges até o fim da vida.

"Muitos amigos comentam sobre a dificuldade de Borges em se mudar da casa e também de assumir a relação amorosa como problemas observados também no seu dia a dia", afirma Chiara.

"Na peça, esses conflitos são mediados pelo Filósofo, interpretado por Dagoberto Feliz, uma personagem que personifica a presença mágica no cotidiano do escritor. Ele representa uma fonte infinita de ideias, alimentando e provocando o Escritor a ir além de seus limites", diz o diretor Marcio Boaro em resenha publicada em seu blog pessoal.

"Um dos pontos altos da peça é a forma como o realismo fantástico é trazido para o palco de maneira atualizada. As situações do conto são habilmente mescladas com eventos da vida real de Borges, criando um intrigante jogo de espelhos. A representação da ideia do duplo, tão explorada por Borges, é excepcional. Estabelece-se um paralelo entre a vida real e o conto, este último sendo uma das essências do realismo fantástico."

Uma das manchas na biografia de Borges foi a simpatia declarada aos militares que tomaram o poder, reação provocada pelo seu antiperonismo. Com o passar dos anos, o escritor se arrependeu do apoio, especialmente com a divulgação da violência praticada pelos militares.

Na peça, a Governanta (Luciana Carnieli) retrata a cruel face da ditadura argentina, com as Mães da Praça de Maio reclamando a devolução dos corpos de seus filhos mortos. "É também um tema delicado, que sensibiliza os mais jovens, especialmente os interessados na profunda influência que a política tem na rotina das pessoas", afirma Chiara. "O que reforça a importância do teatro como local de discussão dedicado a temas caros à contemporaneidade."

O Outro Borges

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