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Felipe Scovino

Livro ilumina atuação de Mário Pedrosa em arte e política

Crítico estabeleceu bases para pensar a modernidade da cultura brasileira e participou da criação do PT

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Felipe Scovino

Professor da Escola de Belas Artes da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

[RESUMO] A trajetória do crítico de arte Mário Pedrosa é revista por Glaucia Villas Bôas, estudiosa de sua obra, em livro com ênfase na perspectiva sociológica, no ativismo político e na influência do intelectual na elaboração da ideia de modernidade na arte brasileira.

Lançamentos de livros, exposições e reedições da obra de Mário Pedrosa (1900-1981) celebraram a trajetória do intelectual em 2023. Entre os destaques, está o a publicação de "Mário Pedrosa: crítico de arte e da modernidade" (Editora UFRJ), de Glaucia Villas Bôas, professora titular da UFRJ e notável estudiosa de sua obra.

A análise da autora se distingue por ter perspectiva sociológica, ineditismo de debates, aprofundamento de questões fundamentais sobre o legado do crítico e qualidade intrínseca. O livro, dividido em cinco capítulos, nem todos inéditos porque alguns já haviam saído como artigos, esmiúça a produção de Pedrosa —que contribuiu decisivamente para diversos vetores do campo do moderno no Brasil.

Foto do jornalista, crítico e ativista político Mário Pedrosa, que compõe a ocupação no Itaú Cultural
O jornalista, crítico e ativista político Mário Pedrosa (1900-1981) - Divulgação

A autora aponta que a atividade do crítico se fez também pela militância. São notórias tanto a sua atuação e organização para a criação do Museu da Solidariedade Salvador Allende, em Santiago (aliás, um dos temas abordados no livro), quanto o seu apoio sistêmico à implementação do boicote à Bienal de São Paulo, em 1969. Essa atuação culminará na participação ativa no processo de criação do Partido dos Trabalhadores.

Villas Bôas, em sua pesquisa, costura esses dois caminhos de Pedrosa. De um lado, o crítico atuante na constituição de um espaço moderno com interesses amplos. Um lugar que passa pela afirmação e institucionalização da abstração, particularmente geométrica, mas se volta também para produções subalternizadas como a dos internos de instituições psiquiátricas ou de indígenas, criando outras possibilidades não-hegemônicas para se pensar arte, cultura e sociedade.

Por outro lado, o sujeito político que adota, com posições firmes, uma visão progressista de mundo em um país que via seu projeto moderno ser dilacerado pela truculência da ditadura.

O livro ajuda a compreender como a ideia de moderno se propaga —via figura de Pedrosa— na arte moderna brasileira e mostra como "a concepção de modernidade de Pedrosa se distancia das concepções de modernidade de sua época, uma vez que ressalta a presença do passado e a importância das diferenças culturais".

Uma das contribuições singulares do livro é discutir o quanto o crítico anteviu o processo moderno como uma experiência contraditória e traumática.

"Quando, no Brasil, a onda moderno-desenvolvimentista fazia soar mais alto as esperanças no futuro do país, Mário Pedrosa considerava a modernidade problemática. A arte abstrata geométrica, apregoada por ele, aparentemente, continha uma contradição. Ela fazia parte do tempo moderno, mas, ao mesmo tempo, trazia a promessa de sua redenção. A visão de Pedrosa destoava".

Como aponta Villas Bôas, nos anos 1940, o crítico já instava o inconsciente como forma de elaboração artística ao mesmo tempo que direcionava a atenção do público para produções fora da Europa e dos Estados Unidos. Pedrosa articulava outras bordas para a modernidade muito antes dos chamados estudos culturais ganharem força nos anos 1970.

O livro tem um viés revisionista importante. A partir de uma relação de proximidade breve, mas significativa entre Mário de Andrade e Mário Pedrosa, a autora estabelece, em um capítulo, estudos comparativos para se pensar nas bases da modernidade da cultura brasileira. Ao invés de realçar, como de costume, as diferenças conceituais entre ambos, Villas Bôas traça singularidades, esboçadas com estima, sem deixar de destacar as diferenças.

"Longe de privilegiar as singularidades de culturas nacionais [como era a abordagem de Mário de Andrade], [Pedrosa] propõe uma arte de caráter universal abstrata. Essa tomada de posição, distinta do modernismo andradiano, não interferiu, entretanto, na admiração e respeito que o crítico manteve por Mário de Andrade".

Articulando uma proximidade entre ambos os críticos e pensando na distinção da modernidade nas artes brasileiras em comparação à europeia, por meio de um recorte analítico sobre a temporalidade, a professora disserta que a "’tradicionalização’ tornou-se o ponto-chave do modernismo brasileiro. O enlaçamento dos tempos passado, presente e futuro no pensamento dos dois em nada se aproxima da concepção predominante do moderno enquanto progresso, movimento avassalador e voltado para o futuro, que apagaria as marcas do passado".

Villas Bôas adensa mais esse aspecto sobre as afinidades entre os dois críticos acerca das bases do moderno e nos pergunta se o modernismo brasileiro, "mais do que abrigar duas orientações distintas, não se constituiu através de múltiplas trocas e oscilações a formar um elo entre o singular, o particular, o universal, o igual e o diferente".

Residiria nesse lugar de conflitos e reconciliações "a sua força criativa impulsionada pela ‘liberdade’ de expressão, como queria Pedrosa, e pela pesquisa da cultura brasileira, como propugnava Andrade".

Reunindo farta documentação de época e elaborando um painel sobre a economia, política e eventos culturais, particularmente entre as décadas de 1940 e 1970, a autora também constrói um rico panorama e contextualização da prática intelectual de Pedrosa.

Merece destaque também o capítulo sobre o ateliê do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, que reuniu, entre 1946 e 1951, artistas, críticos de arte, médicos e internos do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, tendo a frente a Dra. Nise da Silveira.

Capítulo essencial da passagem do moderno ao contemporâneo nas artes, a autora destrincha a "conversão de jovens artistas plásticos da arte figurativa à arte concreta" redefinindo os caminhos da modernidade ao mesmo tempo que aponta a singularidade terapêutica, plástica e social da pintura daqueles pacientes esquizofrênicos.

Glaucia Villas Bôas destaca Almir Mavignier, então um jovem artista, que mediou a relação entre os pacientes e o aprendizado com as artes. Além disso, "o ateliê foi uma peça-chave na realização do projeto da arte concreta, enfrentando duplamente o academicismo da Escola Nacional de Belas Artes e o modernismo apregoado pela Semana de Arte Moderna de 1922".

Quando ocorreu, entre 1947 e 1949, uma tentativa de legitimação e institucionalização da produção dos internos do ateliê por meio de exposições no Rio, Pedrosa foi um dos críticos que mais defendeu, em artigos publicados em jornais, essa produção.

Nesse sentido, sua militância de esquerda aliada ao estudo sobre a psicologia da forma —que ganha fôlego ao tomar contato com o Ateliê— foram determinantes para a defesa da arte produzida naquele espaço. Villas Bôas ressalta que "a rentrée dos artistas do ateliê no campo das artes plásticas instaurou um debate sistemático sobre os limites entre a normalidade e a anormalidade, entre arte e razão, entre academicismo e experimentação".

Estava posta, mais uma vez, a questão sobre autoria e estatuto do artista e a forma como o conflito entre arte e loucura também é um desdobramento sobre o moderno no Brasil. Além de ser ponto de disputa no campo da crítica.

Ao analisar a curadoria de Pedrosa na 6ª Bienal de São Paulo (1961), a autora discute a noção sobre universalismo da arte trazida por essa edição. Com a reunião de arte barroca das missões no Paraguai; caligrafia japonesa; máscaras provenientes da Costa do Marfim e artefatos da cultura aborígene; e obras da arte moderna europeia e brasileira, Pedrosa colocava em debate a ideia sobre a temporalidade do contemporâneo —ao, nas palavras dele, "acariciar as profundezas do passado".

Com a eliminação de hierarquias geográficas, o crítico colocava em suspensão a dicotomia centro e periferia, criando as bases para um debate que hoje é central tanto nas artes quanto na geopolítica.

No capítulo que relaciona a crítica à cultura (Kulturkritik) ao pensamento pedrosiano, Villas Bôas aproxima o debate sobre cultura versus civilização inscrito na tradição alemã da primeira metade do século XX com o receio do crítico brasileiro à cultura de massa, o desenvolvimentismo e a aceleração do tempo —uma certa, portanto, condição negativa da modernidade.

A última parte do livro é dedicada ao Museu da Solidariedade, uma síntese de Pedrosa enquanto crítico e catalisador de ideias e pessoas e sua atuação militante. No início dos anos 1970, em meio a tensões de desestabilização promovidos por grupos de direita contra o governo de Allende, o crítico brasileiro e colegas chilenos formaram uma rede de apoio para a implementação do museu.

Artistas próximos ou não ao crítico doaram obras e o resultado é um gesto simbólico de fraternidade em detrimento da opressão. Posteriormente, mesmo em meio a ditadura de Pinochet, essa rede de apoio e doação permaneceu, tendo o brasileiro como articulador.

Conclusão primorosa sobre o legado e solidariedade de Mário Pedrosa e, por sua vez, uma resposta potente ao assombro de distintas violências sistêmicas do presente.

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