Descrição de chapéu
Fred Coelho

Exposição de Nuno Ramos é turbilhão poético sobre Brasil

Em 'Espectros (Cadeira 17)', amálgama de vozes recortadas e editadas encena perplexidades contemporâneas

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[RESUMO] Em "Espectros (Cadeira 17)", nova exposição em cartaz no Rio, Nuno Ramos parte de um arquivo sonoro variado —trompete, solos de João Gilberto, vozes de atriz como Fernanda Montenegro e Tônia Carrero, discursos de Glauber Rocha e Darcy Ribeiro— para compor um painel alucinado sobre o Brasil de hoje, dando prosseguimento a um trabalho performativo experimental que funde diversas manifestações artísticas.

Pesadas cortinas roxas fecham a entrada do cubo branco. É preciso aguardar o início da sessão, com duração de 47 minutos. No momento marcado, a galeria transformada em ribalta aparece diante dos olhos e revela os atores: quatro cadeiras antigas de madeira em tipos variados e um solitário trompete, rodeados de seis caixas de som.

Acima, vemos um mecanismo complexo de pesos e contrapesos que suspendem os objetos-atores e ativam um botão vermelho em cada caixa. Com essa mise-en-scène, um teatro se estabelece, mesmo na ausência completa de corpos. Como início, um mecanismo é acionado com o abrir das cortinas e uma das caixas emitem o som de uma voz.

Cadeira e trompete suspensos por fios na exposição  "Espectros (Cadeira 17)", de Nuno Ramos
Cadeira e trompete suspensos por fios na exposição 'Espectros (Cadeira 17)', de Nuno Ramos - Pedro Murad/Cortesia Anita Schwartz Galeria de Arte

Após a primeira frase de William Bonner, "Abre aspas", passamos a assistir à criação do que o próprio artista poderia chamar de um "modo de invisibilidade". Acompanhando o sobe e desce dos atores-objeto e o som intermitente de um trompete indicando cortes dentre os blocos de palavras, passamos a ver com os ouvidos, procurando estabelecer conexão entre vozes e aparatos.

Aos poucos, a narrativa sonora que sai das caixas através de uma multidão de falas nacionais toma conta do ambiente. Em meio à polifonia vocal em formato de corte e cola, o arranjo cria, simultaneamente, monólogos e coros.

Essa é uma possível descrição inicial do que acontece em "Espectros (Cadeira 17)", novo trabalho que Nuno Ramos apresenta na galeria Anita Schwarz, localizada no bairro da Gávea, no Rio.

Nos últimos tempos, a galeria carioca tem sido um espaço em que o artista arrisca situações-limite com obras que apostam em dimensões experimentais e performativas. Foi assim, por exemplo, em "O Globo da Morte de Tudo" (2012) e "Cassandra" (2018), as duas em parceria com Eduardo Climachauska.

Desta vez, não foi diferente. Nuno aproveita o amplo espaço da galeria para desdobrar algumas das frentes que vem desenvolvendo nos últimos anos, tanto no seu trabalho plástico quanto no literário e ensaístico.

Artista que nunca andou sozinho —afinal, sua obra traz uma profusão de vozes e vidas em diferentes embocaduras—, em "Espectros (Cadeira 17)", Nuno segue apresentando a voracidade de fazer da arte um ato de pensar criticamente nossa relação de convivência no aqui e agora do país.

No tempo em que lugares de fala e corpos como documentos de uma experiência social são imperativos (um tempo em que tudo transborda presença), a escolha de reunir espectros sonoros traz uma série de desdobramentos possíveis para quem assiste à sua peça-instalação.

O título da obra é uma referência à cadeira que a atriz Fernanda Montenegro ocupou ao ser eleita para a Academia Brasileira de Letras em novembro de 2021 (ou à peça "Espectros", de Ibsen, ou à canção "Cadeira Vazia", de Lupicínio Rodrigues...).

Apesar desse ponto de partida sereno, homenagem e louvação a uma das maiores personalidades do teatro e da cultura brasileira, o que ouvimos na narrativa que emerge do amálgama de vozes recortadas e editadas por Nuno Ramos é um turbilhão trágico, cômico, político e poético que, a partir de arquivos sonoros diversos, encena nossas perplexidades contemporâneas.

Aos poucos, o público identifica timbres como assinaturas vocais, entende que uma dramaturgia é montada dentre a miríade de vivos e mortos cuja longa lista, para citar apenas alguns, vai de William Bonner e Renata Vasconcellos (apresentadores do Jornal Nacional que Nuno já fez "cantarem" "Lígia", de Tom Jobim) até um conjunto de atrizes incluindo, claro, Fernanda Montenegro e seu discurso na ABL, além de Henriqueta Brieba, Cleyde Yáconis, Tônia Carrero, Cacilda Becker, Norma Bengell.

Ainda podemos ouvir um "solo" de João Gilberto (o único personagem com uma caixa exclusiva), o tom histriônico de Gilmar Mendes, a voz gutural de Cid Moreira e os "profetas" Glauber Rocha, Darcy Ribeiro, Stella do Patrocínio e José Celso Martinez Corrêa.

Em uma das paredes da galeria, a projeção do texto como uma legenda em tempo real elucida um pouco mais o que vai se precipitando em uma alucinação cujo personagem principal é o Brasil. Imersos nessa atuação maquínica, somos tomados pelos espectros que circulam pelo ambiente e assistimos à ocorrência de um "teatro impossível".

Se não há o que ser revelado como uma verdade a ser decifrada em trabalhos de arte como os de Nuno Ramos, sabemos que diversas camadas de leitura entram em jogo a partir da perspectiva de cada visitante.

Para os que conhecem a trajetória do artista, é notório que a presença de espectros materializados em corpos sonoros (vozes sampleadas, acusmas, citações de canções, apropriações poéticas) e a invocação de uma espécie de arquivo da fala pública brasileira são pontos altos de suas obras. Vozes e sons de terceiros compõem não só objetos plásticos (esculturas, instalações), como também objetos literários —tanto ficcionais quanto ensaísticos.

Nas especulações estéticas de Nuno sobre o Brasil e sua arte, rondam espectros, espíritos, fantasmas, mortos, túmulos. Como poucos, ele criou por décadas modulações diversas para falar de perdas e possessões. Um método que materializa presenças não pelo uso factual do documento ou da memória enquanto prova de existência heroica, mas como recurso fabulador, crítico e trágico. Foi assim com Nelson Cavaquinho, Batatinha, Carlos Drummond de Andrade, os mortos do massacre do Carandiru ou as vítimas da pandemia, por exemplo.

Em "Adeus, Cavalo", livro publicado em 2017, uma das muitas vozes que habitam (como uma possessão) o corpo do texto nos lembra que "a memória é o fantasma que se ressente e reage". De alguma forma, "Espectros (Cadeira 17)" aplica esse princípio ao fazer dos registros dessas vozes um comentário ácido sobre nossos dias.

Outro ponto que não se pode perder de vista: Nuno é um artista que sempre se interessa pela matéria e sua instabilidade entre a determinação e a indeterminação. Nesta obra, se tudo está controlado por esse texto que flui através de um mecanismo ritmado, a sensação é que essa matéria sonora se descontrola conforme a ação percorre o tempo. Somos pegos de surpresa pelas conexões inusitadas que Nuno cria entre as vozes, numa expectativa permanente do que virá a seguir.

Nos últimos anos, Nuno trabalhou no Brasil e no exterior em uma série de projetos em que a manipulação sonora, a performance e o teatro ganham destaque. Isso ocorre por exemplo em "Marcha Ré" (2020), performance em parceria com o Teatro da Vertigem, ou no ambicioso projeto "A Extinção É para Sempre" (2021), formado por uma série de quatro episódios em que música, dança, cinema, teatro, literatura, artes visuais e performance funcionam simultaneamente em boa parte dos trabalhos (como em "Os Desastres da Guerra", "Chão-Pão" ou "Iracema Fala").

Também podemos ver o recurso de montagem e desmontagem de vozes, textos e corpos na série de trabalhos "Aos Vivos – Dito e Feito", em que atores são "caixas de som" para vozes alheias que escutam e reproduzem em tempo real durante as performances.

Essa ampliação e abundância de recursos criativos na obra de Nuno Ramos contrasta, paradoxalmente, com uma visada melancólica do artista em relação ao tempo presente. Em seu livro "Fooquedeu (Um Diário)", lemos no breve texto biográfico "Dias Confusos" um desejo de autoconsumação do seu trabalho em meio a uma crescente sensação de isolamento.

Como se precisasse falar cada vez mais porque se sente cada vez menos presente, os atores-objeto de "Espectros" podem ser vistos como a ausência não só de corpos atuando —como na maioria das performances que vinha fazendo até recentemente— como a ausência do próprio Nuno.

No decorrer da instalação, ouvimos as vozes cortando o ar com afirmações como "o povo brasileiro é uma visão" e perguntas como "por que mais uma vez a direita ganhou?" ou "por que o Brasil não deu certo?".

Sendo assumidamente parte de uma geração que teve no arquivo modernista de nossa cultura a aspiração (e a frustração) de uma utopia fusional através da arte e da justiça social, o artista se encontra, como alguns de seus pares, em busca de um lugar que ainda faça sentido para seu trabalho e sua existência pública.

Na síntese tragicômica proferida por Aranha, personagem de Zé Bonitinho no filme "Sem Essa, Aranha" (1970), de Rogério Sganzerla (e uma das vozes da instalação), é possível ouvirmos a obra dizer, entre a ironia e a confissão, "já fiz tudo que um branco podia fazer!".

O poeta, ensaísta e artista plástico Nuno Ramos - Divulgacao

Se, como mostrou em seu ensaio "No Palácio de Moebius", a arte brasileira produziu ao longo do século 20 interioridades ("fugir pra dentro") para conseguir dosar a energia despendida e dissipada em um circuito de arte sem público ou ressonância popular, talvez "Espectros (Cadeira 17)" seja a obra em que tal aporia chega ao seu limite.

Em tempos de afirmação de novos nomes, novos corpos, novos olhares e novas políticas na arte e na reflexão crítica do país, Nuno oferece o espaço vazio e as vozes espectrais como materialização possível de uma comunidade fragmentada, cujos discursos públicos se transformam muitas vezes em monólogos.

Como Brás Cubas, Nuno Ramos fala a partir do túmulo —ou melhor, faz com que falem por ele—, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. Não nos esqueçamos que o trabalho homenageia uma imortal que continua vivíssima entre nós.

Ao final dos 47 minutos da peça sonora, ouvimos João Gilberto mandando um beijo para o Brasil e a afirmação de que, mesmo com todo abismo que atravessamos, ainda "tem alvorada". Se não é um sinal de esperança, é a nesga de um sol que pode brilhar mais uma vez.

Citando o próprio artista e seu longo poema "Sermões", podemos ver e ouvir "Espectros (Cadeira 17)" como um momento em que a morte de tudo vibra na vida de um som. É o canto de um artista contemporâneo conjurando seus espectros em um silêncio eloquente.

Com esse trabalho, talvez Nuno Ramos assinasse com gosto as palavras de Machado de Assis no prefácio das "Memórias Póstumas": "Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto, que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo".

Espectros (Cadeira 17)

Conversa de Nuno Ramos e o crítico Fred Coelho

15/12 às 17h na galeria Anita Schwartz

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