[RESUMO] Imagens de Camões tornaram-se tão icônicas na cultura portuguesa quanto seus versos, popularizadas por uma marca que ganhou ares pop: a ausência do olho direito —ou seria o esquerdo?. Idealizador de exposição em homenagem aos 500 anos do poeta, fotógrafo comenta os enigmas que cercam essas imagens e o que elas revelam de todos nós que falamos português.
O que é a arte? O que é a criação? A arte é, de certo modo, a origem simultânea do artista e da criação. A arte encontra-se na concepção. A arte é o invento da humanidade, espelho do ser humano e da sua capacidade criativa, enquanto ser pensante e gerador de ideias, crenças e valores religiosos, políticos, simbólicos, marcados nas memórias, pela vida e morte.
O retrato como criação artística é das manifestações de arte mais importantes que existem, desde a Antiguidade até a época contemporânea. A figura humana é o centro e a representação de tudo, numa verdadeira evocação da alma.
Será que vislumbramos a alma de Camões em algum dos seus retratos? As primeiras imagens do poeta chegam-nos através do livro impresso e da gravura em metal. Será que esses retratos nos ajudam a refletir sobre o seu rosto? Para encontrar a essência da alma do poeta, procuramos a obra real e perguntamos-lhe: o que é e como é.
Os retratos mais antigos, que nos são dados a conhecer, encontram-se na obra "Discursos Vários Políticos", 1624, de Manuel Severim de Faria, onde o rosto de Camões é representado numa gravura. Na mesma obra encontramos, ainda, uma descrição do nosso poeta: "Foi Luís de Camões de meã estatura, grosso e cheio do rosto, e algum tanto carregado da fronte, tinha o nariz comprido levantado no meio, e grosso na ponta; afeava-o notavelmente a falta do olho direito, sendo mancebo teve o cabelo tão louro, que tirava o açafroado".
Quinze anos mais tarde, em 1639, a cegueira do poeta é transferida para o olho esquerdo na gravura de Pedro de Villafranca, publicada na obra "Lusíadas Comentadas", da autoria de Manuel de Faria e Sousa. De que modo a leitura deste retrato, da gravura do artista espanhol, interfere no nosso imaginário e como esse olhar atua sobre o mistério da iconografia camoniana?
Na Biblioteca da Ajuda, cuja origem remonta ao século 15, encontramos uma hipotética resposta a este enigma: um retrato de Camões, feito à pena, por Faria e Sousa, considerado à época uma das melhores plumas da Europa, no qual Villafranca se baseou para executar a sua gravura.
No desenho de Faria e Sousa, também faltava o olho direito. Pode ser que o pintor, procurando ser rigoroso na cópia da gravura transposta para a chapa de seu livro, tenha se esquecido de que a reprodução resultava no seu inverso. Ou pode ser que a gravura de Villafranca fosse uma tentativa de corrigir o desenho de Faria e Sousa, que seria uma cópia, e não o original.
Parece não ter fim a ciranda misteriosa a respeito do rosto de Camões. Sabemos que o retrato em que Faria e Sousa se baseou para fazer o seu desenho é a gravura de A. Paulus, impressa em "Discursos Vários Políticos", que pode ter sido, também, baseada em retrato encomendado pelo padre Manuel Correia, amigo e comentador da obra de Camões. Esta gravura é o ponto de partida para a criação do modelo de imagem do poeta que nos acompanha até hoje.
Nos 500 anos da morte de Vasco da Gama (1469-1524), o navegador português que abriu um novo caminho marítimo para a Índia, celebram-se, também, os 500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões. O poeta morreu em 10 de junho, quando se comemora o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
É curioso que duas datas tão significativas de ícones portugueses se cruzem neste ano de 2024. "Os Lusíadas", obra maior de Camões, canta as aventuras do povo lusitano e de Vasco da Gama.
O poema da grandeza de Portugal, contudo, é simultaneamente o início da sua decadência. Dom Sebastião morreu na batalha de Alcácer Quibir (4 de agosto de 1578) e Camões, em 1580, ano da crise dinástica e do nascimento do mito do sebastianismo. Portugal perdeu então a sua independência durante 60 anos, e a União Ibérica foi regida pela dinastia filipina.
Refletindo sobre todos esses aspectos, elaborei a exposição "O Rosto de Camões", reflexão pessoal, em forma de imagem fotográfica, inspirada no célebre quadro sobre o poeta: o retrato pintado a vermelho, gravura a buril, cópia do original que se encontra perdido, de autoria de Fernão Gomes, pintor português de origem espanhola, adquirido pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, em 1988, para o estado Português.
Este desenho a sanguínea estima-se que tenha sido feito entre 1573 e 1576. Pensa-se igualmente que é deste retrato que Camões se refere nas suas redondilhas: "Retrato, vós não sois meu; / Retrataram-vos mui mal; / Que, a serdes meu natural, / Fôreis mofino como eu."
Partindo deste quadro, onde o poeta é representado, melancolicamente, na tradição da pintura maneirista, concebi dez retratos, a cores, de dez figuras anônimas, com diversas idades e diferentes origens, de territórios de língua portuguesa.
Cinco homens e cinco mulheres, jovens e adultos, vestidos com gibões e a gola de Camões, a gorjeira branca, peça de vestuário utilizada por homens, mulheres e crianças, desde meados do século 16 ao 17. Parti do conceito de que todos somos Camões.
O número dez é o ponto de partida para o meu ensaio fotográfico. "Os Lusíadas" têm dez cantos e, tal como a "Odisseia" de Homero, o poema épico de Camões é composto por cinco partes.
O cinco é o símbolo do homem e do universo, da ordem e da perfeição. Dez é o número de conclusão e renovação, reflete a conexão entre o mundo material e espiritual; dez são os territórios onde se fala português: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
A fotografia é responsável pela reinvenção do olhar e da experiência sensorial, através da projeção de memórias e novas representações dessas mesmas memórias. A ideia que o ser humano tem de si está intimamente ligada à imagem que reconstrói com a realidade.
Neste período de angústia existencial e de uma profunda crise de valores sociais e culturais, é necessário criar condições para o surgimento de uma nova realidade baseada em uma dimensão verdadeiramente humanista, virada para todos, sem exclusão da cor, gênero, sexualidade ou idade.
"O Rosto de Camões" é um manifesto fotográfico onde todos os retratados, de tons de pele, idades e sexos diferentes, se unem pela gola branca camoniana e nos revelam a luz, bela e tranquila, dos seus rostos, em uma unidade humanista e linguística.
As relações humanas são uma mistura de bênção e maldição. Nestes tempos de individualização, a solidão é a grande ameaça da sociedade; o diálogo e a comunicação estão-se a perder. Temos por isso de "roçar a língua de Luís de Camões" e ter na voz de Camões "a voz de todos nós".
Luís Vaz de Camões
Nasceu em 1524, em dia e mês desconhecidos. Pouco se sabe também sobre sua vida. Teria recebido na juventude uma sólida formação nos moldes clássicos, dominando latim, literatura e história antigas. Segundo relatos, levou uma vida boêmia e turbulenta. Em razão de um amor frustrado,
autoexilou-se na África, alistado como militar, onde perdeu um olho em batalha. Depois partiu para o Oriente, onde enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias vezes, combateu ao lado das forças portuguesas e iniciou sua obra mais conhecida, a epopeia "Os Lusíadas", publicada em 1572. Morreu em 10 de junho de 1580, pobre e isolado. Nas décadas seguintes, contudo, consolidou-se como o principal nome da literatura em língua portuguesa.
Algumas edições do poeta no Brasil
Obra Completa
Cerca de R$ 400; 1.032 páginas; ed. Nova Aguilar
Edição de luxo com biografia do escritor, bibliografia, notas interpretativas, análises e dicionário
Os Lusíadas
R$ 98,65; 696 páginas; ed. Nova Fronteira
Traz introdução e notas do poeta Alexei Bueno a respeito de mitologias, nuances históricas e linguísticas deste poema épico
Sonetos de Camões
R$ 48,90; 224 páginas; Ateliê Editorial
Coletânea da lírica camoniana comentada pelos professores Izeti Fragata Torralvo e Carlos Cortez Minchillo
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