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José Manuel Diogo

Camões virou símbolo para direita, esquerda e ditadura

Imenso legado do poeta, nascido há 500 anos, foi apropriado por todos os grupos políticos portugueses

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José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos

[RESUMO] Poeta de vida errante, que nasceu em data desconhecida e morreu na miséria, Camões tornou-se ao longo dos séculos o vulto maior da cultura portuguesa. Símbolo das glórias do passado, da resistência às adversidades do presente e da promessa de um futuro glorioso, o poeta foi apropriado pelos mais diversos grupos políticos de Portugal para representar os valores da nação.

Quaisquer que fossem as ideologias dominantes ao longo da história, Camões sempre mereceu admiração e respeito de todos os quadrantes políticos. Monárquicos liberais ou absolutistas, republicanos democratas ou ditadores, todos viram (veem) nele a personificação do melhor de Portugal. Sua obra transcende as fronteiras do tempo e da política, consolidando-se como um pilar da identidade lusa.

Luís de Camões é frequentemente considerado o maior escritor de língua portuguesa e um dos maiores da literatura mundial. Sua maestria na arte poética, combinada com uma profunda compreensão da história e da mitologia, criou uma obra que se confunde com os valores e a alma do povo português.

Visão do centro da praça Luís de Camões em Lisboa. A praça tem o formato retangular e é rodeada de prédios baixos, de cerca de seis andares. Há uma estátua de Camões no centro dela. O chão é revestido de ladrilhos brancos e pretos
Praça Luís de Camões, no bairro do Chiado, em Lisboa (Portugal) - Luca Galuzzi/Wikimedia Commons

"Os Lusíadas" não é apenas uma epopeia que narra as aventuras dos navegadores portugueses, mas também uma reflexão sobre a grandeza e as dificuldades de Portugal, suas glórias e suas tragédias, servindo a todos os grupos políticos como príncipe perfeito e garoto de propaganda.

Para os monárquicos, simboliza a glória do império português, exaltando a bravura e a determinação dos navegadores que desbravaram mares desconhecidos e estabeleceram um vasto império ultramarino. Sua poesia era vista como um tributo à nobreza e à coragem dos portugueses, características que a monarquia procurava perpetuar.

Os liberais, por outro lado, encontravam em Camões um espírito de resistência e liberdade. Uma vida atribulada, marcada por exílios e dificuldades, refletia a luta pela autonomia e pelos direitos individuais. "Os Lusíadas", com suas críticas veladas à tirania e à corrupção, inspirava aqueles que lutavam por reformas e pelo progresso.

Para os republicanos, Camões representava uma nova era. Eles reinterpretavam sua obra à luz dos ideais de igualdade e fraternidade, vendo nele um precursor dos valores republicanos. A habilidade do poeta em capturar o espírito do povo português e suas aspirações tornava-o um ícone da causa republicana.

Mesmo os regimes ditatoriais encontraram nele um recurso para promover o nacionalismo e a unidade. A exaltação das conquistas marítimas e a ideia de um destino glorioso para Portugal eram usadas para fortalecer a coesão nacional e a identidade coletiva.

Capa da primeira edição do livro "Os Lusíadas", de 1572, escrito por Luís de Camões - Reprodução

De toda forma, sua obra sempre serviu como fonte de inspiração e orgulho para os portugueses. Ele representou e ainda representa o ideal de um país valente, resiliente e destinado a feitos grandiosos. Ao mesmo tempo, sua poesia não celebrava apenas um passado glorioso, mas também sugeria um sentimento de esperança e determinação para o futuro. Nenhum político faria melhor.

Mas o que tinha esse homem, que nasceu em dia desconhecido e morreu na miséria, para que, tantos séculos depois, ainda continue a convocar paixões, a suscitar metáforas, a reclamar passados e, sobretudo, a constituir-se como um símbolo para milhões de falantes da língua portuguesa?

Sua vida e obra possuem elementos que explicam essa duradoura relevância e inspiração, começando pelo mistério em torno de sua biografia. A falta de informações precisas contribui para a criação de uma aura quase mítica ao seu redor. Nascer em data e local incertos e morrer na miséria reforçam a imagem de um gênio incompreendido em vida, mas eternamente glorificado pela posteridade.

"Os Lusíadas" é uma epopeia monumental. Experimente ler em voz alta. O texto, que celebra as aventuras marítimas de Portugal e a descoberta do caminho para a Índia, está escrito com uma maestria técnica e uma profundidade de pensamento inigualáveis, capturando a essência da nação e sua identidade, tornando-se um marco na literatura mundial.

Além de "Os Lusíadas", a lírica de Camões, com sonetos, éclogas e outras composições, revela um homem de sensibilidade apurada com uma capacidade de expressão que toca profundamente as emoções humanas. Seu domínio da língua portuguesa e a beleza de seu verso transformaram-no no padrão pelo qual a literatura em português é frequentemente medida. O poeta é capaz de capturar a experiência humana em suas mais diversas facetas, desde o amor e a saudade até a luta e a esperança.

Camões também é um exemplo de resistência e perseverança. Sua vida atribulada, cheia de adversidades, desde o exílio até a prisão, passando pela pobreza, reflete a luta e a resiliência. Isso faz dele uma figura identificável para muitos que enfrentam dificuldades e, ainda assim, aspiram a grandes feitos. Representa a capacidade de triunfar sobre a adversidade por meio do talento, da dedicação e da paixão.

Era inevitável que a política se aproveitasse desse legado. Durante o período do Estado Novo, o regime de Salazar utilizou "Os Lusíadas" para promover uma visão nacionalista e imperialista de Portugal, exaltando o heroísmo e as conquistas dos navegadores como provas de grandeza nacional.

No século 19, durante a Regeneração, os liberais e republicanos, como já citado, também se apropriaram da imagem de Camões para difundir a ideia de um Portugal moderno e progressista. A propósito das celebrações do tricentenário da sua morte, em 1880, destaca-se o poeta como símbolo nacional e instrumento ideológico para os republicanos.

Teófilo Braga —autor de uma história de Camões, um dos principais arquitetos das comemorações e primeiro presidente da futura República portuguesa—, valeu-se de sua figura para promover a "revivescência" nacional e o patriotismo, celebrando o poeta como um ícone da liberdade e da soberania, "especialmente nas revoluções de 1640, 1820 e 1910". Descreveu "Os Lusíadas" como um bastião da tradição e da moralidade portuguesa, essencial para a regeneração da pátria.

Em nossa era de conectividade global, Camões é referência para todos os falantes da língua. Sua obra unifica, servindo, mesmo quando evidencia diferenças e alimenta polêmicas, como uma ponte cultural que conecta pessoas em diversos países e contextos. Em um mundo cada vez mais interconectado, ele representa a riqueza e a diversidade da cultura portuguesa, assim como a força unificadora da língua.

Camões não é apenas um pedaço de história ou uma memória póstuma; é um ícone cultural vivo que encapsula o espírito da lusofonia e que, nas comemorações que a Associação Portugal Brasil 200 anos lhe dedica em Portugal e no Brasil, surge de múltiplas formas.

É o "estranho estrangeiro" que inspira intelectuais de países de língua oficial portuguesa a virem debater em Coimbra o que o legado do poeta representa hoje em temas como colonialismo, xenofobia e reparação.

Ele é o rosto que cabe em todos os lugares e todos os tempos. Na exposição "O Rosto de Camões", João Francisco Vilhena procurou esse sujeito em 10 pessoas anônimas, oriundas de 10 lugares, uma de cada um dos 10 territórios que hoje têm o português como língua oficial e, com elas, estilhaçou os conceitos de nacionalismo e xenofobia que ao longo do tempo se colaram à pele do poeta.

Com armas e palavras, se Camões fosse vivo hoje, seria o poeta de slam. O duelista de rua. O espadachim e o prisioneiro, o soldado e o fugitivo, o imigrante e o arrependido, o herói e o pobre, o fidalgo e o foragido, o vencedor e o derrotado, o amante e o enganado, o poeta e o político.

Substrato e hipertexto de uma nação impossível, promessa de um quinto império que nunca se há de cumprir, mas a qual não se pode escapar, Camões é o símbolo mais forte e universal de uma estranha forma de ser que habita em todos os falantes dessa língua que, como um ser vivo, se reclama "dele" para ser nossa.


Luís Vaz de Camões

Nasceu em 1524, em dia e mês desconhecidos. Pouco se sabe também sobre sua vida. Teria recebido na juventude uma sólida formação nos moldes clássicos, dominando latim, literatura e história antigas. Segundo relatos, levou uma vida boêmia e turbulenta. Em razão de um amor frustrado,
autoexilou-se na África, alistado como militar, onde perdeu um olho em batalha. Depois partiu para o Oriente, onde enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias vezes, combateu ao lado das forças portuguesas e iniciou sua obra mais conhecida, a epopeia "Os Lusíadas", publicada em 1572. Morreu em 10 de junho de 1580, pobre e isolado. Nas décadas seguintes, contudo, consolidou-se como o principal nome da literatura em língua portuguesa.

Algumas edições do poeta no Brasil

Obra Completa
Cerca de R$ 400; 1.032 páginas; ed. Nova Aguilar
Edição de luxo com biografia do escritor, bibliografia, notas interpretativas, análises e dicionário

Os Lusíadas
R$ 98,65;
696 páginas; ed. Nova Fronteira
Traz introdução e notas do poeta Alexei Bueno a respeito de mitologias, nuances históricas e linguísticas deste poema épico

Sonetos de Camões
R$ 48,90; 224 páginas; Ateliê Editorial
Coletânea da lírica camoniana comentada pelos professores Izeti Fragata Torralvo e Carlos Cortez Minchillo

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