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Militares e ideológicos competem por controle que não têm sobre a Embraer

Bolsonaro e alas de seu governo esquecem que o poder federal sobre a empresa é de veto

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São Paulo

No final de 2017, quando foi revelado que a Boeing tinha interesse em comprar toda a Embraer, o presidente Michel Temer (MDB) foi o primeiro a subir o tom. "No meu governo a Embraer não será vendida", disse, para a alegria dos sindicalistas e alérgicos a privatizações em geral.

Era, como se sabe, uma estratégia. Temer não só autorizou a venda da suculenta área de aviação comercial da fabricante brasileira, mas modulou o negócio para evitar prejuízo a interesses estratégicos do governo federal.

Voo do E195-E2, maior modelo da nova linha de aviões regionais da Embraer
Voo do E195-E2, maior modelo da nova linha de aviões regionais da Embraer - Embraer - 12.set.2019/Divulgação

A história se repete agora que o acordo entre as duas empresas aeronáuticas foi rompido pelos americanos, que acusam os brasileiros de não cumprir detalhes do negócio no prazo estipulado na sexta passada (24).

A alegação não convenceu ninguém no mercado e ganhou uma dura resposta da Embraer, que apontou dissimulação e má-fé da Boeing e iniciou um processo de arbitragem para reaver algo dos R$ 485,5 milhões investidos no processo de separação ao longo de 2019.

Os brados ufanistas ora vêm do governo de Jair Bolsonaro. Na segunda (27), o presidente disse: "Estamos avaliando. Tem 'golden share', é minha, eu assino. Se o negócio for desfeito, talvez se recomece uma nova negociação com outra empresa", como se fosse o presidente da Embraer.

Bom, ele não é. A "golden share" em questão é o instrumento poderoso que a União tem em três ex-estatais, Embraer, Vale e Instituto de Resseguros do Brasil.

Ela pode muito no caso da empresa aeronáutica: vetar mudanças no seu controle, de seu nome/logomarca e de sede, além de poder proibir projetos militares que possam ameaçar a segurança nacional, com a capacitação de adversários. Também permite impedir a interrupção do fornecimento de peças de manutenção de aviões da Força Aérea.

Como se vê, a "golden share" é uma ação especial para vetar, não para propor negócios. Ao longo dos anos, a Embraer foi muito bem tratada pelo Estado que a criou em 1969. Uma lei de 1997 permitiu a flexibilização da internacionalização de ex-estatais, e a partir de 2006 o controle efetivo da empresa foi pulverizado em Bolsa.

O resultado é que hoje cerca de 85% da Embraer pertence a diversos fundos estrangeiros, o que mata no nascedouro os arroubos nacionalistas usuais das autoridades.

Isso não significa que a Embraer não tenha laços vitais com a União, ao contrário. Sem o investimento de R$ 5 bilhões e a encomenda inicial de R$ 7,2 bilhões feitas pela Força Aérea, o promissor cargueiro C-390 Millennium não teria saído do chão. É assim no mundo todo, no mercado militar.

Na área comercial, de 2004 a 2018 a empresa recebeu R$ 49 bilhões do BNDES em contratos de financiamento, o que ajudou a vender cerca de 30% dos aviões que colocou no mercado no período. Outra prática comum na área aeronáutica, mas sempre lembrada por críticos do acordo com a Boeing.

O dado também é citado pelos militares, que foram centrais para o desenho final do negócio fracassado com os americanos. Agora, o que se antevê é uma disputa no governo sobre o futuro da Embraer, opondo fardados aos seus adversários ditos ideológicos na gestão Bolsonaro.

Os primeiros supõem a China como parceira potencial da empresa paulista, algo que os segundos não aceitam por se tratar de uma ditadura comunista —uma visão que já gerou grave crise diplomática na pandemia, causada pelo filho presidencial Eduardo e pelo ministro Abraham Weintraub (Educação).

É uma grande discussão algo bizantina no momento. A Embraer não está prospectando objetivamente nenhum novo acordo ainda.

Em nota divulgada nesta terça (28), a empresa disse que sua linha "certamente atrai o interesse de outros parceiros internacionais", mas que, "no momento, não há nenhuma conversa ou negociação em andamento e não temos nada a comentar sobre novas parcerias".

Ela precisa descobrir como serão os termos de seu divórcio com a Boeing, algo bem mais premente, e principalmente como sobreviver à crise da Covid-19, que vitimou todo o setor aeroespacial no mundo.

Nesse sentido, o governo entra de outra forma, com as especulações sobre alguma forma de auxílio específico para a joia da coroa da indústria exportadora de alto valor agregado do país, seja por linhas do BNDES ou algum outro mecanismo.

A crise vai inevitavelmente levar a discussões sobre parcerias futuras. A Airbus está fechada com sua rival Bombardier, de quem comprou a linha de aviação regional. A outra grande cadeia global do setor é liderada pela Boeing e, agora, estará fechada para a Embraer.

Um dos argumentos em favor do negócio com os americanos era a dificuldade de a brasileira sobreviver no mercado sozinha na próxima década. A pandemia e a paralisação da demanda por aviões pode acelerar o debate.

Sobra, evidentemente, a vontade chinesa de entrar no mercado mundial com a Comac, sua estatal do setor. A China tem recursos e ambição. É dela que falam o vice Hamilton Mourão e mesmo Bolsonaro, apesar de o poder federal ser de veto, não de iniciativa.

Contra os chineses, além da opacidade de seus procedimentos, há a experiência pregressa da Embraer em associação com o país. De 2003 a 2016 a brasileira produziu jatos regionais e executivos em Harbin, numa joint-venture com duas empresas locais.

Relatos que vão de dificuldades burocráticas à suspeita de que os chineses estavam lá para fazer engenharia reversa dos produtos brasileiros, um eufemismo para cópia sem licença, eram comuns.

Isso para não falar em especulações óbvias: uma associação com os chineses que envolvesse a área militar das empresas implodiria as pretensões de vendas de produtos coalhados de peças americanas, como o C-390 ou o Super Tucano. Embargos do Congresso americano seriam imediatos.

Assim, muita água irá passar sob o moinho antes que os pruridos ideológicos de alas rivais do governo ganhem protagonismo pelo papel de censora e cliente preferencial que a União tem sobre a Embraer.

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