Descrição de chapéu Financial Times Folhajus Ásia

PwC, Deloitte, EY e KPMG sofrem com disputa entre órgãos regulatórios e empresas chinesas

Autoridades, principalmente nos EUA, elevam tom com companhias de auditoria para ter acesso aos registros financeiros de negócios do país asiático

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Tabby Kinder Michael O’Dwyer
Hong Kong e Londres | Financial Times

Quando começou a examinar a carcaça da empresa China Medical Technologies, que entrou em colapso depois de uma suspeita de fraude em valor de US$ 400 milhões, Cosimo Borrelli, profissional encarregado de liquidar a empresa, encontrou um obstáculo.

A KPMG, que auditava a companhia sediada em Pequim, desde quando ela abriu capital na bolsa de valores de Nova York em 2005, se recusou a entregar os registros financeiros da companhia a ele.

A empresa chegou a desafiar uma liminar judicial que ordenava que o fizesse, invocando as leis financeiras da China, que proíbem a retirada de documentos financeiros delicados do país.

Determinado a localizar o dinheiro desaparecido –Borrelli suspeitava que a mulher de um dos mais importantes executivos da empresa tivesse perdido mais de US$ 100 milhões desse montante em cassinos de Las Vegas—, ele preparou um plano.

Logo da KPMG; auditorias vivem impasse com autoridades regulatórias internacionais - Reinhard Krause - 8.nov.2018/Reuters

Nos dois anos seguintes, sua equipe de oito subordinados se instalou perto do escritório da KPMG em Pequim e fez anotações detalhadas sobre mais de cinco mil documentos de auditoria. A KPMG relutou, mas concedeu o acesso aos papéis, a fim de evitar que as autoridades processassem 91auditores da empresa por terem ignorado a liminar judicial que ordenava a entrega dos documentos.

As anotações agora estão sendo usadas pela equipe de liquidantes para processar a KPMG em Hong Kong por suposta negligência. Tanto Borrelli quanto a KPMG preferiram não comentar.

O caso se tornou uma disputa chave em um impasse duradouro entre a China e autoridades regulatórias internacionais e outros interessados em ganhar acesso aos registros financeiro das companhias do país.

O confronto deixou as "Quatro Grandes" companhias mundiais de auditoria —Deloitte, PwC, KPMG e EY—, que dedicaram três décadas a criar grandes operações no país asiático, encurraladas entre antagonizar Pequim ou sofrer punições em outras jurisdições.

É o mais recente desafio para as "Quatro Grandes", que têm enfrentado críticas crescentes quanto ao controle de qualidade de suas auditorias, depois das fraudes na Wirecard, Luckin Coffee e outras empresas. Elas estão sob ameaça de autoridades regulatórias, que querem coibir suas práticas oligopolistas, e seus modelos mundiais de negócios estão sendo submetidos a um escrutínio renovado.

A disputa é mais um ponto de confronto na tensão cada vez mais forte entre Washington e Pequim sobre questões que variam do comércio à segurança, e já levou à exclusão das ações de três companhias chinesas dos mercados americanos e a uma proibição de que investidores americanos detenham ações em companhias chinesas suspeitas de manter elos com as forças armadas de seu país.

A questão ferveu em março, quando a SEC (Securities and Exchange Commission), agência federal que regulamenta os mercados de valores mobiliários dos Estados Unidos, começou a implementar uma lei aprovada no governo Trump que compele empresas estrangeiras com ações negociadas em bolsas dos Estados Unidos a permitir que as autoridades americanas revisem suas auditorias financeiras, sob pena de expulsão dos mercados.

Em resposta, o Ministério do Exterior chinês acusou os Estados Unidos de “politizar a regulamentação do mercado financeiro”, e diversas companhias chinesas começaram a listar ações na bolsa de Hong Kong a fim de mitigar as possíveis consequências negativas.

“As empresas de auditoria estão encurraladas entre duas jurisdições em conflito”, disse Daniel Goelzer, membro fundador do PCAOB (Public Company Accounting Oversight Board), a organização americana que regulamenta o setor de contabilidade e auditoria. “Parece cada vez menos provável que a China venha a aceitar um compromisso [com os Estados Unidos], e ao mesmo tempo a China vem se tornando mais importante em termos econômicos para as empresas de auditoria”.

Pior mundo possível?

Desde que a lei Sarbanes-Oxley foi adotada, em 2002, depois do escândalo da Enron, todas as companhias que tenham ações cotadas em bolsas de valores dos Estados Unidos devem submeter ao PCAOB as inspeções de suas auditorias.

O número de empresas chinesas com ações cotadas nos Estados Unidos explodiu daquele ano para cá, e o investimento em ofertas públicas iniciais de ações chinesas atingiu um nível recorde nos Estados Unidos neste ano.

As "Quatro Grandes", que dominam o mercado de auditoria na China, auditam cerca de 140 empresas chinesas que têm ações cotadas nos Estados Unidos, de acordo com a SEC.

Com honorários generosos obtidos de startups de internet florescentes que buscam acesso aos mercados internacionais de capitais, as operações das "Quatro Grandes" na China cresceram para dimensões próximas às de suas bases britânicas, e as equipes das empresas na China respondem por 6% de seu pessoal internacional.

Mas muitas das maiores empresas de tecnologia chinesas, como Alibaba, JD.com e Baidu, estão entre os clientes de auditoria que não fornecem documentação de auditorias na China às autoridades regulatórias americanas.

“As normas da SEC têm por objetivo aumentar a transparência”, disse Catherine Ide, vice-presidente de práticas profissionais no US Center for Audit Quality (Centro mericano de qualidade da auditoria, em tradução livre). “Enquanto prossegue a atividade regulatória, os profissionais de auditoria americanos continuam a ter forte compromisso com a manutenção da qualidade de auditoria”.

Se não surgir uma solução, as operações chinesas das Quatro Grandes podem perder seu registro no PCAOB, o que as impediria de auditar companhias nos Estados Unidos. As Quatro Grandes também se preocupam com a possibilidade de perder seu acesso ao mercado da China.

Isso poderia ter ramificações prejudiciais para a auditoria de empresas multinacionais como a Apple e a General Motors, que têm sede nos Estados Unidos mas mantêm grandes operações na China.

“Isso não é bom, para toda a profissão de auditoria”, disse Paul Leder, antigo diretor do Escritório de Assuntos Internacionais da SEC e que esteve diretamente envolvido no diálogo da agência com as autoridades chinesas sobre essa questão. “Como resultado do conflito entre as autoridades de governo nos Estados Unidos e na China, os auditores enfrentam a ameaça de ações repressivas em ambos os países, e os custos a isso associados.

“O impasse atual não serve aos interesses das companhias internacionais de auditoria, dos emissores de títulos, dos investidores ou dos mercados”, afirmou Leder, que hoje trabalha para o escritório de advocacia Miller & Chevalier, em Washington.

Uma “era dourada da fraude”

Desde a Lei Sarbanes-Oxley, as autoridades regulatórias americanas tentaram de diversas maneiras forçar o cumprimento das medidas adotadas, o que inclui negociações diretas com as autoridades regulatórias chinesas e processos judiciais contra as companhias de auditoria.

Em 2012, a agência regulatória agiu contra os escritórios das empresas de auditoria na China quanto a escândalos contábeis em nove companhias, que resultaram em prejuízos de bilhões de dólares para os acionistas.

Os processos mudaram o panorama da profissão. Algumas empresas de segundo escalão decidiram abandonar o trabalho de auditoria para empresas chinesas com ações cotadas nos Estados Unidos, depois que seus provedores de seguros suspenderam a cobertura a esse tipo de atividade.

Uma disparada recente no número de escândalos contábeis levou as autoridades a adotar medidas mais duras para proteger investidores, entre as quais regras mais severas para as companhias de auditoria.

“Vivemos uma era dourada da fraude”, disse Jim Chanos, um renomado investidor de mercado futuro, apontando para o caso da Luckin Coffee, a maior fraude de uma empresa chinesa em Wall Street.

Mike Pompeo, então secretário de Estado dos Estados Unidos, alertou os investidores americanos quanto a “um padrão de práticas contábeis fraudulentas em companhias sediadas na China”.

Local X global

As "Quatro Grandes" da auditoria se promovem como entidades mundiais com uma cultura compartilhada e padrões coerentes, mas operam como franquias legalmente distintas.

Isso é especialmente importante na China, onde as empresas são obrigadas por lei a manter uma associação com uma empresa local de auditoria, mas ainda assim manter controle de qualidade centralizado sobre milhares de auditorias.

“A estrutura das redes existe primariamente para proteger o grupo de auditoria contra responsabilidade judicial por riscos que existam fora de seu país de origem”, disse o vice-presidente de auditoria de uma das grandes empresas de contabilidade.

Uma potencial solução proposta pelas autoridades regulatórias americanas no ano passado teria exigido que grupos americanos de auditoria “co-auditassem” o trabalho de suas companhias parceiras na China.

Isso teria tornado os sócios americanos das empresas potencialmente responsáveis perante a Justiça pelo trabalho realizado por seus parceiros chineses, em caso de um colapso e de processos de investidores ou das autoridades regulatórias —algo que as empresas de auditoria vêm tentando evitar de toda maneira.

Para alívio das "Quatro Grandes", essa proposta “está praticamente morta”, de acordo com pessoas informadas sobre as negociações. Há outras soluções em debate —muitas das quais indesejáveis.

O diretor de políticas públicas de uma das "Quatro Grandes" disse que “talvez tenhamos de realizar auditorias duplicadas no mundo inteiro só para satisfazer o requisito [da SEC], que na verdade não necessariamente garante a qualidade. Acho que isso é um risco”.

No entanto, o modelo em vigor também se provou vulnerável a desafios. No processo aberto contra a KPMG por suas auditorias da China Medical Technologies, um juiz de Hong Kong decidiu que todos os sócios da empresa “têm a obrigação pessoal de tomar medidas que facilitem o cumprimento das normas”, quer eles estejam baseados na China, quer não.

Uma decisão semelhante foi tomada por um tribunal britânico com relação à EY Global em um processo quanto à auditoria da refinadora de ouro Kaloti, em Dubai, no ano passado.

Enquanto isso, as "Quatro Grandes" prometeram tentar melhorar os padrões mundiais de qualidade de auditoria em toda a sua rede, depois que Jay Clayton, ex-chairman da SEC, as instou no ano passado a melhorar a qualidade das auditorias realizadas na China sobre empresas que têm ações cotadas nos Estados Unidos.

“Com base na atual trajetória do relacionamento entre os Estados Unidos e a China, parece provável que o impasse continue e que as companhias chinesas decidam cotar suas ações em outras bolsas”, disse Leder. “As divisões chinesas das empresas internacionais de auditoria ficarão menos conectadas às entidades como um todo, e um novo elo se romperá entre os Estados Unidos e a China”.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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