Descrição de chapéu The New York Times

Censura, vigilância e lucros: uma barganha difícil para a Apple na China

Documentos internos da Apple oferecem ampla visão de como a Apple cedeu às crescentes exigências das autoridades chinesas

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Jack Nicas Raymond Zhong Daisuke Wakabayashi
Guiyang (China) | The New York Times

Nos arredores desta cidade em uma província pobre e montanhosa no sudoeste da China, homens de capacete davam recentemente os últimos retoques em um prédio branco com 400 metros de comprimento, poucas janelas e cercado por um muro alto. Havia poucos sinais de sua finalidade, além das bandeiras da Apple e da China tremulando na frente, lado a lado.

Lá dentro, a Apple se preparava para armazenar os dados pessoais de seus clientes chineses em computadores-servidores operados por uma empresa estatal chinesa.

Tim Cook, o executivo-chefe da Apple, disse que os dados estão seguros. Mas no centro de dados em Guiyang, que a Apple esperava que estivesse pronto no próximo mês, e em outro na região da Mongólia Interior, a Apple cedeu grande parte do controle ao governo chinês.

Funcionários públicos chineses operam fisicamente os computadores. A Apple desistiu da tecnologia de criptografia que usava em outros lugares porque a China não a permitiu. E as chaves digitais que destravam a informação nesses computadores estão guardadas nos centros de dados que elas servem para proteger.

Documentos internos da Apple examinados por The New York Times, entrevistas com 17 atuais e antigos empregados da Apple e quatro especialistas em segurança, assim como novos documentos apresentados em um processo jurídico nos Estados Unidos na semana passada, oferecem raras percepções das concessões feitas por Cook para fechar negócios na China. Eles oferecem uma ampla visão interna —muitos aspectos nunca foram divulgados— de como a Apple cedeu às crescentes exigências das autoridades chinesas.

Homem caminha em frente a propaganda de iPhone em Hong Kong, ne China - Athit Perawongmetha - 10.out.2019

Duas décadas atrás, como chefe de operações da Apple, Cook conduziu a entrada da companhia na China, medida que ajudou a fazer da Apple a empresa mais valiosa do mundo e o tornou o herdeiro aparente de Steve Jobs. Hoje a Apple monta quase todos os seus produtos e obtém um quinto de suas receitas na região da China. Mas assim como Cook descobriu como fazer a China trabalhar para a Apple, a China está fazendo a Apple trabalhar para o governo chinês.

Cook costuma falar sobre o compromisso da Apple com os direitos civis e a privacidade. Mas para ficar ao lado dos reguladores chineses sua companhia colocou em risco os dados de seus clientes na China e ajudou a censura do governo na versão chinesa de sua App Store. Depois que funcionários chineses se queixaram, ela até abandonou o slogan "Designed pela Apple na Califórnia" que vinha na parte traseira dos iPhones.

O líder chinês, Xi Jinping, está aumentando suas exigências às companhias ocidentais, e Cook resistiu a elas em diversas ocasiões. Mas afinal ele aprovou os planos para armazenar dados de clientes em servidores chineses e censurar agressivamente os aplicativos, segundo entrevistas com funcionários atuais e antigos da companhia.

"A Apple se tornou uma parte da máquina de censura que apresenta uma versão da internet controlada pelo governo", disse Nicholas Bequelin, diretor do grupo de direitos humanos Anistia Internacional na Ásia. "Se você observar o comportamento do governo chinês, não verá qualquer resistência da Apple —nenhum registro de defesa dos princípios aos quais a Apple afirma estar tão ligada."

Enquanto os governos Trump e Biden assumiram uma posição mais dura em relação à China, o flerte da Apple com o governo chinês mostra uma desconexão entre os políticos de Washington e a empresa mais rica dos Estados Unidos.

Cook está numa ofensiva de charme com a China, fazendo frequentes visitas ao país e se reunindo com líderes importantes. Em uma viagem em 2019, ele percorreu a Cidade Proibida, conheceu uma startup e postou comentários sobre a viagem na rede social chinesa Weibo.

Nos bastidores, a Apple construiu uma burocracia que se tornou uma ferramenta poderosa na vasta operação de censura da China. Ela censura de forma proativa sua App Store chinesa, contando com software e empregados para identificar e bloquear aplicativos que, no entender dos diretores da Apple, poderiam ofender as autoridades locais, segundo entrevistas e documentos jurídicos.

Uma análise do Times descobriu que dezenas de milhares de apps desapareceram da App Store chinesa nos últimos vários anos, mais do que se sabia anteriormente, incluindo canais de notícias estrangeiros, serviços de namoro gay e apps de mensagens criptografadas. Ela também bloqueou ferramentas para organizar protestos a favor da democracia e contornar restrições na internet, assim como apps sobre o Dalai Lama.

Em seus centros de dados, as concessões da Apple tornaram quase impossível para a empresa impedir o acesso do governo chinês a emails, fotos, documentos, contatos e localização de milhões de residentes chineses, segundo especialistas em segurança e engenheiros da Apple.

A companhia disse em um comunicado que seguiu as leis da China e fez o possível para manter em segurança os dados dos clientes. "Nós nunca comprometemos a segurança de nossos usuários ou seus dados na China ou em qualquer lugar onde operamos", disse a empresa.

Um porta-voz da Apple disse que a companhia ainda controla as chaves que protegem os dados de seus clientes chineses e que a Apple usa no país sua criptografia mais avançada —mais que a usada em outros países.

A Apple acrescentou que removeu apps só para acatar as leis da China. "Essas decisões nem sempre são fáceis, e podemos discordar das leis que as moldam", disse a companhia. "Mas nossa prioridade continua sendo criar a melhor experiência para o usuário sem violar as regras que somos obrigados a seguir."
Cook recusou uma entrevista para esta reportagem. Em aparições públicas, ele disse que embora muitas vezes discorde das leis chinesas o mundo está melhor com a Apple na China.

"Sua opção é: você participa? Ou fica na lateral e grita sobre como as coisas deveriam ser?", disse ele em uma conferência na China em 2017. "Minha visão particular é muito forte: você aparece e participa. Você entra em campo, porque nada muda pelas laterais."

Sem plano B

Em 2014, a Apple contratou Doug Guthrie, reitor demissionário da escola de economia da Universidade George Washington, para ajudar a empresa a navegar na China, país que ele passou décadas estudando.

Um de seus primeiros projetos de pesquisa foi a rede de suprimentos da Apple na China, que envolvia milhões de trabalhadores, milhares de fábricas e centenas de fornecedores. O governo chinês possibilitou essa operação gastando bilhões de dólares para pavimentar estradas, recrutar trabalhadores e construir fábricas, usinas de energia e habitação para empregados.

Guthrie concluiu que nenhum outro país poderia oferecer a escala, as técnicas, a infraestrutura e a ajuda do governo que a Apple necessitava. Trabalhadores chineses montam quase todos os iPhones, iPads e Macs. Os consumidores da região pagam à Apple mais de US$ 55 bilhões por ano, muito mais que qualquer companhia americana na China.

"Esse modelo de negócios só cabe e funciona realmente na China", disse Guthrie. "Mas então você está casado com a China."

O governo chinês começava a aprovar leis que davam ao país maior vantagem sobre a Apple, e Guthrie disse acreditar que Xi em breve começaria a buscar concessões. Ele percebeu que a Apple não tinha um plano B.

"Para as autoridades chinesas, não é mais uma questão de 'Quanto dinheiro você vai despejar na China?', e sim 'O que você vai dar em troca?'", explicou Guthrie.

Guthrie deu essa advertência aos principais assessores de Cook, incluindo Phil Schiller, um antigo chefe de marketing; Eddy Cue, diretor de software e serviços de internet; Lisa Jackson, chefe de assuntos de governo da companhia; e Jeff Williams, seu chefe de operações, que é amplamente considerado o braço-direito de Cook.

Enquanto Guthrie dava seus avisos, a Apple começou a deixar o governo chinês feliz. Parte dessa iniciativa foram novos centros de pesquisa e desenvolvimento na China. Mas estes complicaram a imagem da Apple como uma empresa da Califórnia. Em uma cúpula para seus novos engenheiros e designers chineses, a Apple mostrou um vídeo que terminava com uma frase que a Apple estampava na tampa traseira dos iPhones havia anos: "Designed pela Apple na Califórnia".

Os empregados chineses ficaram irritados, segundo Guthrie e outra pessoa que estava presente. Se os produtos eram desenhados na Califórnia, gritaram, então o que eles estavam fazendo na China?

"A frase foi profundamente ofensiva para eles", disse Guthrie, que saiu da Apple em 2019 e voltou para sua casa em Michigan. "Eles ficaram furiosos."

O iPhone seguinte não continha essa frase.

"Golden Gate"

Em novembro de 2016, a China aprovou uma lei que exigia que toda "informação pessoal e dados importantes" coletados na China fossem mantidos na China.

Foi uma má notícia para a Apple, que tinha apostado sua reputação em manter em segurança os dados dos clientes. Enquanto a empresa respondia regularmente a pedidos judiciais de acesso a dados de clientes, Cook tinha recusado ao FBI um pedido de ajuda da empresa para invadir um iPhone que pertencia a um terrorista envolvido na morte de 14 pessoas em San Bernardino, na Califórnia. Agora o governo chinês tinha uma exigência ainda mais ampla.

Outras companhias enfrentaram um problema semelhante na China, mas a Apple foi exposta de forma única, por seu perfil elevado e forte dependência do país.

O serviço iCloud da Apple permite que os clientes armazenem alguns de seus dados mais delicados —coisas como contatos pessoais, fotos e emails— nos centros de dados da companhia. O serviço pode fazer o backup de tudo que está salvo num iPhone ou num computador Mac, e pode revelar a localização atual dos dispositivos Apple do usuário. A maior parte dos dados de clientes chineses estava guardada em servidores fora da China.

A equipe da Apple na China avisou Cook de que o governo poderia fechar a iCloud no país se ela não cumprisse a nova lei de cibersegurança. Então Cook concordou em transferir os dados pessoais de seus clientes chineses para servidores de uma companhia estatal chinesa. Isso levou a um projeto conhecido na Apple como "Golden Gate".

A Apple criptografa os dados privados de seus clientes no serviço iCloud. Mas para a maior parte dessa informação a empresa também tem as chaves digitais para destravar a criptografia.

A localização das chaves para os dados de clientes chineses foi um ponto difícil nas negociações entre a Apple e as autoridades chinesas, segundo duas pessoas próximas às deliberações. A Apple queria mantê-las nos Estados Unidos, e as autoridades chinesas as queriam na China.

A lei de cibersegurança entrou em vigor em junho de 2017. Em um acordo inicial entre a Apple e as autoridades chinesas, a localização das chaves foi deixada intencionalmente vaga, disse uma das pessoas.

Mas oito meses depois as chaves da criptografia foram levadas para a China. Isso surpreendeu pelo menos dois executivos da Apple que trabalhavam nas negociações iniciais e disseram que a medida poderia pôr em risco dados de clientes. Não está claro o que levou à mudança.

Documentos vistos pelo Times não mostram que o governo chinês obteve acesso aos dados. Eles só indicam que a Apple fez concessões que facilitam o acesso do governo.

Acordo incomum

Com as chaves na China, o governo tem dois meios para acessar os dados, segundo especialistas em segurança: pedi-los, ou tomá-los sem pedir.

O governo chinês regularmente pede dados de companhias chinesas, muitas vezes para investigações policiais. A lei chinesa exige que as companhias acatem.

A lei dos EUA há muito proíbe as companhias americanas de entregar dados a órgãos judiciais chineses. Mas a Apple e o governo chinês fizeram um acordo incomum para contornar as leis americanas.

Na China, a Apple cedeu a propriedade legal dos dados de seus clientes à empresa Guizhou-Cloud Big Data, ou GCBD, de propriedade do governo da província de Guizhou, cuja capital é Guiyang. A Apple recentemente pediu que seus clientes chineses aceitem os novos termos e condições da iCloud, que listam a GCBD como provedor de serviços e a Apple como "parte adicional". A Apple disse aos clientes que a mudança foi para "melhorar os serviços da iCloud na China e cumprir os regulamentos chineses".

Os termos e condições incluíam um novo dispositivo que não aparece em outros países: "A Apple e a GCBD terão acesso a todos os dados que você armazenar neste serviço" e podem compartilhar esses dados "entre si sob a lei aplicável".

Sob o novo arranjo, as autoridades chinesas pedem à GCBD —e não à Apple— os dados de clientes da Apple, disse a empresa. A Apple acredita que isso lhe dá proteção jurídica da lei americana, segundo uma pessoa que ajudou a criar o acordo. A GCBD não quis responder a perguntas sobre sua parceria com a Apple.

Nos três anos anteriores à entrada em vigor da lei de cibersegurança da China, a Apple nunca forneceu o conteúdo da conta de um usuário da iCloud às autoridades chinesas e contestou 42 pedidos do governo chinês por esses dados, segundo estatísticas divulgadas pela companhia. A Apple disse que contestou esses pedidos porque eram ilegais sob a lei dos EUA.

Nos três anos após a aprovação da lei, a Apple disse que forneceu o conteúdo de um número não revelado de contas da iCloud ao governo em nove casos e contestou apenas três pedidos do governo.

A Apple ainda parece fornecer muito mais dados à polícia dos EUA. No mesmo período, de 2013 a junho de 2020, a Apple disse que entregou o conteúdo de contas na iCloud para autoridades dos EUA em 10.781 casos individuais.

As autoridades chinesas dizem que sua lei de cibersegurança se destina a proteger dados de residentes chineses de governos estrangeiros. Pessoas próximas à Apple sugeriram que as autoridades chinesas muitas vezes não precisam dos dados da Apple, e por isso os pedem com menos frequência, porque já vigiam seus cidadãos de inúmeras outras maneiras.

Mas os dados da iCloud na China são vulneráveis ao governo chinês porque a Apple fez uma série de concessões para acatar as exigências das autoridades, segundo dezenas de páginas de documentos internos da Apple sobre o planejamento do design e segurança do sistema iCloud chinês, que foram examinadas para o Times por um engenheiro da Apple e quatro pesquisadores de segurança independentes.

Os documentos mostram que os empregados da GCBD teriam o controle físico dos servidores, enquanto os empregados da Apple monitorariam principalmente a operação de fora do país. Os especialistas em segurança disseram que o acordo por si só representa uma ameaça que nenhum engenheiro poderia resolver.

"A inteligência chinesa tem o controle físico de seu hardware —esse é basicamente um nível de ameaça que você não pode permitir", disse Matthew Green, professor de criptografia na Universidade Johns Hopkins.

A Apple disse que desenhou a segurança da iCloud "de tal maneira que só a Apple tem controle das chaves de criptografia".

Os documentos também mostram que a Apple está usando tecnologias de criptografia na China diferentes de outros lugares do mundo, contradizendo o que Cook sugeriu em uma entrevista em 2018.

As chaves digitais que podem descriptografar dados da iCloud são geralmente guardadas em dispositivos especiais chamados módulos de segurança de hardware, que são feitos pela empresa de tecnologia francesa Thales. Mas a China não aprovou o uso desses equipamentos, segundo dois empregados. Por isso a Apple criou novos dispositivos para guardar as chaves na China.

Os documentos, do início de 2020, indicaram que a Apple pretendia basear os novos dispositivos em uma versão mais antiga do software iOS, que movimenta os iPhones, um dos sistemas mais visados por hackers. A Apple também planejava usar hardware de baixo custo originalmente desenhado para a Apple TV. Isso alarmou os pesquisadores de segurança.

Mas a Apple disse que os documentos incluíam informação desatualizada e que seus centros de dados na China "incluem nossas proteções mais recentes e sofisticadas", que seriam mais tarde usadas em outros países.

O governo chinês deve aprovar qualquer tecnologia de criptografia que a Apple use na China, segundo dois empregados atuais da Apple.

"Os chineses são invasores seriais de iPhones", disse Ross Anderson, pesquisador de cibersegurança da Universidade de Cambridge que analisou os documentos. "Estou convencido de que eles terão a capacidade de invadir os servidores."

A Apple tentou isolar os servidores chineses do resto de sua rede iCloud, segundo os documentos. A rede chinesa seria "montada, administrada e monitorada separadamente de todas as outras redes, sem meios de cruzar com outras redes fora do país". Dois engenheiros da Apple disseram que a medida visava evitar que brechas de segurança na China se espalhassem para os outros centros de dados da Apple.

A companhia disse que sequestrou os centros de dados chineses porque eles são, na verdade, propriedade do governo chinês, e a Apple mantém todos os terceiros desconectados de sua rede interna.

Em Cupertino, na Califórnia, engenheiros da Apple estão correndo para terminar designs para a nova iCloud chinesa. Em uma apresentação a alguns engenheiros no ano passado, segundo slides vistos pelo Times, diretores deixaram claro que as apostas são altas.

"Haverá uma enorme pressão para terminar isto. Nós aceitamos o cronograma três anos atrás", dizia um slide. "Pessoas importantes colocaram suas reputações na linha. A iCloud precisa de amigos influentes na China."

Os documentos mostram que o prazo para a Apple começar a armazenar informações nos novos centros de dados chineses é junho de 2021.

Processo esconde a China

No início de 2018, Guo Wengui, um bilionário chinês exilado, passava a maior parte do tempo em Manhattan tentando divulgar denúncias de corrupção no Partido Comunista. Seu último esforço foi um app para o iPhone na China que reproduzia essas acusações.

Antes mesmo que seu app ficasse disponível nos iPhones, o governo chinês tentou bloqueá-lo. Pouco depois que Guo se inscreveu na App Store, a Administração do Ciberespaço da China, o regulador da internet chinesa, disse à Apple que queria que o app fosse recusado. Não estava claro como as autoridades sabiam dele.

Esses acontecimentos e a reação em cadeia que eles provocaram na Apple foram expostos em documentos na semana passada em um caso de demissão indevida contra a companhia. Os documentos e entrevistas esclarecem uma burocracia interna da Apple destinada a censurar e bloquear aplicativos, muitas vezes de forma pro ativa, para tranquilizar o governo chinês.

Em 4 de fevereiro de 2018, pouco depois que as autoridades chinesas pediram que o app de Guo fosse recusado, um diretor da Apple enviou um email para uma colega com uma pergunta: Guo já fazia parte da "lista de sensibilidades chinesas" da Apple, ao lado de elementos como Falun Gong —movimento espiritual chinês— e o Dalai Lama?

A colega respondeu que Guo provavelmente estava na lista, já que ele vinha espalhando histórias difamatórias não verificáveis sobre autoridades chinesas. Ela sugeriu que a pergunta fosse levada ao "conselho executivo de revisão" da Apple, grupo de executivos que decide as questões mais delicadas da App Store e que inclui altos assessores de Cook.

Duas semanas depois, o conselho disse que Guo constava da lista negra chinesa da Apple. Funcionários da Apple acrescentaram seu nome à "página wiki de remoção da App Store chinesa", segundo os documentos, assim como um programa de software que automaticamente marcaria apps que o mencionassem.

Seis meses depois, Guo apresentou seu app novamente, com mudanças para escapar do software da Apple. Trieu Pham, um revisor de apps em Cupertino, foi encarregado do app. Ele não encontrou nada que violasse as regras da Apple, e em 2 de agosto o aprovou.

Três semanas depois, Trystan Kosmynka, revisor-chefe de apps da Apple, enviou um email a vários diretores às 2h32. O assunto era "Quente: Guo". O governo chinês tinha localizado o novo app de Guo, e Kosmynka queria saber como ele foi publicado.

"Este app e qualquer app de Guo Wengui não podem estar na loja da China", escreveu ele, segundo emails apresentados no caso no tribunal. "Podemos implementar as peças necessárias para evitar isso assim que possível."

A Apple retirou o app e começou a investigar. Um relatório disse que o app foi publicado porque "o processo de esconder da China não foi seguido", segundo documentos do processo. Ele dizia que Pham, o revisor de apps, deveria ter enviado o app a especialistas da Apple em língua chinesa, que foram treinados sobre quais temas devem bloquear na App Store chinesa, incluindo Guo.

Quando os diretores da Apple questionaram Pham, ele disse que o app não violava qualquer política. Os diretores responderam que o app criticava o governo chinês, disse Pham em documentos do caso, e que isso bastava para a recusa.

Seis meses depois, a Apple demitiu Pham. Em resposta, ele processou a empresa, acusando-a de forçar sua saída para agradar ao governo chinês.

A Apple disse que cancelou o app de Guo na China porque tinha determinado que ele era ilegal no país. A Apple disse que demitiu Pham por mau desempenho.

Os canais de mídia de Guo têm um histórico de divulgar desinformação. A natureza exata dos apps no caso de 2018 não ficou clara, embora documentos jurídicos dissessem que eles discutiam a corrupção no Partido Comunista chinês.

Phillip Shoemaker, que dirigiu a App Store da Apple de 2009 a 2016, disse que advogados da empresa na China deram à sua equipe uma lista de temas que não podiam aparecer em apps no país, incluindo a Praça Tiananmen e a independência do Tibete e de Taiwan. Ele disse que a política da Apple era simples: se os advogados acreditassem que um assunto era proibido na China, a Apple o removeria.

Nos iPhones chineses, a Apple proíbe apps sobre o Dalai Lama enquanto hospeda os do grupo paramilitar chinês acusado de deter e abusar dos uigures, uma minoria étnica da China.

A companhia também ajudou a China a disseminar sua visão de mundo. Os iPhones chineses censuram o emoji da bandeira de Taiwan, e seus mapas sugerem que o território faz parte da China. Durante algum tempo, simplesmente digitar a palavra Taiwan podia fazer um iPhone travar, segundo Patrick Wardle, ex-hacker na Agência Nacional de Segurança.

Às vezes, disse Shoemaker, ele era despertado no meio da noite com exigências do governo chinês para retirar um app. Se o app parecesse mencionar os temas proibidos, ele os retiraria, mas enviava os casos mais complicados a executivos graduados, incluindo Cue e Schiller.

A Apple resistiu a uma ordem do governo chinês de retirar os apps do Times em 2012. Mas cinco anos depois acabou fazendo isso. Cook aprovou a decisão, segundo duas pessoas inteiradas do assunto que falaram sob a condição do anonimato.

A Apple começou recentemente a revelar com que frequência os governos pedem que ela retire apps. Nos dois anos até junho de 2020, os dados mais recentes disponíveis, a Apple disse que aprovou 91% dos pedidos de remoção do governo chinês, ou 1.217 aplicativos.

Em todos os outros países somados nesse período, a empresa aprovou 40% dos pedidos, retirando 253 apps. A Apple disse que a maioria dos que removeu para o governo chinês se relacionavam a jogos de apostas ou pornografia, ou funcionavam sem licença do governo, como serviços de empréstimos e apps de streaming ao vivo.

Mas uma análise do Times de dados de apps chineses sugere que essas revelações representam uma fração dos apps que a Apple bloqueou na China. Desde 2017, aproximadamente 55 mil apps ativos desapareceram da App Store na China, segundo dados compilados pela Sensor Tower, firma de dados de apps. A maioria deles continuou disponível em outros países.

Mais de 35 mil desses apps eram jogos, que na China devem ser aprovados por reguladores oficiais. Os demais 20 mil cortes ocupam um amplo leque de categorias. Apps que mapeiam corridas dos usuários, selfies editados e ensinam posições sexuais foram removidos. Assim como apps que permitem que os usuários troquem mensagens privadas, compartilhem documentos e naveguem sites que o governo chinês bloqueou. Mais de 600 novos apps também desapareceram.

A Apple nega esses números, dizendo que alguns desenvolvedores removem seus apps da China. A Apple disse que desde 2017 retirou 70 novos apps em resposta a pedidos do governo chinês.

A discrepância entre as revelações da Apple e a análise do Times ocorre em parte porque a Apple está removendo apps antes que os censores da internet chinesa se queixem. A Apple não revela esses cortes em suas estatísticas.

Shoemaker disse que ele e sua equipe racionalizam a remoção de apps enquadrando-a como uma simples aplicação das leis de um país. Passos semelhantes foram dados em lugares como Arábia Saudita e Rússia, disse ele. "Ao mesmo tempo, nós não quisemos ser postos diante do Senado para explicar por que estamos 'censurando apps na China'", disse ele. "Foi uma corda-bamba em que tivemos de andar."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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