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Empresas precisam ser desproporcionais na pauta racial, diz diretor do Mover

À frente do movimento que reúne 47 companhias, Carlos Domingues defende ações específicas para pessoas negras

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São Paulo

Em novembro de 2020, João Alberto Silveira Freitas foi espancado e morto por dois seguranças de uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre. Homem negro, ele morreu na véspera do Dia da Consciência Negra.

Episódios como esse podem revelar a falta de compromisso de grandes companhias com a pauta racial. Ao mesmo tempo, podem servir como marco para transformações.

Ainda não dá para dizer que o assassinato de João Alberto fez o mundo corporativo mudar, mas ele motivou algumas iniciativas. Naquele mesmo mês de novembro, grandes empresas se juntaram para criar o Mover, movimento pela equidade racial que hoje reúne 47 companhias, como Ambev, BRF, Coca-Cola, Magalu, Nestlé e PepsiCo.

O movimento tem a meta de gerar 10 mil novas posições para pessoas negras em cargos de liderança até 2030, além de impactar 3 milhões de profissionais negros com iniciativas de emprego e empreendedorismo.

Para Carlos Domingues, diretor-executivo do Mover e líder da área de diversidade e inclusão da PepsiCo, as companhias precisam ser desproporcionais em suas iniciativas hoje para que a equidade racial possa existir no futuro.

"Ser desproporcional é ter programas e iniciativas específicos para pessoas negras e para mulheres negras", afirma.

Carlos Domingues, 34, diretor-executivo do Mover e líder da área de diversidade, equidade e inclusão da PepsiCo - Zanone Fraissat/Folhapress

Segundo ele, iniciativas de combate ao racismo não servem apenas à população negra, mas a toda sociedade, e o Mover pode ser uma ferramenta para estimular essas ações.

"É um compromisso sério, que além de aportar capital intelectual e financeiro, é compromisso interno também, de mudar a cara, a cor e a representatividade nas posições de liderança dentro da organização", diz.

O Mover é formado atualmente pelas seguintes empresas: Alcoa, Aliansce Sonae, Ambev, Americanas S.A., Arcos Dorados-McDonald’s, Atento, Bain & Company, BRF, Cargill, Coca-Cola Brasil, Colgate-Palmolive, CSN, Danone, Descomplica, DHL Supply Chain, Diageo, Disney, EF, General Mills, Gerdau, GPA, Grupo Carrefour Brasil, Heineken, JBS, Kellogg, Klabin, Kraft Heinz, L’Oréal Brasil, Lojas Renner, Magalu, Manserv, Marfrig, MARS, Michelin, Mondelëz International, Moove, Nestlé, PepsiCo, Petz, RD - Raia Drogasil, Sodexo, Tenda Atacado, UnitedHealth Group Brasil, Vale, Via, XP Inc. e 3M.

O Mover pretende ser uma ferramenta de combate ao racismo. Como?

Nós temos três grandes objetivos. Um deles é fazer a transformação dentro das nossas empresas, garantindo representatividade negra na liderança —que é onde conseguimos atuar de maneira efetiva.

Outro objetivo é levar investimento para fora das companhias, impactando 3 milhões de pessoas negras por meio de editais para capacitação, empregabilidade e conexão com empreendedores.

A terceira meta é ser uma plataforma que ajuda a população a se conscientizar sobre o racismo e práticas antirracistas. No ano passado, por exemplo, nós fizemos o Dia de Mover, onde levamos a discussão racial para 1,3 milhão de funcionários das nossas empresas.

Existem outros movimentos em prol da agenda racial no ambiente corporativo. O que diferencia o Mover dessas iniciativas?

Eu não sei se há algo que diferencie o Mover. A ideia do grupo é o movimento. Somos capazes de construir iniciativas juntos, entre as organizações.

Tem uma parte importante, e isso pode ser um diferencial, que é o compromisso que as empresas assumiram com a liderança negra. As empresas que fazem parte do Mover entregarão 10 mil novas posições de lideranças negras até 2030. Esse é um compromisso que nos diferencia, nos ajuda a repensar nossos processos de recrutamento e de desenvolvimento.

Atualmente, quantas dessas 47 empresas têm CEOs negros?

O Mover está fazendo um trabalho de levantamento de dados para mostrar qual o nosso baseline [linha de base], tendo em vista a meta que queremos alcançar. Mas, atualmente, nós temos três CEOs que se autodeclaram negros.

O Mover tem um orçamento para as iniciativas?

As empresas que participam do Mover fazem um investimento anual, que nós utilizamos para a estrutura, a comunicação e também para os editais que vamos lançar em parceria com instituições, a fim de proporcionar empregabilidade, empreendedorismo e capacitação. Mas cada empresa continua com suas responsabilidades e investimentos internos.

E qual o valor do orçamento anual?

Em torno de R$ 15 milhões.

O Mover surgiu logo após a morte do João Alberto no Carrefour. O caso motivou a criação do Mover?

Existe mais de um motivador para a criação do Mover. Algumas empresas que fazem parte do grupo já estavam reunidas entre abril e junho de 2020 para criar o Movimento Nós, que levava uma ajuda para o pequeno varejo naquele início de pandemia.

Essa iniciativa despertou a noção de que era possível fazer coisas melhores e maiores, potencializando ações e iniciativas que já temos dentro das organizações. A diversidade foi uma das agendas.

Em novembro, teve esse caso [do Carrefour], que também foi um motivador para que nós nos juntássemos e fizéssemos uma carta na semana seguinte com o compromisso de construir um plano para combater o racismo estrutural.

Depois de oito meses, viemos com esse plano constituído nos três pilares: compromisso interno das empresas com lideranças negras; impactar 3 milhões de pessoas negras na sociedade; e ser essa ferramenta de comunicação para apontar caminhos e práticas antirracistas.

Episódios de racismo continuam acontecendo no mundo corporativo. O que uma empresa pode fazer para evitar isso?

Nós temos criado cartilhas, treinamento e capacitação. Uma força que temos feito é em relação ao letramento racial. Temos levado para as organizações o histórico da questão racial no Brasil, que é algo ainda muito desconhecido.

É importante conectar com o passado para entender as desigualdades que existem hoje na nossa sociedade e também para apontar caminhos. Todos que participam do Mover já passaram por esse letramento.

Você ocupa uma posição de liderança numa grande empresa, o que é uma exceção no contexto brasileiro. Quais dificuldades já passou no mercado de trabalho e que ainda precisam ser mudadas?

Eu acredito que a consciência negra vem com o tempo, sabe? Eu nunca tive dúvida sobre a minha negritude. Eu sou um negro retinto, então para mim isso sempre foi muito evidente. Mas à medida que fui crescendo profissionalmente, fui ficando mais sozinho. Seja dentro das organizações ou nos espaços que frequento, como restaurantes.

Isso começou a me trazer mais consciência e um olhar mais crítico. Eu passei a entender que nós precisamos rever, e muito, a forma como as políticas [corporativas] foram implementadas. Elas não tinham um olhar de inclusão, elas não eram intencionais e, por muitas vezes, elas poderiam até reforçar o racismo estrutural.

Durante a minha jornada de capacitação para o mercado de trabalho, eu estava pouco consciente sobre as dificuldades e posso dizer que não era tão crítico. Mas depois que eu ascendi na carreira, comecei a prestar mais atenção em todo esse processo. Hoje tenho clareza de que as políticas e os processos precisam ser revistos e precisam ter intencionalidade para fazermos a transformação que nós queremos.

Além da questão da falta de diversidade no quadro de funcionários, outro problema que aparece está relacionado à remuneração. Como é a questão salarial hoje no mercado?

Eu vejo várias empresas que têm adotado políticas para equity pay [equidade de pagamento]. O Mover tem algumas companhias com boas práticas, e esse é um dos caminhos. Mas outro caminho é garantir que as pessoas negras estejam nas posições de liderança.

Olhando o cenário atualmente, quão distante estamos dessa igualdade salarial?

Eu não tenho dados de hoje, mas uma pesquisa de 2019 mostra que ainda temos homens brancos no topo da pirâmide, depois mulheres brancas, homens negros e mulheres negras. Nós temos urgência com esse tema e precisamos acelerar a representatividade, fazendo com que as empresas olhem de forma consciente para a equidade salarial.

As desvantagens no mercado de trabalho são ainda maiores para as mulheres negras. Na sua visão, é preciso criar programas específicos para esse público?

Sim, acho que tem que ser intencional. Nós precisamos ser desproporcionais hoje para garantir que, em algum momento, vamos ter igualdade. Ser desproporcional é ter programas e iniciativas específicos para pessoas negras e para mulheres negras.

A agenda ESG impulsionou a pauta racial no mundo corporativo. Você acha que o compromisso é real ou tem empresa só tentando capitalizar em cima desse discurso?

Eu sou otimista, mas além disso tenho visto casos concretos. O Mover é um deles. Nós temos 47 grandes organizações que se comprometeram em ser um instrumento de mudança. É um compromisso sério, que, além de aportar capital intelectual e financeiro, é compromisso interno também, de mudar a cara, a cor e a representatividade nas posições de liderança dentro da organização.

Há empresas que fazem disso algo para as mídias sociais? Talvez haja, mas o que eu tenho visto são empresas que estão conseguindo aterrissar em ações e lançar programas que propõem uma mudança de fato.

Recentemente, uma campanha sobre racismo feita pela rede de academias Bodytech foi criticada nas redes sociais, inclusive por autoridades. Como você avalia esse tipo de caso?

Quando não nos posicionamos, nós acabamos sendo posicionados. Uma propaganda como a da Bodytech traz para o mercado uma oportunidade de diálogo, de reflexão e diz quais são os valores da companhia. Eu vejo isso de uma forma muito positiva.

Que existe na sociedade uma reação a esse tipo de posicionamento, isso não é de hoje. A Robin DiAngelo, que é uma escritora americana, escreveu um livro falando sobre prática antirracista e traz um conceito sobre fragilidade branca, que tem a ver com isso.

Quando surgem ações afirmativas ou de conscientização, existe uma reação devido a essa fragilidade. As pessoas que têm privilégios não conseguem abrir mão num primeiro momento ou reconhecer essas iniciativas como importantes para toda a sociedade avançar. Essas iniciativas não são importantes só para as pessoas negras vencerem.

Acha que esse tipo de retaliação pode fazer com que empresas se afastem da discussão?

Sempre é uma possibilidade, mas temos vários casos recentes que mostram que o movimento contrário [ao dos críticos] é muito maior. Algumas empresas, por exemplo, fizeram campanha de dia dos pais trazendo a questão LGBTQIA+ e as ações dispararam. Nós temos evidências de como esse movimento é muito mais potente entre as pessoas que se engajam do que entre as pessoas que tentam deixar a discussão nebulosa.


RAIO-X

Carlos Domingues, 34 anos

Líder da área de diversidade, equidade e inclusão da PepsiCo e diretor-executivo do Mover, é profissional de recursos humanos há mais de 15 anos. Possui graduação em Ciências Contábeis pela Universidade São Judas e MBA em Economia e RH pela FGV (Fundação Getulio Vargas).

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