Descrição de chapéu Entrevista da 2ª desmatamento

Made in Brazil hoje exige cuidado, diz CEO da Michelin

Em entrevista à Folha, Feliciano Almeida diz que a questão ambiental pode começar a pesar sobre as exportações

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São Paulo

"Qualquer produto brasileiro pode vir a ser barrado se os países quiserem nos taxar por alguma questão ecológica."

A afirmação é feita por Feliciano Almeida, CEO da Michelin na América do Sul. Segundo ele, o risco para as exportações do Brasil é evidente e existe um receio, à medida que algumas nações começam a estudar formas de tributar o carbono e proibir a entrada de mercadorias ligadas ao desmatamento.

A borracha, inclusive, é um dos produtos que podem constar na lista de embargo que a União Europeia pretende implementar. No entanto, o executivo não acredita que isso será um problema para os negócios da empresa.

"Eu estou mais preocupado com o pneu. Fazemos parte do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável) e sempre falamos que temos de tomar cuidado com o Made in Brazil", afirma.

Homem de terno com os braços cruzados
Feliciano Almeida, CEO da Michelin na América do Sul - Divulgação

Apesar do contexto ambiental, ele não percebe uma má vontade com o Brasil e não crê que o país esteja com a imagem arranhada lá fora.

"Os europeus têm um bom senso de saber quais são as empresas que estão trabalhando nesse sentido, mas o país ajudaria também caso seguisse uma prática internacional que fosse melhor percebida."

Em entrevista à Folha, o executivo —que está há mais de 40 anos na Michelin e assumiu a presidência durante a pandemia— conta sobre a mudança de estratégia da companhia num cenário de disrupção das cadeias de suprimento e fala sobre o que falta para desenvolver um pneu 100% sustentável.

A Michelin diz estar com uma estratégia local-to-local. O que isso significa? Ficou evidente desde a chegada da Covid-19 que a globalização tem vários aspectos positivos, mas também trouxe riscos. Quando a Covid veio do Oriente para o Ocidente, as cadeias de suprimento foram se complicando e estão assim até hoje. Nós ainda não temos um transporte marítimo com capacidade restabelecida.

A tendência é produzir mais próximo de onde entregamos. Nesse ponto, nós estamos bem, porque a maioria dos nossos produtos fica na América do Sul. Temos algumas exportações para Europa e América do Norte, mas a grande maioria fica aqui.

A questão do local-to-local vai por esse lado, de segurança de suprimentos. Estamos num caminho de buscar essa proximidade, aumentar o número de fornecedores locais.

Também estamos em outro caminho importante. Hoje, 28% do nosso produto é feito de material renovável ou reciclado. Nossa meta é chegar a 40% em 2030 e, até 2050, fazer com que 100% do nosso pneu seja renovável ou que possa ser reciclado e reutilizado. Já começamos a trabalhar nesse sentido e por que não fazer isso no Brasil, que é um país onde já temos um bom fornecimento?

A estratégia local-to-local primeiramente nos ajudaria na redução de CO2 [relacionada aos transportes], mas também ajudaria a desenvolver localmente os materiais que nos levarão a essa meta de 2050.

Existe hoje algum pneu que seja 100% sustentável? Em marcha corrente não. É possível fazer com que o pneu chegue net-zero [com emissões líquidas zero] no ponto de venda, mas em materiais recicláveis ainda precisamos de alguns bons desenvolvimentos tecnológicos.

A ideia principal é, na medida do possível, trocar tudo que é fóssil. Na nossa produção, por exemplo, entra muito butadieno [produto químico para fazer borracha sintética]. Na Europa, já usam óleos que vêm de beterraba e de outros produtos.

Pode até ser que alguma startup tenha criado um pneu 100% sustentável, mas, no nosso caso, não temos uma tecnologia que faça.

Você diria que hoje um pneu é quantos por cento sustentável? No nosso caso é mais ou menos 28%. Basicamente esse é o peso da borracha natural no pneu. Quanto maior o pneu maior o uso de borracha natural. Quanto menor, mais borracha sintética. Na média, 28% é feito com material sustentável.

É um número bom, mas temos que multiplicar por quatro para chegar aos 100% até 2050. Parece muito tempo, mas os desenvolvimentos tecnológicos têm que chegar também.

O senhor mencionou que as cadeias de suprimentos ainda estão complicadas. Como a Michelin está sendo afetada? O último grande impacto foi nos portos americanos. Tivemos condicionamento em portos importantes. O lockdown da China chegou num momento muito difícil, eles pararam por muito tempo. Mas tem outro problema que são os contêineres, às vezes eles estão num lugar onde o navio não está.

Outro ponto é que as frotas de navios no mundo estão ocupadas em 98,5%. Os primeiros novos navios devem chegar em 2023. Eles já têm exigências de pegada de carbono e tomaram um bom tempo para serem feitos.

Antigamente, vivíamos num mundo que tinha crises [isoladas]. Agora, as crises vão se acumulando. Não acabou a pandemia, veio a da Ucrânia, depois a da China e agora a da varíola dos macacos.

Como é hoje o ciclo da borracha natural para produção de pneus da Michelin, ela ainda é o principal insumo? A borracha natural, em peso, chega aos 28%. Basicamente, um pneu é feito de borracha natural, borracha sintética, cabo de aço e produtos químicos.

Metade da borracha nós compramos localmente e os outros 50% nós importamos. Essa compra local, na maioria dos casos, é feita com pequenos produtores ou pequenas empresas. Levamos o produto até as nossas fábricas na Bahia e no Espírito Santo, processamos, e trazemos para as fábricas [de pneus]. Esse é o processo que temos hoje no Brasil.

De quais países vem essa borracha importada? Basicamente da Malásia e do leste asiático.

A Michelin consegue rastrear ou garantir que a borracha comprada não tem relação com desmatamento ou trabalho escravo? Temos o RubberWay, que faz uma auditoria para verificar se nossos fornecedores não estão com práticas sociais ou humanas incompatíveis. Nós não conseguimos controlar todas as produções, então usamos o RubberWay [aplicativo que cadastra fornecedores e gera dados a partir de visitas presenciais com entrevistas].

Sempre tentamos assegurar que um fornecedor não dependa muito da Michelin. Se depender, nós temos uma responsabilidade social, ou seja, não posso dizer que amanhã eu não compro mais dele. Mas também asseguramos as práticas que ele utiliza.

Esse trabalho atinge 100% dos fornecedores? Que eu saiba, atingimos 100%. [Após a entrevista, a Michelin afirmou que tem conhecimento sobre a origem de todo material que chega às fábricas, mas que a avaliação de risco socioambiental atinge 64% dos fornecedores. A meta é cobrir 100% das grandes plantações até 2025 e todos os pequenos produtores até 2030].

A Michelin apresentou uma tecnologia de produção de pneus que utiliza impressão 3D para aproveitar materiais orgânicos, recicláveis e biodegradáveis. Parece algo difícil de ser colocado em prática. Até que ponto isso é uma vitrine ou de fato uma solução para o futuro? Isso ainda está em pesquisa e desenvolvimento, na parte conceitual. O que nós estamos trabalhando atualmente é com pneu sem câmara de ar. Já estamos usando nos Estados Unidos. Esse sim vai chegar mais rapidamente ao mercado. Os outros podem levar de cinco a dez anos.

O Brasil durante muito tempo foi um recebedor de pneus descartados, principalmente da Europa. Isso continua acontecendo? Não, isso já foi normatizado. O que acontecia era: as pessoas traziam pneus e parte deles eram processados —o antigo remold. Mas faziam a triagem perto do porto mesmo e não davam destinação correta aos pneus que ficavam.

O governo proibiu isso. Hoje em dia, pode haver importação de pneus novos, mas não tem importação de carcaça. Isso foi um grande avanço. Era um problemão, porque recapavam o pneu de flanco a flanco, então parecia novo, mas você não sabia se ele realmente era seguro.

A borracha pode entrar numa lista da União Europeia de produtos barrados por vínculo com desmatamento. Isso afetaria a Michelin considerando a produção no Brasil? Eu estou mais preocupado com o pneu. Fazemos parte do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável) e sempre falamos que temos de tomar cuidado com o "Made in Brazil".

Porque a União Europeia faz uma taxação dizendo "vocês usam o que vocês querem, então vou proteger a indústria local que é mais ecologicamente correta".

Dentro da nossa possibilidade, através do CEBDS, nós temos indicado isso para o governo. Agora saiu um decreto [de mercado de carbono], que já é um grande passo. Mas não temos poder além de alertar. Já assinamos duas cartas para a presidência e para o Ministério do Meio Ambiente e é isso que estamos fazendo.

Esse risco é evidente. A borracha natural eu não creio [que será um problema], porque o Brasil ainda tem um déficit. Nós importamos mais do que exportamos. Mas qualquer produto brasileiro pode vir a ser barrado se os países quiserem nos taxar por alguma questão ecológica —caso nós não sigamos o que eles pensam que temos de seguir— ou [em função de] alguns acordos internacionais. É um receio.

Qual é a possibilidade e em quanto tempo eu não sei, mas não seria nenhuma surpresa se viesse acontecer. Temos que estar bem conscientes disso.

Esse cuidado que o senhor menciona com o "Made in Brazil" é por causa da conexão com o desmatamento? Não sei. Eu vi até que em alguns casos é. É uma questão de prática industrial também. A nossa fábrica do Rio de Janeiro, por exemplo, é uma das cinco maiores da Michelin e, desde o ano passado, toda energia elétrica que usamos é 100% renovável. Neste ano, vamos avançar para Manaus e São Paulo —e também para as nossas plantações.

Pode ser em função do desmatamento, mas também sobre a maneira que fazemos nossa pegada de carbono. Já começamos a ser corretos também nesse aspecto. Pode ser que um dia eles falem que vão taxar quem usar energia que não é renovável.

Outro ponto é a parte do pneu em si. Os pneus têm rótulos dizendo se eles são mais econômicos em termos de resistência ao rolamento —emitindo menos CO2, por conseguinte. Também seguimos os padrões mundiais de ter pneus que consumam menos.

As questões de regulamentação técnica que podem gerar uma taxação podem ser [por motivação] política, podem ser em relação à pegada de carbono, e hoje já são em função do desempenho energético dos produtos.... Então acho que existe uma miríade de razões.

No final das contas, fazer a coisa certa vai ajudar de qualquer maneira. Os europeus têm um bom senso de saber quais são as empresas que estão trabalhando nesse sentido, mas o país ajudaria também caso seguisse uma prática internacional que fosse melhor percebida, porque a nossa biodiversidade é enorme. Acho que é a maior do mundo.

O senhor comentou sobre as cartas enviadas ao Executivo. Uma delas foi assinada há dois anos com outros 35 CEOs e endereçada ao vice-presidente Mourão. Você acha que o Executivo ouviu o pedido para reforçar o controle do desmatamento? Como enxerga o que aconteceu nesse período? O que eu acho que melhorou muito foi a interlocução. O governo está escutando mais uma parte interessada que são as empresas. Isso eu posso medir, não tenho dados técnicos para medir o restante.

A interlocução está melhor e a única coisa que queremos é isso. Ser escutado no momento em que se discute pontos importantes como o mercado de carbono, porque nós estamos no mundo inteiro.

Vou fazer um comparativo esdrúxulo. Quando a Covid irrompeu na China e chegou no Brasil, nós já sabíamos o que tinha que fazer, porque já havíamos visto essa realidade lá. Então sempre temos uma boa capacidade de trazer boas práticas.

Mas a interlocução aumentou. Tivemos a possibilidade de trabalhar mais perto do governo nesses aspectos. Na verdade, não seria o nosso papel medir como a coisa está indo, porque esse é um campo muito mais político. No nosso caso o que queremos é interlocução.

Mas o desmatamento veio aumentando de 2020 para cá. Quando o senhor encontra com seus pares estrangeiros, nota algum arranhão na imagem do Brasil em função dessa questão ambiental? As questões que existem são as questões que eles veem do governo. Se você está na Europa, que fala mais desse assunto, é bem capaz que eles nos questionem sobre esse ponto. O pessoal da China já não questiona tanto. Então, dependendo do lugar, eles podem questionar ou não.

O importante é que estamos sempre compartilhando práticas, de forma a demonstrar o que estamos fazendo, para eles ficarem calmos e entenderem que é possível fazer coisas aqui no país também.

O que eu costumo dizer é que a borracha não muda. Os governos mudam, mas nós vamos continuar com a produção enquanto houver consumidor.

Eu não vejo uma má vontade com o Brasil. As pessoas sempre perguntam sobre o que os jornais falam, muito sobre o que os governos falam. Mas eu não creio que há arranhão na imagem.

Há algum esforço da Michelin em mostrar seus valores sustentáveis como forma de se dissociar de alguma imagem negativa do Brasil? Sinceramente não. Nós não tivemos que fazer nada, não tivemos que provar nada. Do lado do consumidor, nós não temos nenhuma barreira a um produto fabricado no Brasil. Nesse momento, não tem esse aspecto, mas o nosso trabalho é ter um pouco de antecedência ao futuro.


RAIO-X

Feliciano Almeida, 61

Formado em Engenharia Mecânica, trabalha na Michelin desde 1982 e atualmente é CEO da companhia na América do Sul. Antes de assumir o posto, em dezembro de 2020, Almeida foi CEO e presidente da empresa América Central e já comandou as áreas comercial, marketing e direção geral em regiões como Europa, América do Norte, América do Sul, América Central e Caribe.


RAIO-X DA MICHELIN

Operações na América Latina: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela
Funcionários na região: 8.500
Presença no Brasil: Sete unidades industriais espalhadas por Campo Grande (RJ), Itaitaia (RJ), Manaus (AM), Guarulhos (SP), Contagem (MG), Alvorada (RS) e São Paulo (SP), além de usinas de beneficiamento na Bahia e no Espírito Santo
Faturamento em 2021: 23,7 bilhões de euros (R$ 126,3 bilhões)
Produção total de pneus em 2021: 173 milhões

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