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O que é 'The Merge Ethereum', a fusão aguardada pelo mundo cripto

Projeto mais ambicioso do segmento deve se concretizar nesta semana; entenda

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Scott Chipolina
Londres | Financial Times

Na Conferência Futurista Blockchain em Toronto no início de agosto, o cofundador da Ethereum, Vitalik Buterin, apareceu diante de uma plateia empolgada para dar grandes notícias.

"A Fusão ['the Merge', em inglês] está chegando", disse ele ao público.

Se há uma coisa em que a comunidade de criptomoedas tem de sobra são promessas. Na história relativamente curta dos ativos digitais –começando com o bitcoin em 2009–, os profetas desfiaram uma lista de inovações que, segundo eles, poderiam resolver a inflação, revolucionar os negócios ou fornecer uma tábua de salvação financeira para pessoas que vivem sob regimes autoritários em todo o mundo.

Representação de Ethereum - Dado Ruvic - 29.nov.2021/Reuters

Em resposta, os críticos da indústria amplamente não regulamentada destacaram suas ligações com atividades criminosas e a enorme pegada de carbono, sem mencionar a ruína financeira que trouxe para muitas pessoas vulneráveis –as mesmas que os representantes da indústria em geral dizem que querem ajudar.

Os fiéis agora têm a oportunidade de provar que seus críticos estão errados. No horizonte está sem dúvida o projeto mais ambicioso da criptomoeda até agora, apelidado de "the Merge", ou "a Fusão". O termo descreve o momento em que a blockchain Ethereum se fundirá com um sistema chamado Beacon Chain. Ethereum é a plataforma mais popular para partes do mundo Web3 –ou "nova internet"– que tentaram entrar na corrente dominante, como NFTs e finanças descentralizadas.

Quando a Fusão acontecer, provavelmente nesta semana, o palco estará pronto para inovações destinadas a enfrentar alguns dos ataques mais duros à indústria. São apostas altas em um projeto do qual a maioria das pessoas fora do mundo das criptomoedas nunca ouviu falar –e muitas que ouviram entendem apenas vagamente. Se a Fusão ocorrer sem problemas, o Ethereum passará de um sistema de "prova de trabalho" para um conhecido como "prova de participação".

Sistemas de prova de trabalho, como as blockchains bitcoin e Ethereum, são mantidos seguros por computadores poderosos. Esses "nós" competem entre si 24 horas por dia, sete dias por semana, para resolver cálculos matemáticos complexos e validar cada novo bloco de transações adicionado à cadeia. O sistema protege contra os nós individuais que podem corromper a blockchain, mas também exige uma imensa quantidade de energia para ser executado. Isso se traduz em uma pegada de carbono grande demais para ambientalistas e cripto-céticos.

Por outro lado, num sistema de prova de participação como o que o Ethereum está adotando, a blockchain não precisa de computadores poderosos para sua segurança. Em vez disso, indivíduos ou empresas atuam como validadores, apostando seus próprios tokens ether (a moeda nativa da blockchain Ethereum) como garantia contra mau comportamento. Eles são incentivados a fazê-lo por meio de recompensas, incluindo a chance de ganhar novos ethers.

Alguns veem a Fusão como um momento histórico que levará as criptomoedas ao mainstream, reduzindo drasticamente os níveis de consumo de energia do setor –o nível anual da blockchain Ethereum é tão grande quanto o da Finlândia, segundo estimativas. "Este é um passo bastante crítico para a infraestrutura realmente escalar, para que o Ethereum se torne o que pode se tornar –um mercado de capital global sem permissão 24 horas por dia, sete dias por semana", diz Avichal Garg, sócio da empresa de capital de risco em estágio inicial Electric Capital.

Noam Hurwitz, engenheiro de software da plataforma de desenvolvimento Web3 Alchemy, descreve isso como "o maior marco até hoje de prova que [os desenvolvedores] podem executar em seu roteiro".

Mas para outros a mudança representa uma traição às características fundamentais da blockchain –ser uma rede aberta, transparente e descentralizada, autopoliciada por projeto e não controlada por algum grupo de indivíduos. A Fusão não revolucionará todo o mundo Web3 e não resolverá diretamente muitos dos maiores problemas enfrentados pela blockchain Ethereum, como altas taxas de transação e baixas velocidades de transação.

Ainda assim, após anos de conversa, uma Fusão bem-sucedida pelo menos define o cenário para inovações futuras, principalmente ao permitir que a blockchain Ethereum escale e lide com cargas de trabalho mais pesadas. Esta é uma boa notícia para os aplicativos que constroem seus negócios com base na blockchain, como o mercado de NFT OpenSea, ou exchanges de criptomoedas descentralizadas como Uniswap. Charles Storry, chefe de crescimento da plataforma de índice de criptomoedas Phuture, que trabalha nos nichos de finanças descentralizadas e tecnologia Web3, está muito otimista.

Isso "é enorme para o Ethereum e a comunidade cripto em geral, porque desbloqueia novos aplicativos que não seriam possíveis no sistema existente, aumenta a escalabilidade e melhora radicalmente a eficiência energética do Ethereum", diz ele. "Estamos apenas começando."

Alto consumo

Apesar do hype, se "the Merge" realmente anuncia a integração de projetos de criptomoedas à corrente dominante é uma questão de grande dúvida. A turbulência deste ano nesses mercados prejudicou o clima: uma queda nos preços das moedas eliminou cerca de US$ 2 trilhões do valor total das criptomoedas, e empreendimentos baseados em blockchain foram apanhados em seu rastro.

Algumas das maiores empresas do setor declararam falência neste ano, incluindo o fundo de hedge Three Arrows Capital e a plataforma de empréstimos Celsius. As avaliações em queda no mundo da tecnologia também ameaçaram se aprofundar nos setores de criptomoedas e fintechs.

Ethereum não é a única blockchain no jogo. Outras –como a do bitcoin– ainda usarão sistemas de prova de trabalho após a Fusão. Segundo estimativas da Universidade de Cambridge, a blockchain do bitcoin consome tanta energia que, se fosse um país, estaria entre os 35 de maior consumo no mundo, superando Bélgica e Finlândia.

Então, por que a Fusão é importante se outras blockchains ainda estão consumindo energia e prejudicando o meio ambiente? Alex de Vries, fundador do site Digiconomist, afirma que a Fusão pode reduzir aproximadamente 99% do consumo atual de energia do Ethereum.

Mesmo que o registro climático sujo do bitcoin continue, De Vries argumenta que qualquer avanço no sentido de tornar a indústria mais verde é melhor que nenhum: "Você não pode dizer que limpamos a criptomoeda quando o maior poluidor ainda está por aí... mas eu diria que este é, no mínimo, um grande passo à frente... o mundo exterior também precisa ver que isso é possível."

Muitos projetos de "segunda camada" construídos na blockchain Ethereum (como NFTs e plataformas financeiras descentralizadas) também serão afetados. "Isso torna o Ethereum mais verde, o que é importante porque tem sido um obstáculo para a adoção", diz Alkesh Shah, estrategista de criptomoedas e ativos digitais do Bank of America. "Muitas pessoas [que de outra forma] usariam esses ativos digitais não o fazem por causa do uso de energia e dos aspectos negativos para o meio ambiente."

"Isso reduzirá drasticamente a pegada de carbono de toda a indústria", diz Ilan Solot, sócio da empresa de capital de risco Tagus Capital.

Se a Fusão vacinar com sucesso o Ethereum contra as críticas dos ambientalistas, a pressão aumentará sobre seu principal rival, o bitcoin. Se uma das duas blockchains mais proeminentes pode descartar sua má reputação, por que não a outra?

O desenvolvedor do núcleo Ethereum, Preston Van Loon, que cofundou a Prysmatic Labs, equipe de engenheiros de software dedicados à construção da blockchain Ethereum, diz que a Fusão já está atrasada. "A prova de participação está chegando desde 2016... é quase um meme neste momento", diz ele. "Sinto que [o custo da energia] é realmente uma barreira à escala global, as pessoas não vão usá-lo se souberem que tem custos de energia tão altos."

Troca de motores em pleno voo

O problema da pegada de carbono tem sido um obstáculo constante aos esforços para levar a tecnologia blockchain aos usuários comuns, diz Ryan Wyatt, ex-chefe de jogos no YouTube que agora administra a empresa de jogos blockchain Polygon Studios. A Fusão "realmente acaba com isso em sua totalidade", diz ele. "Você pode então se concentrar em quais são os outros pontos de atrito para integrar o próximo bilhão de usuários à Web3."

Mas outros na indústria dizem que os problemas do Ethereum com transações lentas e altas taxas continuarão a desqualificar a blockchain para promover qualquer tipo de revolução na Web3. "Não entendo essa insistência em usar algo [Ethereum] que, em sua essência, não funciona muito bem", diz Lars Seier Christensen, cofundador do Saxo Bank, que hoje administra uma blockchain de prova de participação chamada Concordium.

Além disso, não há garantia de que a Merge funcionará do ponto de vista técnico. O processo já foi iniciado e acontecerá assim que uma meta predeterminada na blockchain for alcançada. A Fusão será gradual, mais como o nascer do sol do que uma luz se acendendo.

"É quase como trocar os motores de um avião em pleno voo... uma façanha de engenharia", diz Edward Machin, advogado sênior do escritório de dados, privacidade e segurança cibernética Ropes & Gray.

Mesmo que o grande momento aconteça sem problemas, há muitos riscos à espreita. O primeiro é teórico, apelidado de "ataque de 51%". Após a Fusão, a blockchain Ethereum será protegida por um grupo de indivíduos em virtude dos tokens ether que eles investiram. Isso significa, na teoria, que qualquer grupo ou indivíduo que ganhe o controle de 51% ou mais dos ethers apostados na blockchain efetivamente controlaria o sistema.

É um cenário improvável –até devido à probabilidade de que seria proibitivamente caro possuir mais da metade do ether apostado na blockchain. Mas também porque um invasor perderia suas participações se tentasse interferir na cadeia. "Eu acho que blockchains menores podem ter um risco maior disso", diz Shah.

Ainda assim, o perigo existe, e os céticos de criptomoedas testemunharam hacks e colapsos suficientes para não descartá-lo. "É um teste de alto risco... Os hackers não vão aparecer até que esteja vivo", diz o crítico de criptomoedas e investidor anjo Liron Shapira. Outro crítico, o engenheiro de software Stephen Diehl, diz que são perigos como esses que fazem as pessoas que pretendem investir em criptomoedas pensarem duas vezes, porque "existe esse risco subjacente na plataforma em que, ao contrário de commodities físicas, os ativos em criptomoedas podem simplesmente deixar de existir devido a eventos técnicos de surpresa".

Um problema mais imediato é o risco de cauda de uma série de mecanismos de mercado que ainda precisam ser testados na prática. "Os seres humanos são muito ruins em precificar o risco de cauda. Acho que a maioria das pessoas provavelmente não está pensando nisso, e há muitos riscos aqui", diz Garg, da Electric Capital.

Angústia existencial

A preocupação mais urgente para muitos apoiadores do Ethereum é a questão existencial que a prova de participação apresenta para a "descentralização" –um princípio sagrado entre os defensores das blockchains.

De acordo com o DeFi Llama, um site de análise popular, a blockchain Ethereum detém mais de 50% do valor total do setor financeiro descentralizado, que defende transações diretas ponto a ponto e pretende remover qualquer necessidade de intermediários e terceiros, como bancos ou corretoras. Como outras blockchains, o Ethereum deve ser resistente à censura. Seu design deve resistir a indivíduos ou entidades poderosas que buscam exercer controle sobre outros participantes.

Mas em seu novo disfarce, protegido por um conjunto de indivíduos ou empresas, o Ethereum perde essa autonomia. "Você tem um farol brilhante de descentralização, mas em um novo modelo ele será mais centralizado do que as pessoas pensam", diz Machin.

Esse problema ficou mais claro desde que o Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (Ofac na sigla em inglês) do Tesouro dos Estados Unidos impôs no mês passado sanções contra o Tornado Cash, plataforma baseada em Ethereum que o governo acusou de facilitar bilhões em criptomoedas lavadas. O mais decidido exército libertário da criptomoeda disse que a mão pesada do governo se mostraria ineficaz contra os tipos de "contratos inteligentes" –software de computador projetado para automatizar transações– que são executados em plataformas descentralizadas. No entanto, as sanções se mostraram eficazes, afinal. Nas semanas desde que o Tornado Cash foi visado, as transações na plataforma caíram.

Essa preocupação deve cruzar as mentes dos futuros guardiões do Ethereum, incluindo as exchanges Binance e Coinbase, e a plataforma de staking Lido Finance. De acordo com dados da Nansen, essas empresas já são alguns dos maiores jogadores de staking do Ethereum e, portanto, serão confiáveis para proteger a rede após a Fusão. No mês passado, o executivo-chefe da Coinbase, Brian Armstrong, disse que sua exchange provavelmente deixaria o negócio de staking antes de censurar a rede.

Como guardiões da rede Ethereum, essas entidades terão que decidir se validam e processam blocos de transações que possam conter transações provenientes de entidades sob sanções como o Tornado Cash. Isso dificilmente soa como a utopia resistente à censura imaginada pelos idealistas –embora os críticos do bitcoin apontem que a concentração de mineradores (baseados predominantemente em certos países como EUA e Rússia) nesse blockchain também equivale a um sistema centralizado.

Se a Fusão inaugurar uma nova era de centralização, esses idealistas poderão ter que fazer as malas e ir embora. "Se as pessoas estão preocupadas... Ok, ótimo, vá para outro lugar", diz Jeff Dorman, diretor de investimentos da empresa de gestão de ativos Arca.

Há outra razão para otimismo: desde julho, o preço do ether –assim como de outras criptomoedas populares– se recuperou parcialmente, dando aos investidores certo alívio após alguns meses turbulentos. Quando a BlackRock, maior empresa de gestão de ativos do mundo, lançou um fundo privado de bitcoin no mês passado, sinalizou que a indústria sitiada já pode estar se reposicionando para o próximo ciclo de alta do mercado.

Se o preço dos ativos digitais –e, mais especificamente, do ether– reviver, é provável que a blockchain Ethereum pós-Merge seja um dos maiores beneficiários de outra corrida de criptomoedas. "Gosto de chamá-lo de ETF do homem preguiçoso", diz Dorman. "Ao possuir ether, agora você tem exposição a stablecoins, tem exposição a NFTs, tem exposição a finanças descentralizadas."

Mesmo assim, Dorman não está convencido de que um interesse mais amplo em finanças descentralizadas se seguirá necessariamente à Fusão. Essa, ele acredita, é "uma outra conversa". "As [pessoas] querem pegar empréstimos através [do DeFi] em vez de entrar num banco? As pessoas querem trocar colecionáveis digitais em vez de cartões ou selos de beisebol tradicionais? Todos esses fatores, crescimento de usuários, crescimento de transações, crescimento de volume, são independentes da Merge", diz ele.

Em última análise, as respostas para essas perguntas ficarão claras quando a Fusão acontecer. Muitas fusões a seco ocorreram em "testnets" –essencialmente blockchains não-vivas–, a mais recente no mês passado. Mas não há nada como a coisa real.

(Colaboraram Richard Waters, em San Francisco, e Joshua Oliver, em Londres)

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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