Descrição de chapéu Financial Times

Os quatro pilares do plano da China para a independência econômica

Xi Jinping quer caminhar para autossuficiência, especialmente em tecnologia

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James Kynge Sun Yu Leo Lewis
Londres, Pequim e Tóquio | Financial Times

O nanobisturi da empresa Tianjin Saixiang pode ser uma forma de cirurgia de precisão, mas é indicativo de uma ampla tendência que está reformulando a relação econômica da China com o resto do mundo.

Feito por uma empresa chinesa pouco conhecida, foi projetado para combater o câncer de próstata sem cirurgia invasiva. A Tianjin Saixiang recebeu o título oficial de "pequeno gigante" em 2020, o que significa que se qualifica para tratamento preferencial em troca de ajudar a China a subir na escada tecnológica.

De acordo com um executivo da companhia, que não quis ser identificado, essa versão chinesa de um tratamento de ponta faz parte de um esforço para reduzir a necessidade de tecnologias médicas importadas. Segundo ele, o governo exige que os hospitais locais, sempre que possível, substituam equipamentos médicos estrangeiros por nacionais, o que ele classifica como uma benção.

O presidente chinês Xi Jinping - Selim Chtayti/Pool via Reuters

Este mês, o presidente Xi Jinping fez um discurso sobre a necessidade urgente de avanços na tecnologia chinesa para superar o Ocidente e reforçar a segurança nacional. A experiência da Tianjin Saixiang é um pequeno exemplo da escala da ambição do líder chinês.

Sob Xi –que quase certamente conseguirá mais um mandato em breve–, a China está tentando se tornar uma superpotência tecnológica autossuficiente e liderada pelo Estado, que não dependerá mais tanto do Ocidente.

O objetivo subjacente, dizem os analistas, é construir uma "fortaleza China" –reformular a segunda maior economia do mundo para que possa funcionar com energias internas e, se necessário, resistir a um conflito militar. Enquanto muitos nos Estados Unidos querem "dissociar" sua economia da China, Pequim quer se tornar menos dependente do Ocidente, especialmente de sua tecnologia.

A estratégia tem quatro troncos principais e, se for bem-sucedida, levará vários anos para ser realizada, dizem analistas.

1.Aposta firme em tecnologia

Muitas mudanças que estão sendo sinalizadas enquanto a China se prepara para sediar, no dia 16 de outubro, o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, foram sugeridas há algum tempo ou ja estão em andamento. O congresso deve reafirmar e acelerar o ritmo de vários desses desenvolvimentos.

As observações de Xi ao presidir este mês uma reunião da Comissão Central para o Aprofundamento Abrangente da Reforma, um dos órgãos do partido que ele usa para governar, definiram uma clara visão para a tecnologia.

O desenvolvimento de "tecnologias centrais" não é algo que possa ser deixado para o livre mercado, mas deve ser liderado pelo governo chinês. "É necessário fortalecer a liderança centralizada e unificada do [...] Comitê Central e estabelecer um sistema de comando e tomada de decisão autoritário [para tecnologia]", disse Xi, segundo a transmissão da TV estatal.

Em um sinal da importância que Xi atribui a essa agenda, ele parece pronto para rechear o novo Comitê Central, que inclui cerca de 200 das mais altas autoridades do país, com tecnocratas, em vez de burocratas de carreira, segundo análise de Damien Ma, diretor-gerente da Macro Polo, grupo de pensadores nos EUA.

Essas autoridades experientes em tecnologia serão responsáveis por supervisionar o que representa uma grande aposta: mais de US$ 150 bilhões (R$ 793 bilhões) foram prometidos para estimular o progresso em semicondutores.

Em comparação, o plano dos Estados Unidos de distribuir US$ 50 bilhões para apoiar sua própria indústria de semicondutores parece muito mais modesto.

Os semicondutores são geralmente considerados o calcanhar de Aquiles da indústria chinesa. Em 2020, o país importou US$ 378 bilhões (R$ 2 trilhões) em semicondutores, uma vulnerabilidade na cadeia de suprimentos perpetuada pelo fato de 95% da capacidade instalada chinesa ser dedicada à fabricação de tecnologia de ponta.

No entanto, houve alguns avanços notáveis. Soube-se recentemente que a SMIC, uma das principais fabricantes de chips da China, produziu com sucesso um chip de 7 nanômetros, colocando-o apenas uma ou duas "gerações" atrás de líderes do setor, como a TSMC de Taiwan e a Samsung da Coreia do Sul.

Vários analistas, entretanto, dizem que, apesar desse progresso e dos enormes fundos que a China dedicou ao desenvolvimento de sua indústria de chips, as metas de autossuficiência em semicondutores são ilusórias. A indústria é tão complexa e interconectada que nenhum país pode ficar sozinho.

Uma segunda vertente dos esforços chineses para alcançar a autossuficiência tecnológica vem em duas áreas inter-relacionadas –a seleção pelo Estado de potenciais campeões, como a Tianjin Saixiang, e o apoio do governo a um forte impulso em capital de risco.

Mas também nisso os analistas estão pessimistas quanto à eficácia em longo prazo das tentativas de Pequim de "escolher vencedores". Um assessor do governo chinês, que não quis ser identificado, diz que vários aspectos do plano dos "pequenos gigantes" são falhos.

O assessor diz que a melhor maneira de identificar campeões é seguir a regra da sobrevivência do mais apto. Para ele, qualquer empresa de alta tecnologia que cresça com a concorrência deve ser vista como uma candidata a "pequena gigante", o que não pode ser predeterminado pelo governo.

2. Foco em energias renováveis

Na intersecção da geopolítica com a tecnologia encontra-se outra grande vulnerabilidade para a China –a oferta de energia.

Com a atual taxa de autossuficiência energética do país em cerca de 80%, isso deixa quase 20% da oferta –sobretudo em forma de petróleo e gás importados– relativamente vulnerável a choques externos. A China está particularmente preocupada com as rotas de navegação através de "pontos de estrangulamento", como o estreito de Malaca, onde o poderio naval dos EUA permanece supremo.

Michal Meidan, diretor do Instituto para Estudos de Energia de Oxford, diz que Pequim está adotando um foco maior em energias renováveis, como solar e eólica, como parte da solução.

Analistas dizem que a China está a caminho de alcançar um plano nacional para obter cerca de 33% de sua energia de fontes renováveis até 2025. Mas levará muitos anos para que sua vulnerabilidade na importação de petróleo e gás seja atenuada, acrescentaram.

3. Frente de batalha de alimentos-chave

Uma dependência mais séria do mundo exterior está na produção de alimentos .

A segurança alimentar da China despencou nas últimas três décadas, à medida que sua população cresceu e o uso da terra agrícola mudou de grãos para culturas mais lucrativas. Em 2021, apenas 33% da demanda total do país pelos três principais óleos alimentares –de soja, de amendoim e de colza– foram atendidos pela produção doméstica, abaixo dos 100% no início da década de 1990.

Embora sucessivos líderes chineses tenham enfatizado a importância vital da segurança alimentar há anos, analistas acreditam que a linguagem e o tom endureceram sob Xi. A segurança alimentar e a segurança nacional foram claramente relacionadas por líderes importantes, e o objetivo da autossuficiência alimentar básica foi cada vez mais descrito em termos semelhantes a outras ambições da "fortaleza China".

Robô exibido no evento World Robot Conferece, em Pequim - Wang Zhao/AFP

As principais políticas sobre a produção de grãos se concentram em elevar a produtividade, proteger as terras aráveis, o uso mais eficiente da água e outros grandes projetos de economia de água. A China pretende manter sua autossuficiência nos principais grãos, que atingiu mais de 95% em 2019.

Mas a política mais importante, segundo a analista Trina Chen, do Goldman Sachs, é o plano de revitalização da indústria de sementes, que Xi promoveu pela primeira vez em 2021 e que exige maiores esforços para alcançar a autossuficiência.

O ponto de inflexão será a primeira geração de sementes geneticamente modificadas no país –uma mudança que tem enfrentado forte resistência, mas que os analistas agora consideram inevitável.

4. O dólar como arma

Os cálculos da "fortaleza China" também podem ser vistos na atitude chinesa em relação ao domínio do dólar. Para Pequim, uma das características mais alarmantes das sanções ocidentais à Rússia foi a exclusão de algumas de suas instituições financeiras do Swift, sistema global de mensagens que é central para as compensações internacionais.

A vulnerabilidade a esse tipo de sanção surge porque cerca de três quartos do comércio chinês são faturados em dólares –o que significa que dependem do acesso ao Swift.

A solução de Pequim só pode ser em longo prazo. Seus esforços para "internacionalizar" o yuan tiveram sucesso limitado até agora, e os planos de promover uma moeda digital –que dispensa o uso de plataformas como a Swift– têm sido lentos.

"No curto prazo, Pequim se esforçou para não cair em conflito com as sanções ocidentais impostas à Rússia pela invasão da Ucrânia, mas também seu foco na dissociação do dólar se acentuou", diz Diana Choyleva, economista-chefe da Enodo Economics, em Londres.

Para analistas, China terá que se manter conectada ao mundo

A ênfase chinesa na autossuficiência vem de longa data. Aproximadamente de 2015 em diante, o governo de Xi deu crescente importância à autossuficiência nas cadeias de suprimentos industriais. Isso se intensificou com o lançamento no ano passado do 14º "Plano Quinquenal" da China e a introdução de uma política chamada "circulação dupla" –que enfatizou a necessidade de a China confiar no dinamismo interno.

Desde então, uma onda crescente de sanções dos EUA a empresas chinesas, divisões geopolíticas decorrentes do apoio de Pequim à Rússia na Guerra da Ucrânia e um aumento das tensões sobre Taiwan reforçaram as tendências que sustentam a "fortaleza China".

No entanto, alguns analistas acreditam que, apesar de todos os slogans políticos, ainda existem limitações importantes.

Yu Jie, pesquisador sênior da Chatham House, grupo de pensadores do Reino Unido, argumenta que a China não pode se isolar completamente do mundo devido à sua estrutura voltada para a exportação. Em consequência, é provável que Pequim adote uma abordagem híbrida, dependendo do setor.

"Setores com importância estratégica e necessidades cotidianas para a população serão tratados como questões de segurança nacional", diz Yu, "enquanto setores que exigem capital e mão de obra estrangeiros permanecerão abertos e interconectados ao mundo."

O impulso de autossuficiência da China vem crescendo há vários anos, mas foi acelerado desde a invasão da Ucrânia pela Rússia e as subsequentes sanções ocidentais a Moscou.

Chen Zhiwu, professor de finanças da Universidade de Hong Kong, diz que os líderes chineses entendem que poderá ser "difícil evitar" conflitos militares se Pequim quiser unificar Taiwan com o continente: "As sanções econômicas abrangentes contra a Rússia após a invasão da Ucrânia apenas aumentaram a urgência de autossuficiência em tecnologia, finanças, alimentos e energia".

Steve Tsang, professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, adverte que a construção da "fortaleza China" não significa isolamento. Como maior potência comercial do globo e um dos maiores receptores de investimento estrangeiro direto, seria a automutilação econômica.

"Em vez disso, eles estão principalmente se transformando em uma potência inovadora, com tecnologias que outros desejarão compartilhar, tornando-se dependentes da China."


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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