Inflação do fim de ano: pobres sofrem e ricos gastam nos EUA

Mesmo que as autoridades econômicas dos EUA consigam uma desaceleração suave da economia, ela não será suave para todos

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Jeanna Smialek
Boston | The New York Times

Novembro vem apresentando movimento maior do que o esperado no hotel Langham, em Boston. Viajantes endinheirados reservam quartos e suítes confortáveis e discutem negócios nas salas de reunião douradas do estabelecimento. As reservas para o brunch de Ação de Graças no restaurante do hotel, ao preço de US$ 135 (R$ 722,29) por adulto, se esgotaram semanas antes do feriado.

Do outro lado da cidade, em Dorchester, vem crescendo a demanda por um tipo diferente de serviço de alimentação. A organização assistencial Catholic Charities está recebendo tantas famílias em sua central de mantimentos que Beth Chambers, vice-presidente da Catholic Charities Boston para a área de necessidades básicas, teve que ordenar que a central fechasse mais cedo, em alguns dias, e pedir aos frequentadores que voltassem bem cedo na manhã seguinte. Na manhã do sábado que antecedeu o Dia de Ação de Graças, os usuários que estavam esperando pela distribuição gratuita de perus começaram a formar fila às 4h30 —mais de quatro horas antes de o estabelecimento abrir as portas.

Igreja no Brooklyn, em Nova York, distribui perus para o dia de Ação de Graças - Spencer Platt - 21.nov.2022/Getty Images via AFP

O contraste ilustra uma divisão que está se tornando cada vez mais gritante na economia distorcida dos Estados Unidos, depois de quase três anos de pandemia. Muitos consumidores endinheirados continuam a contar com economias polpudas e a estar em boa situação financeira, o que beneficia as marcas de luxo e gera otimismo no varejo de luxo e nas empresas de viagens quanto à temporada de festas. Ao mesmo tempo, os pobres dos Estados Unidos enfrentam baixa liquidez e lutam para se adaptar ao aumento dos preços e para lidar com a alta nos custos financeiros caso recorram a cartões de crédito ou empréstimos para manter as contas em dia.

O Federal Reserve (Fed, Banco Central dos EUA), banco central dos Estados Unidos, está elevando as taxas de juros para tornar os empréstimos mais caros e controlar a demanda, na esperança de que isso desaqueça a economia e permita que a instituição retome o controle sobre a inflação mais alta que o país encontrou nas últimas décadas. Os dirigentes do banco central estão tentando administrar o processo sem causar uma recessão que gere desemprego. Mas o período de ajuste já vem sendo doloroso para muitos americanos —prova de que mesmo que o banco central consiga promover uma "aterrissagem suave", ela não será confortável para todos.

"Muitas desses domicílios estão se encaminhando para uma fragilidade maior, o que era a norma antes da pandemia", disse Matthew Luzzetti, economista chefe do Deutsche Bank para o mercado dos Estados Unidos.

Muitos domicílios de classe trabalhadora se saíram bem em 2020 e 2021. Embora empregos tenham sido perdidos rapidamente no início da pandemia, as contratações se recuperaram de modo igualmente rápido; o crescimento dos salários vinha sendo forte e a assistência financeira do governo ajudou as famílias a acumular economias.

Com o aumento dos preços dos alimentos, milhões de americanos estão lutando para comprar mantimentos nesta temporada de festas - Spencer Platt - 16.nov.2022/Getty Images via AFP

Mas depois de 18 meses de rápida inflação de preços —parte da qual impulsionada pela demanda que as medidas de estímulo ajudaram a gerar—, as reservas financeiras das pessoas mais pobres estão se esgotando. As famílias americanas ainda detinham cerca de US$ 1,7 trilhão (R$ 9 trilhões) em poupança adicional —economias acumuladas durante a pandemia—, em meados deste ano, com base em estimativas do Fed, mas cerca de US$ 1,35 trilhão (R$ 7,2 trilhões) desse total era detido pelos 50% de americanos com salários mais altos e apenas US$ 350 bilhões (R$ 1,8 trilhão) pelos 50% com salários mais baixos.

Ao mesmo tempo, os preços subiram em 7,7% até outubro, em 2022, muito acima do ritmo de cerca de 2% que era normal antes da pandemia. À medida que as economias dos domicílios se esgotavam e necessidades como conserto de carros, alimentação e moradia se tornavam mais caras, muita gente em bairros de baixa renda começou a recorrer a cartões de crédito para manter suas contas em dia. Os saldos devedores desse grupo hoje superam os níveis de 2019, de acordo com uma pesquisa do Fed de Nova York. Há muita gente que não vem conseguindo equilibrar as contas.

"Com o custo dos alimentos e a alta explosiva no preço dos ovos, as pessoas precisam recorrer a nós com mais frequência", disse Chambers, da Catholic Charities, explicando que a alta de outros preços, entre os quais os alugueis, estão intensificando as dificuldades. A organização planejava distribuir mil perus e 600 vales para compra de perus em sua temporada de festas, acompanhados por creme de milho em lata, molho de cranberries e outros ingredientes usados nas receitas de Ação de Graças.

Tina Obadiaru, 42, estava as pessoas que formaram fila para receber um peru no sábado. Mãe de sete filhos, ela trabalha em tempo integral como cuidadora dos moradores de uma casa assistencial, mas seu salário não é suficiente para bancar as necessidades de sua família, especialmente depois que o aluguel de sua casa em Dorchester subiu de US$ 2.000 (R$ 10,7 mil) para US$ 2.500 (R$ 13,4 mil), no mês passado.

A carga que a inflação impõe aos pobres é uma das razões para que os funcionários do Fed estejam se esforçando para controlar rapidamente os aumentos de preços. Os dirigentes do banco central elevaram as taxas de juros de perto de zero no início deste ano para quase 4%, e sinalizaram que há mais aumentos por vir.

Mas o processo de redução da inflação também deve prejudicar as pessoas de baixa renda. As políticas do Fed agem, em parte, ao tornar mais caros os empréstimos que sustentam o consumo, o que faz com que a demanda caia e termina por forçar os vendedores a cobrar menos. Os aumentos dos juros também desaceleram o mercado de trabalho, reduzindo o crescimento dos salários e possivelmente até custando empregos.

Isso significa que o mercado sólido de trabalho que ajudou a amparar a classe trabalhadora nesse período desafiador —um mercado que impulsionou especialmente os salários de postos de trabalho menos bem pagos, o que inclui os setores de lazer, hospitalidade e transporte— pode perder a força em breve. Os dirigentes do Fed estão em busca de indícios de uma queda nos gastos e de uma desaceleração na alta dos salários, como sinal de que suas políticas estão funcionando.

"Embora taxas de juros mais altas, crescimento mais lento e condições menos vibrantes no mercado de trabalho devam reduzir a inflação, isso também trará alguma dor para os domicílios e empresas", disse Jerome Powell, o chairman do Fed, em uma conferência em agosto. "São esses os custos lamentáveis de uma redução da inflação".

Os dirigentes do banco central acreditam que uma dose moderada de dor agora é melhor do que aquilo que aconteceria caso permitissem que a inflação continue sem controle. Se pessoas e empresas começarem a antecipar aumentos rápidos de preços e a agir de acordo —pedindo grandes aumentos de salários, e subindo muito os preços com frequência exagerada—, a inflação poderia fincar raízes na economia. Isso tornaria necessária uma resposta de política monetária mais punitiva, que poderia resultar em desemprego ainda mais alto.

Mas os indícios acumulados em toda a economia apontam que a desaceleração que o Fed vem promovendo, por mais necessária que seja, terá efeitos diferentes sobre as diferentes faixas de renda.

Os gastos dos consumidores até agora vêm resistindo aos aumentos de juros do Fed. Os dados sobre as vendas do varejo mostravam queda considerável mais cedo no ano, mas voltaram a crescer recentemente. As despesas de consumo pessoal não estão se expandindo em ritmo acelerado, mas continuam a crescer.

No entanto, por sob esses números agregados, uma virada parece estar surgindo, e ela destaca a divisão cada vez mais forte entre os ricos e os pobres, em termos de conforto econômico. Os dados de cartões de crédito do Bank of America apontam que as famílias de renda alta e média substituíram as famílias de renda mais baixa como principais propulsoras no crescimento do consumo, nos últimos meses. Os consumidores mais pobres contribuíram com um quinto do crescimento dos gastos discricionários em outubro, em comparação com cerca de dois quintos um ano antes.

"Isso provavelmente se deve ao fato de que os grupos de baixa renda sofreram os maiores efeitos negativos do aumento de preços —e também registraram a maior redução em sua poupança bancária", escreveram economistas do Bank of America Institute em uma nota de pesquisa divulgadas em 10 de novembro.

Mesmo que os pobres estejam sentindo o aperto dos preços elevados e das taxas de juros mais altas e reduzam seus gastos, economistas observaram que a manutenção da saúde econômica entre os consumidores mais ricos poderia manter a força da demanda nos segmentos em que as pessoas mais ricas tendem a gastar seu dinheiro, incluindo serviços como viagens e hotéis.

Já as empresas que que atendem a número maior de consumidores de baixa renda estão relatando um forte recuo.

"Este ano, muitos consumidores vêm recorrendo a empréstimos ou gastando suas economias para manter seus orçamentos semanais", disse Brian Cornell, presidente-executivo da Target, em uma conversa com analistas sobre os resultados de sua empresa, em 16 de novembro. "Mas, para muitos consumidores, essas opções estão começando a se esgotar. Como resultado, nossos fregueses estão exibindo sensibilidade crescente aos preços, se concentram em e se interessam mais por promoções, e hesitam mais quanto a comprar pelo preço cheio".

Enquanto o mundo espera para ver se o Fed será capaz de desacelerar a economia americana o bastante para controlar a inflação, mas sem forçar o país a entrar em uma verdadeira recessão, as pessoas que frequentam a Catholic Charities em Boston servem como exemplo de o quanto os riscos são altos. Embora muitas delas tenham empregos, os meses de aumentos rápidos de preços as abalaram, e o futuro lhes parece incerto, agora.

"Antes da pandemia, nós fazíamos nossas contas em caixas", disse Chambers, referindo-se à quantidade de alimentos necessária para atender às necessidades locais. "Agora calculamos em ‘pallets’".

Tradução de Paulo Migliacci

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