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Movimento biohacker cresce em universidades públicas com aplicações em saúde

Cientistas brasileiros usam e criam produtos de biohacking que aplicam técnicas científicas para o bem-estar pessoal

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São Paulo

Professores de universidades públicas se transformaram em biohackers para lidar com problemas de saúde. De forma informal, eles intervêm no próprio bem-estar com técnicas científicas consolidadas ou ainda em desenvolvimento, que incluem tanto suplementos à base de plantas quanto dispositivos para monitorar estresse.

Mulher de jaleco branco manuseando um kit de química
A professora Fernanda Matias em seu laboratório na Universidade Federal Rural do Semi-Árido. - Eduardo Alves de Mendonça/ Arquivo pessoal

Angelo Amancio Duarte, 56, é uma dessas pessoas. Professor da pós-graduação em ciência da computação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia, Duarte encontrou no movimento biohacker uma solução para dores musculares e perda de memória.

"Foi uma época de muito sofrimento", disse o pesquisador. No período, sem encontrar respostas em outros tratamentos convencionais, Duarte se deparou com o conceito de "biohacks" —estratégias que controlam o ambiente interno e externo do corpo para melhorar o desempenho físico, mental e emocional.

"Não fiz nenhuma intervenção física", continuou Duarte, em referência à ideia de que biohacking só envolve aplicações como chips na pele.

"Comecei a mudar práticas de alimentação e de exercício, tomar suplementação para repor algum nutriente na minha dieta vegetariana", disse.

Na toada de melhoramento, o pesquisador também se interessou por dispositivos que monitoram ritmos cardíacos e cerebrais. Ele não consegue, porém, testar todas tecnologias novas, já que muitas, por serem feitas nos EUA e Europa, têm um preço muito alto.

O professor se informa das novidades do movimento em um grupo na internet, no qual a comunidade biohacker compartilha possíveis intervenções.

Segundo Duarte, os membros repassam artigos científicos, relatam experimentos feitos, além dos resultados positivos ou negativos para que outros possam replicar.

Antes de testar um novo produto, o professor afirmou sempre avaliar a segurança da tecnologia. "Hack é uma coisa muito pessoal", disse. "Você precisa assumir o risco".

Para o professor da UEFS, o risco existe não só pelo estágio inicial de muitas inovações, mas pelo charlatanismo que existe no movimento. Algumas das intervenções propostas, como para melhorar desempenho cognitivo, são baseadas em pesquisas com resultados frágeis.

"Por isso, sempre pesquiso antes de fazer qualquer hack", disse Duarte.

Na avaliação de Li Li Min, professor do departamento de neurologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o risco com técnicas que não funcionam ou cuja segurança é desconhecida existe pelo entusiasmo dos biohackers.

"Eles querem colocar ciência em prática, mas acabam atropelando o processo científico", afirmou o neurologista. Min afirmou que está desenvolvendo um estimulador elétrico de neuromodulação, com potencial para aplicação na medicina.

"Mas só vamos saber se o estimulador deve ser colocado em uso ou não quando a ciência nos possibilitar dizer", disse Min.

Discutir biohacking dentro da universidade pública, segundo o neurologista, diminuiria alguns riscos de se ter pseudociência no movimento. Por isso, Min defende a criação de laboratórios de biohacking nesses espaços públicos.

"A sociedade está demandando a aplicação rápida do conhecimento no dia a dia, anseio que deve ser respondido pela ótica da sistematização do conhecimento e da metodologia científica", afirmou Min.

Uma das biohackers que trabalha em uma universidade pública é Fernanda Matias, 43. Professora de biotecnologia na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), a cientista entrou no movimento para aliviar sintomas de uma doença autoimune, a esclerose sistêmica difusa, o que não conseguia por caminhos formais.

Mulher de jaleco branco coloca um líquido marrom em um recipiente de vidro
Fernanda Matias medindo partes do seu 'elixir do sono'. - Eduardo Alves de Mendonça/ Arquivo pessoal

Em outro momento, após adoecer por causa de Covid, Fernanda se viu com sequelas na cognição que atrapalhariam sua função como professora. Ela disse que passou a fazer microdosagem de Ayahuasca para aliviar esses sintomas depois de ler estudos sobre as características do biocomposto.

"Dez gotinhas por noite me ajudaram muito", disse. A filosofia biohacker também influenciou a linha de pesquisa de Fernanda, que passou a criar produtos para o mercado brasileiro.

Durante três anos, a cientista estudou plantas da Caatinga e da Amazônia, as quais ela prefere manter em sigilo, para criar um biohack que ajudasse pessoas a dormir. "Tenho a tendência a fazer pesquisas que cheguem ao mercado", explicou a pesquisadora.

O "elixir do sono" teria ajudado pessoas que antes precisavam de medicação para descansar durante a noite, segundo Fernanda. Na definição da pesquisadora, o produto não se enquadra na definição de medicamento. "É um biohack", disse.

"São plantas que já foram estudadas. O biohacking acelera esse processo de chegada e de apropriação da ciência pelas pessoas", afirmou a pesquisadora da Ufersa

Para Juliano Sanches, doutorando em política científica e tecnológica da Unicamp, pressões corporativas da indústria da saúde impulsionam a existência de grupos de biohacking fora dos ambientes clínicos estabelecidos.

Sanches, que mapeia o movimento biohacker no Brasil, vê na comunidade uma forma de ativismo. "Ele se baseia no princípio de aumentar a participação do paciente na tomada de decisões sobre o manejo das práticas e tecnologias", afirmou.

Com os biohacks, há tanto maior participação do paciente nas decisões sobre seu próprio corpo e no mercado de saúde, quanto mais abertura do conhecimento científico para a sociedade.

Esse compartilhamento é uma das grandes ideias do movimento. "Ele quebra o modelo passivo de alfabetização científica, no qual o cientista sabe e a sociedade só absorve o conhecimento de maneira linear, sem questionamento e participação".

O medo social contra o biohacking ou tentativas de proibi-lo acaba por potencializar ainda mais o interesse, segundo Sanches.

Marcelo Buzato, que coordena o grupo de pesquisa Linguagem, Tecnologias e Pós-humanismo, acredita que há um pânico moral em relação ao movimento. "O crescimento do biohacking é inevitável", disse. "O que precisamos é de educação pública decente para ciência e tecnologia".

Para Buzato, as leis de bioética no Brasil são rigorosas, mas só os cientistas estariam cientes dessa responsabilidade. "A ética dos biohackers é não fechar o conhecimento para nada".

"Cabe ao poder público e à sociedade civil discutir o tamanho do risco que estão dispostos a correr", diz o pesquisador.

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