Pagar diretor com ação da empresa é arriscado? Caso Americanas levanta dúvidas

Diretoria da varejista viu remuneração mais do que triplicar nos últimos dois anos, com venda de papeis antes do escândalo contábil

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São Paulo

Um executivo motivado, que trabalhe com afinco para atingir resultados, capazes de garantir a sustentabilidade da companhia no médio e longo prazos, a ponto de aceitar receber boa parte da sua remuneração em ações, que só poderão ser vendidas no mercado alguns anos depois.

Essa é a lógica da remuneração variável por outorga de opção de compra de ações (ou stock options), oferecida ao alto escalão de boa parte das empresas no Brasil. Ideia importada dos Estados Unidos, começou a ser adotada no país nos anos 1990, a partir das filiais de companhias americanas.

Segundo pesquisa da consultoria global PageGroup, especializada no recrutamento de profissionais, 42% dos diretores e presidentes de empresas na América Latina recebem incentivos de longo prazo complementar ao salário fixo, sendo a remuneração por ações o mais comum, adotado em 52% dos casos.

fachada de loja branca em que se lê em vermelho Lojas Americanas
Fachada de loja da Americanas: uma das maiores varejistas do país entrou em recuperação judicial, com dívidas de R$ 43 bilhões. - Divulgação

"A remuneração por ações é uma ferramenta que tenta reter o alto executivo e busca alinhar os seus interesses aos dos acionistas, visando o crescimento da empresa", diz Daniel Elói, presidente da Pris, consultoria especializada em remuneração variável.

"De quebra, o plano de stock options não compromete o caixa da companhia, por não liquidar as ações em dinheiro", afirma Elói, lembrando que o executivo recebe a outorga para compra de ações e, só depois de algum tempo, pode vendê-las.

Levantamento da Pris aponta que na B3 o plano é adotado por 250 empresas listadas. A modalidade é prevista na Lei das S/A, que regula as empresas de capital aberto, mas não há regras específicas e cada empresa fecha com o executivo um contrato de características particulares.

Mas, se o objetivo da remuneração baseada em ações é garantir a sustentabilidade do negócio, a estratégia pode dar errado em alguns casos. No exemplo da Americanas, que trouxe a público um rombo contábil de R$ 20 bilhões, descobriu-se que a empresa ia muito mal, enquanto seus administradores se tornavam milionários.

As "inconsistências contábeis" reveladas pelo ex-presidente da Americanas, Sergio Rial, ainda não foram esclarecidas e são alvo de investigação na CVM (Comissão de Valores Mobiliários), Polícia Federal e MPF (Ministério Público Federal). Mas o que se sabe é que as práticas contábeis esconderam prejuízos, o que valorizou diretamente as ações da varejista e, na sequência, o enriquecimento dos administradores.

Segundo levantamento feito pela Trademap para a Folha, a remuneração dos administradores da Americanas acelerou em 2022. Em 2020, o total somava R$ 36 milhões, que passou a R$ 37 milhões no ano seguinte e saltou a R$ 54,7 milhões em 2022.

A empresa tem até o final de maio para entregar à CVM o formulário de referência de 2022, documento oficial para prestação de informações sobre a remuneração do alto comando. Mas a Americanas já adiantou esses dados no último dia 29 de março, quando publicou a sua proposta para a AGOE (Assembleia Geral Ordinária e Extraordinária), a ser realizada no próximo dia 29 de abril. Já a entrega do balanço de 2022, que deveria ter sido feita até 31 de março, foi adiada, sem data definida.

No documento da AGOE, a empresa informa que foram pagos R$ 54,7 milhões ao alto escalão: R$ 4,5 milhões para os sete membros do conselho de administração, R$ 581,6 mil para os três membros do conselho fiscal e R$ 49,6 milhões para os quatro membros da diretoria estatutária –o que, neste último caso, significa uma remuneração de R$ 12,4 milhões per capita, 46% superior à paga em 2021.

Apesar do salto, o pagamento total ao alto comando da Americanas em 2022, no valor de R$ 54,7 milhões, foi 18% inferior ao valor máximo definido na Assembleia Geral da companhia em abril, de R$ 65 milhões.

Com isso, a remuneração 'per capita' da diretoria estatutária saltou de R$ 3,4 milhões em 2020 para R$ 8,5 milhões em 2021, e disparou para R$ 12,4 milhões no ano passado.

"Entre 2020 e 2022, é um avanço de 265% na remuneração média por membro da diretoria estatutária", diz Murilo Giovaneli, gerente de dados econômicos da Trademap. "Isso chama muito a atenção. Não há um crescimento tão exacerbado nas outras grandes varejistas –Magalu, Via, C&A, Renner e Marisa–, nas quais as remunerações média e total são mais constantes ao longo dos últimos anos."

No Magalu, por exemplo, com receita 30% maior que a da Americanas, a remuneração per capita de 2022 é bem inferior à da rival, de R$ 6,9 milhões, diz Giovaneli. "A diferença é muito gritante."

Questionada pela Folha, a Americanas não fez comentários a respeito da remuneração paga em 2022. Sobre o total pago em 2020 e 2021, "a companhia explica que os valores refletem a combinação operacional de Lojas Americanas e B2W Digital e a consequente reorganização da diretoria estatutária."

A diretoria da Americanas

Quem estava no comando da empresa até o escândalo contábil

  • Anna Saicali

    presidente da Ame Digital; chegou à empresa em 1997

  • Timotheo Barros

    vice-presidente, responsável por lojas físicas, logística e tecnologia; chegou à empresa em 1996

  • Márcio Meirelles

    vice-presidente, responsável pelas áreas digital, consumo e marketing; chegou à empresa em 1994

  • Fábio da Silva Abrate

    diretor da Americanas S.A e da Ame Digital; chegou à empresa em 2003

  • Flavia Carneiro

    controller da B2W; chegou à empresa em 2007

  • Marcelo da Silva Nunes

    diretor financeiro B2W; chegou à empresa em 2005

  • Miguel Gutierrez

    presidente da Americanas entre 2002 e 2022; chegou à empresa em 1993

  • Sergio Rial

    presidente da Americanas em janeiro de 2023; chegou à empresa em setembro de 2022, como consultor

  • André Covre

    diretor financeiro e de relações com investidores em janeiro de 2023; assumiu junto com Sergio Rial

Também chama a atenção, no histórico levantado pela Trademap, a diferença na remuneração total da diretoria estatutária entre os anos de 2012 (R$ 27,6 milhões) e 2013 (R$ 9 milhões). A partir de então, a linha de ganhos é ascendente. Questionada pela reportagem a respeito do porquê da forte queda no intervalo, a empresa não respondeu.

A adoção do plano de remuneração por ações foi aprovado pela companhia em 2011.

Para o ano de 2023, a Americanas vai propor na sua AGOE, a ser realizada no próximo dia 29, remuneração máxima de R$ 40,05 milhões ao conselho de administração, conselho fiscal e diretoria estatutária –sendo esta última a destinatária do maior montante, R$ 35 milhões.

Pela proposta, o conselho de administração deve receber, no ano, R$ 3,6 milhões e, o conselho fiscal, R$ 1,45 milhão. Em um primeiro momento, a Americanas chegou a propor R$ 5 milhões para o board, mas voltou atrás.

Até o final de 2021, a Americanas era controlada pelo trio de bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, que depois se tornaram os principais acionistas da empresa. Hoje, Sicupira e Paulo Alberto Lemann, filho de Jorge Paulo, integram o conselho.

Ganho agressivo, com foco no curto prazo, pode ser gatilho para escândalo

Escândalos financeiros relacionados à remuneração não são incomuns no mundo corporativo. O mais recente é o do banco Silicon Valley: o CEO Greg Becker vendeu o equivalente a US$ 3,6 milhões em ações do banco na semana anterior à falência da instituição, em 10 de março.

Mas especialistas em governança chamam a atenção para o caso da Americanas em que a remuneração individual foi usada como fórmula do sucesso da companhia, o que é contraditório: se o executivo chegar ao limite de decidir entre o próprio ganho e o que for melhor para a empresa, vai ficar com a primeira opção, avaliam.

"Em inúmeros escândalos de governança, o sistema de remuneração da alta gestão tem sido mais parte do problema do que da solução", afirma Alexandre Di Miceli da Silveira, doutor e mestre em administração de empresas e finanças, sócio da consultoria em alta gestão Virtuous. "Quanto mais as pessoas nos principais cargos de liderança estiverem lá pelo dinheiro, mais problemas éticos tendem a ocorrer."

Para Silveira, receber ações como parte da remuneração não é o problema em si. "Há empresas muito bem administradas, como a americana Southwest Airlines, onde todos os empregados, não só os executivos, recebem ações", diz. "A questão é quando o recebimento está vinculado ao alcance de números excessivamente agressivos e irrealistas, ou quando o montante a ser recebido é tão grande a ponto de colocar a pessoa numa situação de tudo ou nada –ou vira milionário ou não ganha nada", diz.

Autor do livro "Governança Corporativa no Brasil e no Mundo: Teoria e Prática" (editora Elsevier, 2010), Silveira afirma que praticamente todos os escândalos de governança vistos recentemente têm alguma relação com sistemas de incentivos inadequados. "Além da Americanas, o país viu os casos de IRB, Odebrecht, OGX, Embraer, Sadia, Aracruz e Panamericano", diz.

"As pessoas que ocupam posições de liderança devem ser selecionadas, avaliadas e substituídas em função de como incorporam, de verdade, os valores da organização –não em função dos números de curto prazo que apresentam."

Para a doutora em psicologia e especialista em comportamento organizacional Betania Tanure, o sistema de remuneração deve ser adotado para reforçar os valores e a cultura da empresa –mas, se esta cultura não garantir um ambiente de transparência e de ética nos negócios, o vale-tudo pelo lucro vai prevalecer.

"O sistema de remuneração é uma alavanca poderosíssima para a modelagem de comportamentos dentro da organização", diz Betania, autora do livro "Você e seu barco" (2022, editora Qualitymark), em parceria com Roberto Patrus, sobre o papel da liderança. "Mas fico inquieta ao ver o mau uso dessa alavanca por muitas empresas, que dizem defender determinados valores, mas remuneram de outra forma."

Segundo ela, o mau uso está sempre relacionado aos privilégios que as decisões de conselheiros ou executivos vão render a estes personagens, em detrimento à sustentabilidade da companhia.

"Os ganhos do conselho e da diretoria devem calibrar a geração de valor para a empresa de maneira ampla, e não com foco apenas no curto prazo, que pode ser fundamental, mas é insuficiente", diz Betania, sócia da consultoria em desenvolvimento empresarial BTA. "O curto prazo é capaz de gerar fortes inconsistências no comportamento e nas prioridades de quem dirige a organização."

Silveira concorda. "Uma empresa que traz como valor ser 'obcecada por resultados' não consegue colocar a ética no mesmo patamar", diz ele, referindo-se a um dos valores defendidos pela Americanas. "É sinal que o conceito de sucesso está deturpado dentro da organização e isso parte do topo."

Alvo de investigações, hoje a antiga diretoria da Americanas está afastada. Todos somam ao menos 16 anos de casa. O mais longevo era o ex-CEO Miguel Gutierrez, que ingressou na Americanas em 1993, tornou-se diretor em 1998, e passou a comandar a empresa em 2002. Como presidente, acumulou a função de diretor de relações com investidores.

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