Turismo gaúcho tenta superar impacto de investigação de trabalho escravo em vinícolas

Para comerciantes e empresários, imagem da região foi afetada por repercussão negativa de caso que envolve terceirizadora de mão de obra

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Bento Gonçalves (RS)

No final de fevereiro, a equipe do restaurante Valle Rústico, de Garibaldi (RS), se surpreendeu com as reações de clientes a um jantar com harmonização de vinhos —a avaliação era bastante negativa, algo raro, segundo eles.

A reclamação recebida, porém, não era referente ao cardápio, tampouco ao atendimento. A nota negativa se deu pela proposta de harmonização de um dos pratos com o vinho Aurora Colheita Tardia. A vinícola foi uma das envolvidas na investigação de trabalho análogo à escravidão em colheitas de uvas em Bento Gonçalves (RS), caso que ganhou repercussão nacional.

O Valle Rústico, um dos quatro restaurantes do chef Rodrigo Bellora, faz questão de trabalhar com marcas locais para conversar com a proposta de "cozinha de natureza", que usa ingredientes orgânicos da região e da atual estação.

Após alguma reflexão, Bellora optou por manter os rótulos na carta de vinhos, embora, neste momento, em menos evidência. E preparar a equipe para explicar a razão à clientela, se necessário.

Homem jovem de boné está sentado olhando para o lado. Ao fundo, há um céu com nuvens e uma pipa de vinho convertida em cabana.
Para o empresário Rafael Beneduzzi, dono de pousada, escândalo foi abordado de forma sensacionalista. (FOTO: Caue Fonseca, Folhapress) - Folhapress

"Talvez tenha faltado sensibilidade, porque a notícia era recente. Avaliamos que é uma situação complexa, em que é preciso ter mais informações antes de tomar uma atitude assim [deixar de vender os vinhos da Aurora]. Foram muitos anos para transformar a região no que ela é hoje. Dói ver ela com uma imagem que não corresponde à realidade", diz Bellora.

O posicionamento do chef ilustra o sentimento de outros agentes do enoturismo da região do Vale dos Vinhedos —que abrange os municípios de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul.

Passado um mês da operação de resgate de 207 trabalhadores em situação análoga à escravidão da subcontratada Fênix, uma empresa terceirizada que prestava serviços às vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, empresários e produtores avaliam como grave o caso.

Ao mesmo tempo, se sentem ofendidos, injustiçados e demonstrem mágoa pela forma como o setor foi retratado na mídia.

As vinícolas diretamente envolvidas não tocam no assunto nos tours oferecidos a turistas, embora o tema apareça à boca pequena entre os participantes das visitas. As três recusaram pedidos de entrevista sobre o episódio.

Por se tratar de um setor em que relações familiares e comerciais se misturam há gerações, o escândalo afetou a imagem de toda a comunidade.

Rafael Beneduzzi e Graziela Feio, por exemplo, são casados e administram o Pipas Terroir Pousada e Wine Bar, na zona rural de Bento Gonçalves. O negócio não tem nenhum rótulo das vinícolas e sua carta, e apenas usa um espumante da Garibaldi em drinks.

Graziela, porém, é uma enóloga que já trabalhou diretamente no desembarque das uvas na Aurora. A pousada do casal usa pipas de madeira que foram compradas da Aurora há seis anos por R$ 7,5 mil cada e transformadas em quartos. Quem as fabricou, décadas atrás, eram pessoas como o avô de Rafael.

No dia a dia, o casal convive com centenas de produtores que dependem da venda da uva às grandes vinícolas. Alguns, como o avô de Graziela, na época da colheita abrigam trabalhadores dentro de casa.

Na opinião de Rafael, para uma comunidade cuja cultura está ligada a trabalho "até demais", foi uma ofensa terem se visto retratados como exploradores de mão de obra.

Eles avaliam que houve uma generalização das críticas aos empregadores investigados pelo crime, que acabou atingindo os milhares de produtores que fazem a vindima e fornecem matéria-prima às vinícolas.

"Eu comparo a uma explosão nuclear. Houve um problema no centro, na relação daquela empresa terceirizada com os seus trabalhadores. Dali, atingiu as vinícolas. Mas as manchetes falam sem parar em vinícolas e escravos, escravos e vinícolas. Quando viu, toda a região foi queimada. Depois, todo o Rio Grande do Sul virou um estado escravagista", diz Rafael.

"Esse episódio fez eu refletir sobre as vezes em que defendi a mídia, porque achei a forma como esse episódio foi retratado muito sensacionalista e distorcida", completa.

Rafael entrou em contato por WhatsApp com rádios locais cobrando espaço para a declaração de um delegado da Polícia Federal no dia 17 de março de que, conforme as investigações até aqui, as três vinícolas não tiveram participação direta no crime de exploração dos trabalhadores cometido pela Fênix. Fora da esfera criminal, as vinícolas firmaram um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público do Trabalho do RS no dia 9.

Em números, por se tratar de baixa temporada do turismo na serra gaúcha, é difícil mensurar algum impacto direto nos negócios. Até aqui, Graziela não percebeu queda no movimento, mas disse que há um incômodo.

"O mais difícil é lidar com as piadinhas. Esses dias ouvi alguém dizendo para uma cliente em uma videochamada: ‘Só não vai tomar espumante de escravos aí’. Virou uma piada de pessoas que não sabem como funciona", diz Graziela.

Conforme Marcos Giordani, vice-presidente do SEGH (Sindicato Empresarial de Gastronomia e Hotelaria da Região Uva e Vinho) e presidente do Conselho Municipal do Turismo de Bento Gonçalves, pouco se pode fazer no momento para recuperar a imagem do setor.

"Com o tempo, espero que esse episódio seja visto como um caso esporádico dentro de uma realidade bem diferente. O foco é a gente ter uma regulamentação mais clara do trabalho sazonal, que seguirá necessário nas próximas colheitas. Os pequenos proprietários ficaram inseguros com o que aconteceu. Eles precisam ter claro como podem fazer essas contratações da forma correta", diz Giordani.

Integrante de uma câmara setorial montada para tratar do tema, com participação do Ministério do Trabalho e Emprego, Giordani sugere que valores como a multa por dano moral coletivo firmada no TAC sejam revertidos para investimentos no setor —como a construção de um alojamento municipal em parceria público-privada para trabalhadores temporários.

Nas Pipas Terroir, Rafael espera que "os canceladores" da opinião pública encontrem outro tema para se engajar. De preferência até o inverno, quando o fluxo de turistas volta a ser intenso.

"Os canceladores viveram esse mês em frenesi, porque eles puderam se manifestar contra esse povo escravagista do sul! Eles eram os justos! Mesmo que, em nome da justiça para aqueles trabalhadores, cometam milhares de pequenas injustiças com quem nada tem a ver", diz.

Caso é tabu em tours turísticos de vinícolas

Casa suntuosa com jardins sob o céu azul com dizeres "vinícola salton"
Sede luxuosa da Vinícola Salton, no Distrito de Tuiuty, conta sua história em um passeio de duas horas chamado Tour Paradoxo. - Folhapress

A Folha visitou três passeios turísticos nas vinícolas Aurora e Salton, em Bento Gonçalves (RS), e Garibaldi, em Garibaldi (RS), que contratavam a Fênix, empresa terceirizada responsável investigada por maus-tratos aos trabalhadores resgatados.

A reportagem não se identificou, para que fosse possível observar se o caso seria citado espontaneamente nas visitas. Em nenhum dos três tours o tema foi abordado pelos guias turísticos.

Na Aurora, o passeio Aurora Cittá foi feito na matriz da empresa no centro de Bento Gonçalves (RS). Na Garibaldi, o passeio ocorre na área central da cidade de Garibaldi, em que fica o espaço de enoturismo da empresa. O tour escolhido foi Uma História para Degustar. Ambos têm duração aproximada de uma hora, com foco na história da empresa e métodos de produção das bebidas.

Ao final dos passeios, a Folha conversou com alguns turistas. Um casal afirmou que ambos haviam lido algo a respeito do episódio de trabalho análogo à escravidão, mas não sabia dizer quais empresas estavam envolvidas.

Outro casal afirmou que cogitou mudar o programa de última hora, mas desistiu em razão do alto custo e após confirmar que os passeios não haviam sido cancelados pelas empresas.

Na Salton, o repórter acompanhou um grupo de nove turistas de São Paulo, Goiás e Rio de Janeiro no Tour Paradoxo, que percorreu a sede da empresa, construída em 1999 no distrito de Tuiuty, de Bento Gonçalves (RS), com duração aproximada de duas horas.

O passeio da Salton foi o único em que o tema apareceu, mas levantado por um dos turistas. Um homem do interior de São Paulo abordou o repórter, que havia se apresentado como natural de Porto Alegre, e perguntou se a Salton era uma das empresas envolvidas "naquele caso dos escravizados".

Depois da visita, a Folha conversou com um homem de 48 anos do interior de São Paulo. Ele soube do incidente antes do roteiro pela serra e, em razão disso, decidiu não visitar a vinícola Aurora. Também relatou ter recusado uma degustação de espumantes da Garibaldi ao final de um passeio de trem na véspera. Porém, quis conhecer a sede da Salton com a esposa por ser um lugar muito bonito, disse.

A reportagem enviou quatro perguntas a cada uma das três vinícolas: se houve mudanças nas vendas nas lojas de comércio direto ao consumidor, se houve mudança no fluxo de visitantes aos passeios, se as empresas pretendem fazer menção ao assunto em algum momento das visitas e se os guias estão orientados a responder sobre o assunto, caso sejam questionados.

As três responderam parcialmente por meio de notas.

A Aurora disse que seu balanço do fluxo de visitantes é feito a cada trimestre. Até o dia 23 de março, conforme a empresa, o passeio feito pelo repórter recebeu 44.033 turistas, quase 5.000 a mais do que em 2022. Ademais, respondeu apenas que "colaboradores e fornecedores têm sido atualizados sobre as providências adotadas pela cooperativa em todas as esferas."

A Garibaldi disse que as visitas "estão dentro da normalidade e já observando aprendizados no relacionamento com seus públicos". Sobre o incidente em questão, disse ter emitido já duas manifestações com "posicionamentos e esclarecimentos (...) de acesso irrestrito por parte dos colaboradores, guias de turismo e também visitantes."

A Salton disse que "as operações seguem de acordo com o histórico para essa época do ano". Aos colaboradores, a orientação da empresa é "informar que a Salton está contribuindo com as autoridades e que todas as informações estão no site", onde há uma carta aberta à sociedade e um boletim informativo detalhando as ações tomadas.

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