Descrição de chapéu The New York Times

Prestes a ser presa, Elizabeth Holmes conta sua história de ascensão e queda

Fundadora da Theranos foi condenada por um dos casos mais notórios de fraude corporativa

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San Diego (EUA) | The New York Times

Elizabeth Holmes se mistura com as outras mães aqui, com um chapéu-balde e óculos escuros, seu bebê amarrado ao peito e envolto num pano de amamentação do Baby Yoda. Passamos por uma família de orangotangos enjaulados e conversamos sobre como Holmes está se preparando para ser presa por um dos casos mais notórios de fraude corporativa da história recente.

Caso você esteja se perguntando, Holmes fala com uma voz suave, ligeiramente baixa, mas totalmente normal, sem nenhum indício do contralto gutural que ela usava quando dirigia sua startup de exames de sangue Theranos, agora extinta.

"Eu cometi tantos erros e havia tanto que eu não sabia e não entendia, e sinto que quando você faz algo errado é como se realmente internalizasse isso de uma maneira profunda", disse Holmes quando paramos para olhar uma cobra sucuri.

Elizabeth Holmes em sua casa em Del Mar, Califórnia - Philip Cheung - 24.mar.2023/The New York Times

Billy Evans, companheiro de Holmes e pai de seus dois filhos pequenos, empurra um carrinho com William, de quase 2 anos. William gosta de brincar na areia, do livro "Caminhãozinho Azul" e de fazer bolinhos e, assim como a mãe, já fala um pouco de mandarim. Mas William ama especialmente o zoológico de San Diego, e é por isso que, numa tarde de quinta-feira recente, me vi na situação surreal de tentar entender a versão de Holmes de sua ascensão e queda, enquanto observava uma chimpanzé inquieta e comprava uma camiseta de gorila na loja de presentes.

"Como você gastaria seu tempo se não soubesse quanto tempo lhe resta?", disse Holmes, pensando na data da prisão iminente, talvez ainda mais porque estávamos cercados por animais atrás de grades. "Seria o tipo de coisa que estamos fazendo agora porque são perfeitas. Apenas estar juntos."

Holmes não fala com a mídia desde 2016, quando sua equipe jurídica a aconselhou a ficar quieta. Como diz o ditado, se você não alimenta a imprensa, nós nos alimentamos de você. Em Holmes, encontramos um bufê "à vontade". Tinha de tudo: as golas rolê pretas, o batom vermelho Kabuki, os sucos verdes, a dança de Lil Wayne. Em algum lugar ao longo do caminho, Holmes disse que a pessoa (seja lá quem for) se perdeu. A certa altura, digo a ela que ouvi que Jennifer Lawrence desistiu de retratá-la em um filme. Ela respondeu, quase como uma reflexão: "Eles não estão me interpretando. Estão interpretando uma personagem que eu criei".

Então, por que ela criou essa personagem pública? "Eu acreditava que seria como eu seria boa nos negócios e levada a sério, e não como uma garotinha ou uma garota que não tinha boas ideias técnicas", disse Holmes, que fundou a Theranos aos 19 anos. "Talvez as pessoas tenham percebido que isso não era autêntico, já que não era."

Talvez?

Dez anos atrás, Holmes era a bilionária mais jovem do mundo, valendo US$ 4,5 bilhões (R$ 22,3 bilhões, no papel, em ações da Theranos), e uma das mulheres CEOs mais visíveis e celebradas do planeta, administrando uma startup avaliada em US$ 9 bilhões (R$ 44,7 bilhões). Então, em 2015, o The Wall Street Journal publicou uma investigação sobre a Theranos, questionando se seus laboratórios e tecnologia –um dispositivo elegante e quadrado chamado Edison– realmente funcionavam como prometido, testando uma ampla gama de doenças com uma pequena quantidade de sangue coletado com uma simples picada no dedo.

Em 2016, inspetores federais dos Centros de Serviços Medicare e Medicaid encontraram "práticas deficientes" em um laboratório da Theranos que representavam "perigo imediato à saúde e segurança do paciente".

Isso deu início a uma saga que acabaria levando Holmes a ser condenada por acusações de fraude criminal.

O julgamento de 15 semanas começou em 2021 e contou com extensos depoimentos sobre práticas problemáticas na Theranos. O júri ouviu vários pacientes, incluindo uma que disse que um exame de sangue da Theranos revelou que ela estava tendo um aborto espontâneo quando, na verdade, tinha uma gravidez saudável. Holmes não foi condenada por nenhuma acusação relacionada a pacientes. Mas o depoimento foi um lembrete dos riscos humanos de escolher a biotecnologia como sua startup.

Holmes foi considerada culpada em janeiro de 2022 em quatro das 11 acusações de que ela fraudou os investidores da Theranos em mais de US$ 100 milhões (R$ 496,9 milhões). Seu principal assessor na Theranos, e na época namorado muito mais velho, Ramesh Balwani, foi considerado culpado de dez acusações de fraude eletrônica e duas de conspiração para cometer fraude eletrônica na Theranos. Ele começou uma pena de 13 anos de prisão no mês passado. Na quinta-feira (4), sua equipe jurídica entrou com um recurso no 9º Circuito.

Durante os processos acompanhados de perto, um promotor, Robert Leach, disse que esse era um caso "sobre fraude, mentira e trapaça", alegando que a Theranos levantou centenas de milhões de dólares de investidores, enganando-os sobre as capacidades de sua tecnologia de exame de sangue.

Lance Wade, advogado de Holmes, disse que sua cliente "cometeu erros, mas erros não são crimes".

Quando conheci Holmes e Evans, eles contavam os dias até 27 de abril, quando ela seria obrigada a se apresentar no Presídio Federal de Bryan, no Texas, para cumprir 11 anos e três meses. (Pouco antes de chegar à prisão, Holmes fez um pedido de última hora para permanecer em liberdade enquanto aguardava um recurso, o que automaticamente atrasou a data de sua apresentação por um período indeterminado.)

Dia 44: à tarde, pedimos comida mexicana em sua pitoresca casa alugada perto do Pacífico.

Dia 43: pela manhã, fomos tomar café da manhã e Holmes amamentou seu bebê, Invicta (latim para "invencível") e cantou junto com Ace of Base "All That She Wants" que tocava nos alto-falantes ("Foi o primeiro disco que eu tive").

Dia 42: comemos croissants e frutas vermelhas, Evans fez café e caminhamos na praia com a mistura de dogue-alemão e mastim de 80 quilos do casal, Teddy.

No segundo dia que passamos juntos, Evans me perguntou qual era a parte mais surpreendente de passar tanto tempo com Holmes. Eu respondi que não esperava que ela fosse tão... normal?

Percebi que estava essencialmente escrevendo uma história sobre duas pessoas. Havia Elizabeth, celebrada na mídia como uma inventora estrela cujo brilho deslumbrou homens ricos ilustres e cujo julgamento criminal cativou o mundo. Depois, há Liz (como Evans e seus amigos a chamam), mãe de dois filhos que, no ano passado, se ofereceu como voluntária para uma linha direta de crise de estupro. Que não tem estômago para filmes "restritos" e que correu atrás de mim uma tarde com uma toalha de papel para limpar uma mistura de areia e cocô de cachorro do meu sapato.

Depois que Holmes foi condenada, Rupert Murdoch, que investiu US$ 125 milhões (R$ 621,1milhões) na Theranos, enviou um e-mail ao The Wall Street Journal, jornal de sua propriedade, chamando a si mesmo de "um dentre um bando de velhos enganados por uma jovem aparentemente ótima! Vergonha total". Não sou uma observadora mais inteligente ou astuta do comportamento humano do que Murdoch ou George Shultz, o ex-secretário de Estado que ajudou a acabar com a Guerra Fria, ou James Mattis, o general quatro-estrelas aposentado do Corpo de Fuzileiros Navais e ex-secretário de Defesa, ambos os quais eram membros do conselho e investidores da Theranos. Então, como eu poderia ter certeza de que "Liz" não era outro personagem que Holmes havia criado?

Admito que fui arrebatada por Liz como uma pessoa autêntica e simpática. Ela é meiga e carismática, de um jeito tranquilo. Meu editor riu de mim quando compartilhei essas impressões, dizendo-me (e cito): "Amy Chozick, você foi enganada!" Eu discordei veementemente! Você não a conhece como eu!

Mas então algo estranho aconteceu. Eu trabalhava com uma lista de amigos, familiares e antigos apoiadores de Holmes, com quem ela e Evans sugeriram que eu falasse. Um desses amigos disse que Holmes tinha intenções genuínas na Theranos e não merecia uma longa sentença de prisão. Então, essa pessoa pediu anonimato para me advertir a não acreditar em tudo o que Holmes diz.

Esse aviso ficou comigo e atingiu algo que me atormentava desde que a conheci. Como você tem uma conversa honesta com uma pessoa cujo julgamento por fraude foi tão público? Tentei perguntar isso diretamente a Holmes. Como posso acreditar em você quando você foi condenada (basicamente) por mentir? Mas como eu poderia perguntar a alguém que amamentava seu bebê de 11 dias em um sofá branco a meio metro de distância se ela estava me enganando?

Era nessas trocas desconfortáveis que Evans frequentemente intervinha. "Sua pergunta é: 'Como você diz alguma coisa quando tudo o que você disse vai ser posto em dúvida?' Você simplesmente tem que dizê-la", afirmou ele.

Então, simplesmente diga: Holmes sabe o que você está pensando sobre o julgamento dela e o nascimento de seus dois bebês.

Quando ela avisou o tribunal, em 12 de março de 2021, de que estava grávida de seu primeiro filho, Leach, o promotor, chamou a notícia de "frustrante". O julgamento já tinha sido adiado por causa da pandemia e foi adiado por mais algumas semanas, até depois que ela deu à luz, em julho.

Mal me sentei na casa de Holmes e Evans na primeira vez que nos encontramos pessoalmente, e Holmes me contou sobre seu trabalho na linha direta para casos de estupro. Ela tinha acabado de terminar um turno de 12 horas, que faz algumas vezes por semana em casa usando o celular, atendendo as ligações quando elas chegam.

Então ela colocou esse trabalho em contexto, contando-me como sobreviver a um estupro numa festa de fraternidade em seu segundo ano em Stanford, em retrospecto, influenciou muitas de suas escolhas de vida. É a parte de sua história que ela sempre conta. A que ela disse a um júri simpático, mas implacável, de acordo com reportagens da imprensa. A que ela quer que as pessoas (finalmente) ouçam. (Mais tarde, revisei um relatório da polícia de Santa Clara de 52 páginas que documentava os detalhes da suposta agressão sexual e os ferimentos de Holmes. Ela não prestou queixa.)

Holmes entrega o bebê para Evans. "Vou entregá-la a você quando estivermos falando sobre essas coisas", disse. E continuou: "Acordei com um cara que era meu amigo fazendo sexo comigo e não consegui tirá-lo de mim". Holmes disse que a agressão, em outubro de 2003, contribuiu para sua decisão de deixar a faculdade vários meses depois e abrir uma empresa.

Para ajudá-la nisso, ela recorreu a Balwani, conhecido como Sunny, que conheceu em 2002 numa viagem de faculdade à China. Holmes tinha 18 anos. Balwani tinha 37 e já havia fundado e vendido com sucesso uma empresa de tecnologia.

Em março de 2004, seu segundo ano, Holmes deixou Stanford e foi morar com Balwani para tirar a Theranos do papel. (Balwani garantiu um empréstimo para a Theranos e ingressou na empresa em 2009.) "Eu realmente pensei que estaria segura", disse Holmes. "Meus amigos da escola e todo aquele universo não existiam mais quando eu estava com ele. Tudo desaparecia."

Como Holmes explicou, repetindo uma parte fundamental de sua estratégia de defesa, Balwani mantinha o controle de todas as suas ações. Ela detalhou extensa violência doméstica e agressão sexual. Disse que Balwani a forçou a parar de falar com sua família e amigos de Stanford e a pressionou a adotar a personalidade de gola rulê preta e batom vermelho.

"Ele sempre me dizia que eu precisava 'matar a Elizabeth' para me tornar uma boa empresária", disse ela.

Jeffrey Coopersmith, advogado de Balwani, negou as acusações. "Nosso cliente não é uma pessoa vingativa, mesquinha ou agressiva", disse.

Holmes vivia de acordo com princípios empresariais que, segundo ela, Balwani lhe disse que precisaria seguir para ter sucesso. Isso incluía não dormir mais que cinco horas, tornar-se vegana, chegar ao escritório diariamente às 5h, nada de álcool.

"Foi só quando as pessoas começaram a levantar questões sobre a empresa que comecei a ver que ele não era quem eu pensava", disse Holmes sobre Balwani. "Então isso me fez começar a questionar todo o resto."

Pessoalmente, Holmes é envolvente, mas também é um pouco atrofiada socialmente. É como se Rip Van Winkle tivesse adormecido aos 20 anos em uma startup e acordado aos 32 na comunidade Burning Man. Isso porque nos 14 anos em que Holmes liderou a Theranos ela não fez nenhuma das coisas normais para alguém de 20 e poucos anos, segundo seus amigos e familiares. Holmes tinha tão poucos amigos de verdade, disse ela, quando dirigia a Theranos que certa vez chamou uma executiva farmacêutica de lado para perguntar se a maneira como Balwani a tratava era normal em um relacionamento. No entanto, a mesma pessoa que me alertou sobre Holmes apontou que ela parecia ter muitos amigos ricos e famosos nesse período.

Em 2015, quando The Wall Street Journal noticiou pela primeira vez falhas graves na tecnologia da Theranos, Debbie Sterling, uma empresária e colega de classe de Holmes em Stanford, perguntou se ela precisava de alguém para conversar. "Ela disse: 'Não tenho amigos. Eu só trabalho, da primeira hora da manhã até tarde da noite'", lembrou Sterling. "Foi meio assustador." Ela se corrige: "Não é assustador, mas preocupante". Elas finalmente se encontraram para um café da manhã em Palo Alto.

Sterling disse que pensava em sua amiga como duas pessoas distintas: havia "A Elizabeth de gola rulê preta" e "a Elizabeth de verdade". Sterling, junto com vários outros amigos de Stanford, compareceu ao julgamento para apoiar Holmes. Mas primeiro ela comprou uma tintura de cabelo marrom numa drogaria, preocupada que ser vista ali pudesse prejudicar sua reputação.

Em 2016, enquanto os reguladores examinavam a Theranos, Balwani renunciou. A Theranos fechou seu laboratório clínico e demitiu cerca de 40% de seus cerca de 790 funcionários. O irmão de Holmes (e executivo da Theranos), Christian Holmes V, a ajudou a fazer as malas e sair da mansão que ela dividia com Balwani. Holmes, impedida de trabalhar em um laboratório médico por dois anos, se hospedou num hotel e depois alugou uma casa de dois quartos em Los Altos. Quase não tinha pertences, então seus pais lhe enviaram alguns móveis de chita dos anos 1990 que eles tinham guardados.

Em 2017, enquanto a Theranos enfrentava uma série de desafios legais, tanto civis quanto criminais, Holmes mudou-se para San Francisco, onde conheceu um recém-formado do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e empresário, Billy Evans, numa festa durante a Fleet Week em benefício de soldados feridos. Evans saiu para pegar gelo para uma festa que estava dando em seu próprio apartamento e um amigo mandou uma mensagem perguntando se ele iria ao evento beneficente. Ele concordou em passar por alguns minutos e nunca voltou para sua festa.

Um amigo comum o apresentou a Holmes e os dois conversaram durante três horas. "Meus amigos ficavam mandando mensagens de texto: 'Onde você está? Chegamos’", lembrou Evans. "Dizer que nos apaixonamos imediatamente não é exagero."

Evans tinha 25 anos e morava com colegas de quarto em San Francisco, mas em muitos aspectos ele era mais maduro que Holmes. Ela tinha 32 e nunca havia aberto uma garrafa de vinho. "Elizabeth vivia em completo isolamento com Sunny", disse seu pai, Christian Holmes IV. "É difícil explicar até que ponto ela perdeu tanto da vida de uma pessoa de 20 anos." Enquanto a Theranos resolvia uma série de processos civis e os promotores federais fechavam as acusações criminais, Holmes começou a se socializar novamente, reconectando-se com a família e os amigos. "Apesar de tudo ter acontecido horrivelmente em sua vida, tivemos nossa filha de volta e foi maravilhoso ver como ela costumava ser", disse sua mãe, Noel Holmes.

Holmes e Evans rapidamente se tornaram mais que amigos e foram morar juntos. "Foram dois anos de todas essas coisas escritas sobre mim, e acho que você conhece alguém de uma maneira totalmente diferente quando entra com esse ceticismo, em comparação quando vocês se conhecem quando tudo é sol e rosas", disse Holmes. "Isso permitiu que nos conhecêssemos de uma maneira muito profunda."

Em 2018, o Departamento de Justiça indiciou Holmes, acusando-a de mentir quando disse aos investidores que os dispositivos da Theranos poderiam realizar rapidamente uma gama completa de exames de sangue clínicos usando uma picada no dedo, mesmo sabendo que os testes eram inconfiáveis, limitados e lentos.

A tão badalada caixa não fazia muita coisa. E a maioria das promessas que colocaram Holmes no mapa acabaram sendo ficção.

O conselho da Theranos, não conseguindo encontrar um comprador para a startup, acabou dissolvendo a empresa.

Para onde você vai quando o trabalho e a reputação de sua vida pegam fogo? Para a Burning Man.

Holmes e Evans foram para o oásis no deserto para boêmios endinheirados. Ela queimou uma homenagem a Theranos. "Havia uma sensação incrível de luto porque dei tudo por isso, toda a minha vida, desde os 18 anos", disse ela sobre esse período.

No ano seguinte, 2019, depois que o juiz distrital dos EUA Edward J. Davila marcou a data do julgamento criminal de Holmes, ela e Evans pegaram a estrada. Enquanto os promotores preparavam o caso, Holmes e Evans passaram seis meses viajando pelo país em um veículo recreativo, dormindo em acampamentos e estacionamentos do Walmart. Holmes combinava ioga ao ar livre e longas caminhadas em parques nacionais com o trabalho em sua defesa legal.

Digo a Holmes (com tantas palavras) que parece que ela ficou extremamente feliz no momento em que sua vida estava desmoronando. Ela não discorda. "Embora aquele período fosse uma crise e a Theranos fosse minha vida e como um filho, dei tudo o que tinha", disse ela. Depois que ela terminou, "também me libertei".

Pelo menos por enquanto.

Os defensores de Holmes, que remontam à infância, disseram em cartas ao tribunal e em conversas comigo que a cobertura febril da queda de Holmes parecia um julgamento de bruxa, menos enraizado no que realmente aconteceu na Theranos e mais uma mensagem para mulheres ambiciosas em todos os lugares: "Meninas, não cheguem muito perto do sol, ou isso pode acontecer com você".

"Há uma lição tácita para as executivas: você pode ser bem-sucedida, mas não bem-sucedida demais", escreveu Jackie Lamping, colega de Holmes na fraternidade Kappa Alpha Theta em Stanford, numa carta a Davila, que supervisionou o julgamento.

Holmes disse que acreditava que tornar-se a garota-propaganda das mulheres em tecnologia colocava um grande alvo em suas costas. Ela se arrepende de ter sido alvo de capas de revistas bajuladoras (embora eu imagine que os autores dessas histórias se arrependam mais). "Nunca perdi de vista a missão, mas acho que perdi a narrativa", disse ela. "A história se tornou essa história que foi totalmente distorcida do que realmente estávamos falando."

Claro, Holmes também tentou controlar a história, muitas vezes com táticas de terra arrasada. Ela é geralmente dócil, mas ficou visivelmente chateada quando perguntei sobre como o advogado David Boies havia ameaçado processar pessoas que falavam negativamente sobre a Theranos. Alex Shultz, pai do funcionário da Theranos Tyler Shultz, que se tornou denunciante, e filho de George Shultz, disse ao tribunal que Tyler "dormia com uma faca debaixo do travesseiro todas as noites, pensando que alguém viria matá-lo durante a noite". (Holmes e Boies se afastaram e ela trocou sua equipe jurídica em 2016.)

"Ainda estou pensando sobre os jornalistas sendo intimidados", disse Holmes depois que passamos para vários outros assuntos. "Como eu disse no julgamento, gostaria que tivéssemos lidado com essa situação de maneira diferente." Ela chora. "Assumo a responsabilidade porque fui CEO da empresa e, no final das contas, é isso, mas não acredito que as pessoas sejam tratadas dessa forma, ponto final." (Em resposta a Holmes aparentemente culpar sua equipe jurídica, um porta-voz de Boies mandou uma mensagem de texto: "Não importa".)

Holmes escolhe suas palavras com cuidado quando pergunto se os homens proeminentes que investiram e ingressaram no conselho da Theranos foram atraídos para a startup em parte porque o fundador era uma jovem atraente. "Muitas pessoas foram atraídas por isso por suas próprias razões", disse ela.

O que ela acha que teria acontecido se não tivesse chamado tanta atenção no início, como a segunda vinda do Vale do Silício? Holmes não pisca: "Teríamos visto através de nossa visão". Em outras palavras, ela acha que se tivesse passado mais tempo trabalhando silenciosamente em suas invenções, e menos tempo num palco promovendo a empresa, ela já teria revolucionado a assistência médica.

No último dia que passei com Holmes, estacionei e caminhei pela longa entrada para encontrá-la abraçada com Evans na cozinha. Eles pareciam estar dançando lentamente, num leve balanço, os dois contra o mundo. Lareira acesa. Gaivotas voando em cima. Teddy babando em sua caixa. Bebês (plural) dormindo.

Evans saiu para malhar, dizendo que não quer ter um "corpo de papai". Holmes e eu sentamos à mesa da cozinha sozinhas, conversando. Ela não parecia uma heroína ou uma vilã. Parecia em algum lugar intermediário, como a maioria das pessoas. Enquanto Holmes começava a pensar em como seus filhos seriam daqui a 11 anos, continuei voltando à sua promessa central na Theranos: a tecnologia que ela inventou iria, em suas palavras, criar "um mundo no qual ninguém jamais teria que dizer adeus cedo demais".

E lá estava ela, preparando-se para fazer exatamente isso.

Naquela sexta, o casal se preparava para receber um grupo de amigos da Área da Baía. Eles me convidaram para ficar. Várias vezes me convidaram para voltar, para trazer minha família. Todos nós poderíamos ir ao zoológico.

Apreciei sua hospitalidade, mas não a entendi completamente. Em geral os entrevistados mal podem esperar para se livrar de mim.

Então percebi por que eles continuavam abrindo mais a porta. Holmes é diferente de qualquer pessoa que já conheci –discreta, mas hipnótica. Quando você está em sua presença, é impossível não acreditar nela, não ser levado e acolhido por ela. Liz Holmes e Billy Evans sabem disso. Recusei educadamente o convite.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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