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'Oppenheimer' tenta dar lição de moral no Vale do Silício, mas projeta personalismo na tecnologia

CEO por trás do ChatGPT já disse que sua empresa deveria trabalhar com mesma energia que projeto Manhattan

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São Paulo

O novo filme de Christopher Nolan, "Oppenheimer", acompanha a vida do físico que liderou os esforços pela criação da primeira bomba atômica, da universidade ao reconhecimento público, após a perseguição política. Também aborda o remorso causado pela criatura, as bombas que mataram ao menos 220 mil pessoas em Hiroshima e Nagasaki.

Em conversa com cientistas, escritores e jornalistas, após exibição da obra, Nolan disse esperar que a história sirva como lição de moral para o Vale do Silício. O comentário faz menção à discussão sobre os riscos da inteligência artificial.

O cineasta recorreu à hipérbole do exemplo de IAs com controle sobre armas nucleares. "Se nós permitimos que as pessoas separem a tecnologia da pessoa por trás do mecanismo, seja na programação ou na aplicação, estamos lascados. Tem de haver prestação de contas."

Colagem mostra sobre fundo bege as fotos de Sam Altman e Cillian Murphy, no papel de Oppenheimer. Os dois estão cortados no tronco, olhando pra lados opostos, mas conectados pelo meio. Sobre cada rosto, há uma meia bola vermelha, completada por linha da mesma cor. Ao centro, entre eles, seguindo o corte diagonal que os une, diversas linhas pretas de várias espessuras. Apenas uma está com o ângulo deslocado, dando a ideia de desequilíbrio.
Acima, o ator Cillian Murphy, que interpreta Robert Oppenheimer no filme de Chistopher Nolan. Abaixo, de ponta-cabeça, Sam Altman, chefe-executivo da OpenAI, a desenvolvedora do ChatGPT - Carolina Daffara

O filme, entretanto, dá pouca atenção a esse aspecto. Adaptação do livro "The American Prometheus" (Prometeu Americano, em tradução livre), de 2005, a obra tenta se debruçar sobre a dor da pessoa física Robert Oppenheimer em função dos conflitos éticos na criação da bomba. A comparação é com Prometeu, o titã que entregou fogo à humanidade e acabou castigado por Zeus.

No fim, o filme dá mais atenção à perseguição política sofrida pelo cientista por vínculos com movimentos de esquerda. Oppenheimer foi uma das vozes críticas ao desenvolvimento da bomba de hidrogênio e saiu derrotado da discussão.

O nome mais badalado da inteligência artificial, Sam Altman, chefe-executivo da OpenAI, mostrou ter afinidade com a história de Oppenheimer ainda em 2019.

Dias após receber o primeiro investimento de US$ 1 bilhão da Microsoft, Altman disse que o Projeto Manhattan —programa que desenvolveu as primeiras bombas atômicas— tinha a mesma proporção da OpenAI, "ao menos em termos de ambição." A declaração foi feita em entrevista ao The New York Times.

A missão da companhia, disse, é "desenvolver inteligência artificial geral que beneficie toda a sociedade." Nesse estágio teórico, os algoritmos poderiam generalizar respostas para situações diversas, assim como fazem os humanos.

Em tempos recentes, Altman escreveu que a inteligência artificial geral pode abaixar o preço de educação e saúde, por diminuir a procura por profissionais caros, o que tornaria o mundo mais igualitário.

Há 80 anos, Oppenheimer parecia convencido, durante seu trabalho em Los Alamos, de que a bomba atômica seria o fim de todas as guerras, minimizando seu conflito moral pensando no alvo nazista, como mostra o filme de Nolan.

Assim como o cientista reconhecia os riscos do projeto que liderou, Altman também fala com frequência dos altos riscos de a IA causar disrupção social econômica e social e empoderar gente ruim. Disse isso em artigo publicado no blog da própria OpenAI.

Dessa maneira, o executivo da startup de IA coloca o tema do negócio que lidera no centro do debate global. Seja pela chance de gerar desenvolvimento econômico, seja pelo temor de tornar a humanidade obsoleta e subserviente às máquinas.

É esse exagero de benefícios e riscos que o neurocientista Miguel Nicolelis chamou de marketing, em entrevista recente à Folha.

A inteligência artificial tem o potencial de transformar muita coisa, mas não se sabe muito o quê e em que intensidade. Dados da consultoria McKinsey mostram que apenas 11% das ideias que envolvem IA viram negócios ou recursos viáveis na cadeia de produção —o número é ainda menor para modelos de linguagem, como ChatGPT.

Deixar uma moral da história para bilionários do Vale do Silício erra o ponto, uma vez que esses atores já estão no controle. Microsoft, Facebook, Google, Estados Unidos e China elegeram a economia da atenção e depois a inteligência artificial como temas estratégicos.

Com essas empresas no comando, já há tragédias, a exemplo da desumanização da minoria Rohingya no Mianmar impulsionada pelo algoritmo de curadoria do Facebook —que funciona à base de IA para reter a atenção dos usuários por mais tempo.

A considerar que a "tecnologia acontece porque é possível", como disse Oppenheimer ao ser questionado pela bomba ainda em 1945, alertar os usuários têm mais efeito do que os já envolvidos chefes. Se o efeito é público, todos deveriam ter voz.

O trauma da bomba atômica não foi objeto de debate apenas de físicos baseados no Oeste dos EUA ou dos governos envolvidos na Guerra Fria. Livros como "Hiroshima" de John Hersey sensibilizaram o mundo ainda em 1946.

Foram pessoas indignadas que tomaram as ruas de Tóquio a São Paulo em 1968, ano em que as cinco maiores potências nucleares aceitaram assinar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.

Cena de "Oppenheimer" mostra como o silêncio das pessoas ante os bombardeios americanos em Tóquio, na sequência do ataque à base de Pearl Harbor, criou ambiente político para a explosão das bombas Fat Man e Little Boy. Essas ofensivas anteriores ao episódio nuclear deixaram cerca de 100 mil mortos, estimam historiadores.

O problema ainda está sem solução, assim como o caso das redes sociais. O movimento antirracista Black Lives Matter mostra, por outro lado, que a população pode operar as plataformas a seu favor, para projetar a voz de grupos antes invisibilizados.

Histórias como a de Oppenheimer já circulam há muito na esfera pública. Ele é um homem branco ocidental com vida acadêmica na Califórnia —onde foi estudar Sam Altman e foram fundar negócios Mark Zuckerberg, Steve Jobs, Larry Page, do Google, e outros mais.

Uma revisita à trajetória de um herói perseguido e arrependido não conscientizará esses executivos e fundadores, cheios de poder em mãos.

Oppenheimer

  • Quando Estreia nesta quinta (20) nos cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Cillian Murphy, Robert Downey Jr. e Emily Blunt
  • Produção Estados Unidos, 2023
  • Direção Christopher Nolan
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