Explosão do dólar na Argentina paralisa vendas e desnorteia brasileiros

Sem referência de preços, parte dos fornecedores retirou produtos de circulação à espera de estabilização

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Buenos Aires

"Já não vale a pena vir trabalhar", diz o taxista Ezequiel Donandueno, 40, um dos poucos que sobraram no aeroporto de Buenos Aires na noite desta quarta-feira (16). Enquanto dirige por uma das zonas turísticas da capital argentina, ele explica por que o tempo de espera por um carro foi mais longo que o habitual.

"Somos em 25 motoristas, mas não sei quantos virão hoje; os da noite, ninguém chegou", afirma. É que os valores das corridas, fixados pela empresa de transporte no mês passado, quase não cobrem mais os custos de rodar. "Esse trajeto saiu por 5.500 pesos, mas já deveria estar custando mais de 7.300", calcula Ezequiel.

Homem olha para a câmera em frente a caixa de sua loja, com fones e eletrônicos atrás
Leandro Muñoz, 44, dono de uma loja de eletrônicos em Buenos Aires, diz que fornecedores pararam de vender na segunda-feira (14), até remarcarem os preços - Júlia Barbon/Folhapress

Uma explosão do dólar após as eleições primárias do país no domingo (13), com a surpresa do êxito do ultraliberal Javier Milei e medidas aplicadas pelo governo, deixou os argentinos sem referência para o aumento dos produtos e serviços. À espera de uma estabilização, parte dos fornecedores paralisou as vendas e parte dos consumidores suspendeu as compras, inclusive em postos de gasolina.

Se a moeda estrangeira equivalia a 605 pesos na sexta (11), passou a corresponder a 780 nesta quarta (16) na cotação paralela, que lastreia os preços no país —uma desvalorização do peso de quase 30% em apenas cinco dias. Isso desnorteou também os brasileiros que vivem ou estão turistando pelo país, já que a cotação em reais sobe na mesma proporção.

"Vou ter que trocar o dinheiro de pouquinho em pouquinho, senão vou perder muito", diz a engenheira Fernanda Neves, 51, esperando um táxi no aeroporto ao lado das duas filhas. "Já vim outras vezes, mas não estava desse jeito", afirma ela, que já contatou uma casa de câmbio paralela indicada por um amigo de um amigo.

Até a advogada Jéssica Gonçalves, 29, que mora na Argentina há nove meses, se assustou, apesar de estar acostumada a enviar quantias semanais do Brasil para que as cédulas não se desvalorizem: "Mandei um valor na terça pela Western Union, rendendo 118 pesos por cada real, e na quarta já estava em 128, ou seja, perdi muito", conta.

Ela também teve a compra de duas cadeiras cancelada por uma loja de móveis. "Na segunda-feira eles me mandaram mensagem falando que estavam suspendendo os pedidos por dois dias. Depois avisaram que o preço mudou e perguntaram se eu queria manter a compra". Foi o que muitos fornecedores fizeram na última semana, mesmo já habituados à volatilidade da moeda.

"Os meus pararam na segunda, e na terça começaram a enviar as listas de preços atualizados", diz o comerciante Leandro Muñoz, 44, dono de uma loja de eletrônicos que subiu os valores em 30% em quatro dias, às vésperas do Dia das Crianças no país. "Se você não é bom de matemática na Argentina, você quebra", resume, sorrindo.

Já os restaurantes e outros setores de alimentos não têm opção: precisam vender, ou a mercadoria estraga. Enquanto corta uma posta de salmão, Ariel Guevara, 37, conta que aumentou os preços em 20%, assim que os pesqueiros repassaram a alta. "Alguns clientes se queixam, mas a maioria já está acostumada", diz.

O peixeiro Ariel Guevara, 37, diz que teve que subir os preços em 20% em quatro dias - Júlia Barbon/Folhapress

A disparada do dólar nesta semana tem a ver com o profundo clima de incerteza causado pelo bom desempenho de Milei nas urnas. Declarando-se um anarcocapitalista, o candidato tem propostas tão radicais que é difícil prever seus efeitos, como a dolarização da economia e a eliminação do Banco Central.

A explosão do câmbio passa ainda por uma decisão tomada pelo ministro da Economia e também candidato peronista, Sergio Massa. No dia seguinte à votação (a pior do peronismo em 12 anos), ele levou a cabo um aumento do dólar oficial que antes estava segurando, pressionado pelo credor FMI (Fundo Monetário Internacional).

Essa cotação, usada em transações comerciais e oficiais, saltou 22% de uma vez, indo de 300 a 366 pesos, e arrastou todas as demais. O Banco Central, ligado ao governo de Alberto Fernández, também elevou a taxa de juros de 97% para 118% ao ano (percentual próximo à inflação), numa tentativa de estimular investimentos em pesos.

Somando tudo isso, espera-se uma inflação de dois dígitos para agosto, nível altíssimo mesmo para os padrões argentinos atuais —em julho, o índice foi de 6,3%, uma leve alta em relação a junho. Para tentar frear esse movimento, o governo iniciou uma rodada de negociações com empresários a fim de congelar os preços em alguns setores.

Apesar do clima de incerteza, os bancos relataram uma situação de tranquilidade ao jornal argentino Clarín. Segundo as instituições, não houve uma corrida às agências para retirar pesos e dólares, como já ocorreu em outras situações de instabilidade, também porque parte das pessoas já havia feito esse movimento antes das primárias.

Elas queriam se garantir para qualquer cenário, mas provavelmente não imaginavam tal ascensão de Milei. O taxista do aeroporto, Ezequiel, porém, não faz relação entre a disparada do dólar e o resultado eleitoral. "Estamos como estamos por culpa do peronismo", diz ele, que votou no ultraliberal. "Sempre os mesmos me roubaram. Agora que me roube outro que eu não conheço."

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