Descrição de chapéu saneamento Sabesp

Quase metade do esgoto do Brasil é jogado na natureza sem ser tratado

Todos os dias, mais de 5.000 piscinas olímpicas cheias de rejeitos sanitários são despejadas nos rios e mares

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São Paulo

Apenas 51,2% de toda água que é consumida no Brasil recebe hoje o devido tratamento sanitário. O restante —quase metade do volume total— é jogado na natureza em forma de esgoto.

Isso significa que, todos os dias, mais de 5.000 piscinas olímpicas lotadas de rejeitos sanitários são despejadas nos rios e mares do país, contaminando praias, poluindo áreas urbanas e causando doenças na população.

É o que mostram dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), do governo federal, coletados pelo Instituto Trata Brasil. Desde 2021, a organização mantém em seu site um "esgotômetro", ferramenta inspirada no impostômetro que atualiza a quantidade de rejeitos sem tratamento no Brasil.

Do início do ano até esta quinta-feira (24), um volume de esgoto equivalente a 1.257.238 piscinas olímpicas foi jogado na natureza.

Esgoto e lixo sendo despejados no Tietê pelo córrego Tiquatira, na zona leste da capital paulista - Danilo Verpa -06.jul.23/Folhapress

De acordo com o SNIS, o país tem 92 milhões de pessoas sem conexão a redes de esgoto —cerca de 42% da população. No entanto, em alguns casos, a ausência de tratamento não chega a ser um problema de falta de coleta.

O município de Juiz de Fora (MG) ilustra bem essa situação. Quase toda a população da cidade (94,7%) tem acesso ao serviço, só que apenas 5,9% do esgoto produzido é manejado devidamente.

Na prática, isso significa que a grande maioria das residências está conectada à infraestrutura de saneamento, mas os dejetos são apenas afastados da área urbana, ou seja, despejados em outro lugar.

"Tem muitas cidades que coletam tudo e não tratam quase nada", afirma Luana Pretto, presidente do Instituto Trata Brasil.

Segundo ela, ainda há risco de que o volume total de esgoto tratado esteja superestimado. Isso porque há muita infiltração de chuva nas redes, fazendo com que a quantidade de água que chega às estações não seja apenas referente ao que foi consumido nas casas.

Para Gesner Oliveira, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e ex-presidente da Sabesp, o cenário de saneamento do Brasil tem lacunas maiores que o esperado para um país emergente.

"Para o nosso nível de desenvolvimento, já deveríamos ter um avanço maior. Nosso atraso é muito grande", afirma.

Além de ser um problema de saúde pública, Pretto destaca que a falta de tratamento de esgoto compromete toda a base necessária para o país crescer.

"Sem saneamento, as pessoas ficam mais doentes, consequentemente, vemos uma menor produtividade —seja de crianças na escola ou de adultos no trabalho—, e isso faz com que a geração de renda dessas pessoas também seja inferior ao que se deseja", afirma.

Como costuma acontecer em outros indicadores, a qualidade do saneamento varia de forma significativa a depender da região do país. A realidade dos estados do Norte do país, por exemplo, é muito pior em comparação ao Sudeste.

A região Norte tem apenas 60% da população com acesso a água, e 14% com coleta e tratamento de esgoto. No Sudeste, 91,5% recebem atendimento de água e 81% têm serviço de coleta.

Segundo Pretto, a discrepância regional está diretamente relacionada ao volume de recursos destinados ao setor. Enquanto no Norte o investimento anual por habitante é de R$ 50, no Sudeste é quase o dobro: R$ 95.

A desigualdade é ainda mais marcante no nível municipal. A cidade de São Paulo, por exemplo, aplica R$ 182 para cada habitante. Já Rio Branco, no Acre, investe apenas R$ 2.

O raio-x do saneamento básico indica que o Brasil terá um caminho difícil para atingir as metas de universalização.

O marco legal do saneamento estabeleceu que até 2033, todos os municípios brasileiros devem atender a 99% da população com serviços de água potável e ao menos 90% dos habitantes com coleta e tratamento de esgoto.

A uma década do prazo final, algumas regiões estão muito distantes do objetivo. Rondônia, por exemplo, tem só 6% da população com acesso a coleta. Situação semelhante é vista nos estados do Acre e do Amazonas.

Segundo Pretto, o atingimento das metas do marco vai exigir uma mudança drástica no atual modelo de gestão. "Nós deveríamos estar investindo mais que o dobro dos valores atuais", diz Pretto.

Atualmente, o investimento médio do Brasil em saneamento é de R$ 20 bilhões por ano, sendo que o plano desenvolvido pelo Ministério das Cidades aponta para uma necessidade de R$ 44,8 bilhões.

"As metas são ambiciosas, mas não é uma viagem a Marte", diz Oliveira, destacando que dobrar os investimentos é algo possível. "As condições para que isso seja feito estão colocadas, mas será preciso muita prioridade do setor público. Há apetite do setor privado."

Atrair mais investimentos para o saneamento foi um dos objetivos do marco legal. De acordo com Pretto, a legislação buscou estimular novas formas de financiamento, sem necessariamente favorecer a iniciativa privada em detrimento do serviço estatal.

"Não existe isso de que o público é melhor ou o privado é melhor. Existe a capacidade de investimento e o grau de eficiência em cada caso. Temos empresas públicas muito boas hoje no Brasil, mas outras que precisam ser financiadas pelos estados por conta da ineficiência", afirma.

Ela menciona o exemplo de uma companhia municipal onde trabalhou, em Joinvile (SC), cujo objetivo do plano diretor era atingir a universalização em 2047. Com a aprovação do marco, o prazo precisou ser antecipado para 2033, e a empresa —que continuou sendo pública— buscou financiamento internacional para ter condições de bater a meta.

"Outras companhias não tinham a mesma saúde financeira para captar esses recursos. Às vezes estava com o grau de endividamento no limite, com parte da receita comprometida pela folha [de pagamento], energia elétrica... Essas companhias tiveram de buscar outras soluções, seja uma PPP [parceria público-privada] ou uma concessão total para garantir a universalização dos serviços", explica a presidente do Trata Brasil.

Segundo Oliveira, a precariedade do saneamento brasileiro pode ser atribuída a algumas causas. A primeira delas é a negligência histórica com o tema.

"Isso está associado a uma desvalorização, um menosprezo pelo espaço público e a supervalorização do espaço privado", afirma.

A segunda causa que ele aponta tem a ver com uma "economia política perversa do saneamento". Além da ideia de que construir tubos subterrâneos não dá voto, o especialista destaca que boa parte da população não reconhece o problema e, consequentemente, não cobra as autoridades por melhorias.

"A gravidade da falta desses serviços não é percebida. Não se faz uma associação entre falta de saneamento e falta de saúde, entre deslizamentos e ausência de infraestrutura de drenagem... Isso faz com que não haja muitos dividendos políticos para investir", afirma.

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