Compra de 55 mil Kit Kats japoneses acaba em fraude, golpe e demissão

Empresa cai duas vezes em golpe ao tentar transportar chocolates para os Estados Unidos

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Amelia Nierenberg
The New York Times

A longa, tortuosa e por vezes obscura jornada dos 55 mil chocolates da marca Kit Kat de Danny Taing teve início no Japão.

Taing é o fundador da Bokksu, empresa sediada em Nova York que comercializa caixas de guloseimas japonesas em sistema de assinatura. A venda desses chocolates nos Estados Unidos deveria lhe render uma quantia considerável.

A remessa de Kit Kats, que incluía sabores muito consumidos, como melão, matcha latte (chá verde) e daifuku mochi (bolinho de arroz recheado com algo doce como feijão doce, uva ou morango), custou US$ 110 mil. Taing esperava um faturamento total de cerca de US$ 250 mil. "Dá para acomodar uma grande quantidade de Kit Kats em dois contêineres", observou Taing.

Caixas com exemplares limitados de chocolate da marca Kit Kat, que são fabricados no Japão
Compra de chocolates raros da marca Kit Kat termina nas mãos de golpistas do frete - Adam Amengual/The New York Times

E esse chocolate é um negócio em expansão. No Japão, os entusiastas disputam os sabores mais raros, alguns disponíveis apenas por algumas semanas ou só em regiões específicas. Nos Estados Unidos, os aficionados se empolgam com os itens colecionáveis, comparando avaliações em blogs dedicados a guloseimas japonesas e comprando edições limitadas.

Esses Kit Kats em particular se tornaram protagonistas de uma saga frustrante, com direito a contas de email falsas, caminhoneiros fantasmas, fraudes na cadeia de suprimentos e um corretor de frete de carga profundamente desorientado.

Entrevistas e emails compartilhados com o New York Times narram a história de apenas um caso de "roubo estratégico", nicho em expansão no mundo do crime que, segundo o FBI, é responsável por prejuízos de cerca de US$ 30 bilhões por ano.

Os valiosos doces chegaram em segurança à Califórnia e percorreram 40 quilômetros de caminhão pelo condado de Los Angeles até um depósito temporário em South El Monte, administrado por uma empresa chamada Japan Crate Acquisition.

Depois de atravessar o Oceano Pacífico, eles só precisavam percorrer a última etapa de sua jornada até o depósito da Bokksu em Nova Jersey (EUA), para depois chegar às mãos dos ávidos fãs de doces.

Foi então que Shane Black entrou em cena.

Corretor de fretes em Sarasota, na Flórida (EUA), Black integra um exército invisível de profissionais que coordenam e dirigem frotas de caminhões que cruzam o país transportando de tudo, desde galinhas até smartphones. Por esse trabalho, a Bokksu concordou em lhe pagar cerca de US$ 13 mil.

Sem hesitar, ele começou a agir. Anunciou o trabalho em um fórum de caminhoneiros que funciona como uma rede de classificados gratuitos para fretes. Uma pessoa chamada Tristan, da HCH Trucking, aceitou o trabalho (embora estivesse usando uma conta do Gmail) e disse que a carga seria retirada em breve.

Danny Taing é dono da Bokksu, empresa que fez a encomenda dos 55 mil Kit Kats raros
Danny Taing é dono da Bokksu, empresa que fez a encomenda dos 55 mil Kit Kats raros - Kosuke Okahara/The New York Times

Calcule o que falta para sua independência financeira

Em 9 de agosto, Tristan informou por email: "Ei, cara, o primeiro está carregado e na estrada; vamos buscar o segundo amanhã, logo de manhã."

"Não havia nada fora do comum", comentou Black em entrevista.

Mas tudo mudou....

Quando as remessas não chegaram a Nova Jersey, dias depois do prazo razoável para o término de qualquer viagem pelo país, Black começou a imaginar os Kit Kats derretidos escorrendo para fora dos caminhões sob o calor do verão. Enviou um e-mail a Tristan: "Por favor, me diga que a carga está em boas condições e ficou refrigerada durante todo esse tempo!"

Tristan respondeu que um dos caminhões havia quebrado em Washington, na Pensilvânia, cidade pequena às margens da Rodovia Interestadual 70, a sudoeste de Pittsburgh (EUA). Garantiu a Black que os Kit Kats estavam frescos e intactos, mas ponderou: "Se o caminhão não for consertado até hoje, teremos de voltar para o transportador e descarregá-los de novo lá."

Isso foi um alerta vermelho para Black. Se o caminhão estava em condições de percorrer os 3.800 quilômetros de volta à Califórnia, por que não conseguiria cobrir os menos de 650 quilômetros até a Bokksu, em Nova Jersey? Diante disso, Black entrou em contato com a HCH Trucking. "Foi então que a coisa começou a desandar", disse ele.

Durante a ligação para a sede da HCH em Jersey City, Nova Jersey, Black pôde ouvir sons caóticos de pânico ao fundo. O representante lhe disse que as informações da empresa pareciam ter sido corrompidas. Ele nunca tinha ouvido falar de nenhum Tristan.

Se não era com a HCH Trucking, com quem Black estava lidando? E o mais importante: onde estava o caríssimo carregamento de Kit Kats?

Bem nesse momento, Tristan respondeu: "Está na hora de abrir o jogo. Na verdade, sou um golpista, e o proprietário da HCH não tem nada a ver com isso", ele confessou.

O mais curioso é que Black nunca havia pagado nada a Tristan; a taxa de remessa seria paga na entrega. De qualquer forma, Tristan forneceu o endereço de dois armazéns refrigerados, ambos a leste de Los Angeles, onde havia deixado a carga. Black não conseguia acreditar em sua sorte. "Quando descobri que os chocolates estavam em um armazém refrigerado, fiquei muito feliz, porque pensei que tinha recuperado o carregamento", afirmou.

Telefone fora de serviço

Imediatamente, Black voltou à ação. Segundo Tristan, uma das cargas se encontrava no depósito frigorífico Inland Empire, em Jurupa Valley, na Califórnia. O outro estava nas proximidades, no Anytime Crossdock, em Ontário, na Califórnia. Depois de fornecer essas informações, Tristan se calou e não respondeu aos diversos emails do The New York Times pedindo comentário.

O depósito Anytime Crossdock estava ansioso para retirar a carga de seu armazém e receber o pagamento pelas quase duas semanas de armazenamento, cujo custo era de US$ 3.830. Black conta que pagou US$ 2.000 do próprio bolso para garantir a liberação da carga, comprometendo-se a quitar o restante mais tarde. O Anytime Crossdock não respondeu aos vários pedidos de comentário feitos pela reportagem.

Aturdido, porém determinado, ele reiniciou o processo, anunciando o trabalho novamente no fórum de fretes. Afirmou ter recebido, dessa vez, uma proposta de Manny, da MVK Transport.

Shane Black, que trabalha com frete de cargas, observa imagens em três telas de transporte de cargas
Shane Black ficou responsável pelo frete dos 55 mil Kit Kats, mas foi enganado por golpistas - Octavio Jones/The New York Times

Conforme o relato de Black, Manny providenciou a coleta dos Kit Kats. Pelo menos essa metade do carregamento estava a caminho de Nova Jersey —ou era isso que Black pensava. Depois de alguns dias, as comunicações se tornaram irregulares. "Faz dias que estou lhe mandando mensagens. Liguei ontem e você desligou, e agora seu telefone diz que está fora de serviço", escreveu Black em um email, dias depois.

Na manhã seguinte, enviou outra mensagem, agora furioso: "Como você pretende ganhar dinheiro com isso??? Vendendo Kit Kats na esquina???"

Fora enganado de novo. Dessa vez, os Kit Kats haviam desaparecido para sempre na imensidão das rodovias do sul da Califórnia. Os pedidos de comentário enviados à MVK ficaram sem resposta.

Não podemos liberar a carga

Pelo menos a outra metade do carregamento de Kit Kats ainda estava no depósito frigorífico Inland Empire, e Black, agora desesperado para salvar o que pudesse dos chocolates, continuou correndo atrás dos produtos.

"Essa carga foi roubada de nós e armazenada em seu depósito", escreveu ele ao Inland Empire em 21 de agosto. A empresa respondeu que seu contrato era com um homem chamado Harry Centa.

Black explicou que não havia nenhum Harry, acrescentando que a Bokksu, copiada no email, era a proprietária legítima da mercadoria: "Harry é um nome fictício."

Acontece que Harry Centa não é um nome fictício. Ele reside em Ohio e trabalha com transporte de cargas. Entretanto, toda a história envolvendo os Kit Kats era novidade para ele. "Isso é uma fraude total, e não estou envolvido. Boa sorte, e espero que encontrem os Kit Kats kkk", disse Centa por email à reportagem.

Mesmo assim, a decisão do Inland Empire foi categórica: "Sem comprovação de que você é o legítimo proprietário, e sem o pagamento pelo armazenamento, não podemos liberar a carga."

Black contatou as delegacias dos condados de Riverside e San Bernardino, mas foi informado de que não poderiam intervir por conta de questões de jurisdição. Nenhum boletim de ocorrência foi registrado.

Ele também procurou a equipe da Bokksu, em busca de algo que pudesse comprovar sua titularidade da carga.

Mas, nesse meio-tempo, a Bokksu havia dispensado Black, suspendido o pagamento de seus honorários, registrado um boletim de ocorrência na delegacia do condado de Los Angeles, para fins de seguro, e decidido ir em frente. Para a Bokksu, os Kit Kats estavam mortos.

Pátio da Inland Empire, que faz transporte de cargas no estado da Califórnia, nos Estados Unidos
Pátio da Inland Empire, que faz transporte de cargas no estado da Califórnia, nos Estados Unidos - Adam Amengual/The New York Times

Um jogo de xadrez

Os Kit Kats da Bokksu são apenas um exemplo de uma modalidade de fraude eletrônica cada vez mais comum, que alguns especialistas chamam de "coletas fictícias" ou "roubo estratégico". Esse golpe combina elementos de roubo de identidade e extorsão. A mercadoria, às vezes chamada de "carga refém", pode acabar desaparecendo caso as exigências da extorsão não sejam atendidas.

"Quanto mais fundo você cava, mais sujeira encontra", comentou Keith Lewis, vice-presidente de operações da CargoNet, que faz parte da Verisk, fornecedora global de tecnologia e análise de dados. Segundo ele, houve um aumento de 700% nos roubos estratégicos de cargas este ano.

A Bokksu responsabiliza Black pelo incidente. Na visão da empresa, ele caiu em um golpe óbvio, e os endereços do Gmail deveriam ter sido um sinal de alerta.

Em sua defesa, Black alega que os caminhoneiros nem sempre usam domínios comerciais. Por fim, ele culpa a Japan Crate Acquisition, que inicialmente liberou os Kit Kats para o suposto "Tristan". "Claramente, a mercadoria não foi carregada em um caminhão da HCH, e o responsável pelo carregamento deveria ter desconfiado", afirmou Black.

Nessa que talvez seja a reviravolta mais estranha na saga dos Kit Kats, a Bokksu anunciou em setembro a compra da Japan Crate. Mas o The New York Times descobriu que a aquisição havia sido concluída em junho. Assim, a Bokksu, por meio de uma subsidiária integral, efetivamente supervisionou o carregamento dos próprios Kit Kats nos dois caminhões fraudulentos.

"Trabalho nesse ramo há mais de duas décadas e nunca me deparei com algo assim, dessa magnitude. É realmente muito louco, porque não há explicação. Eu me sinto enganado— só não sei quem foi que me enganou", disse Black.

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