Pacto migratório é aprovado na ONU após sofrer baixas e levar a renúncia de premiê

Inicialmente reprovado só pelos EUA, acordo perdeu apoio e acabou aprovado por 152 países

Manifestantes contrários ao Pacto de Migração durante protesto em Bruxelas - Jonas Roosens - 16.dez.2018/AFP
Flávia Mantovani
São Paulo

Apresentado em julho com oposição apenas dos Estados Unidos, o Pacto Mundial para a Migração foi aprovado nesta quarta-feira (19) pela Assembleia Geral da ONU após sofrer baixas pelo caminho e levar à renúncia de um premiê nesta semana.

O Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular, o primeiro a nível regional para administrar os fluxos migratórios, traça 23 objetivos sobre o tema, em um momento em que a quantidade de migrantes aumentou para mais de 250 milhões no mundo.

O documento não é legalmente vinculante, ou seja, os países não são obrigados a seguirem suas regras, mas apresenta recomendações e boas práticas a serem seguidas pelos países signatários.

Na votação desta quarta, o acordo foi ratificado com 152 votos a favor, 5 contra (Estados Unidos, Hungria, República Tcheca, Polônia e Israel) e 12 abstenções (Argélia, Austrália, Áustria, Bulgária, Chile, Itália, Letônia, Líbia, Liechtenstein, Romênia, Singapura e Suíça). Além disso, 24 países não votaram.

Anúncio do Pacto Global de Migração, em Marrakech, com a presença do secretário-geral da ONU, Antonio Gutierrez (2º da esq. p/ a dir.) - Fadel Senna - 10.dez.2018/AFP

Na conferência intergovernamental sobre o documento realizada no Marrocos nos dias 10 e 11 de dezembro, 164 países estiveram de acordo.

O Brasil está entre os que votaram a favor. Autor da nova lei de migração brasileira, o atual ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, defendeu o pacto em Marrakech e o potencial da migração para fortalecer a economia dos países de destino.

Seu sucessor, no entanto, o futuro chanceler Ernesto Araújo, afirmou as redes sociais que o governo de Jair Bolsonaro  deverá se desassociar do pacto. Araújo qualificou a medida de "inadequada" para lidar com o problema e disse que a imigração deve ser tratada não como questão global, mas "de acordo com a realidade e a soberania de cada país".

O pacto gerou polêmica em países da União Europeia e recebeu críticas especialmente de governos nacionalistas de direita, que temem que ele poderia aumentar a imigração vinda países africanos e árabes.

Na Bélgica, o apoio do premiê Charles Michel ao acordo fez o maior partido do Parlamento, o N-VA (Nova Aliança Flamenga), anunciar sua saída da coalizão governista por discordar da participação do país no pacto. 

Após o desgaste, nesta terça (18), Michel anunciou sua renúncia na Câmara dos Deputados, destacando que a Casa não ouviu seu apelo a permanecer no cargo. Apesar da saída, ele deverá se manter no cargo em um governo de minoria até as próximas eleições, marcadas para maio de 2019.

A elaboração do texto foi defendida por diversos líderes, incluindo a chanceler alemã Angela Merkel e o ex-presidente dos EUA Barack Obama. Mas seu sucessor, Donald Trump, sempre se manteve crítico a ele.

Segundo fontes diplomáticas citadas pela France Presse, os Estados Unidos buscaram até o último momento que outros países não apoiassem o acordo.

A Hungria do ultranacionalista Viktor Orbán se retirou do pacto no dia 18 de julho, dias após ele ser apresentado, por considerar que o pacto é uma “ameaça para o mundo” e que a migração é um processo “desfavorável e perigoso”.

Charles Michel, premiê da Bélgica que renunciou nesta terça-feira (18) - Jonathan Nackstrand - 17.nov.2017/AFP

Em novembro, o governo da Áustria afirmou que iria se retirar, dizendo que o acordo poderia obscurecer a linha entre migração legal e ilegal.

A Austrália também disse que não assinaria o documento porque ele comprometeria sua política de migração e colocaria em risco a segurança nacional.

Um dia antes da conferência de Marrakech, o Chile anunciou que não iria participar do evento porque pontos do documento “não se aplicam” à política de imigração chilena.

Para o subsecretário de Interior do Chile, Rodrigo Ubilla, o país, que recebeu nos últimos anos 155 mil haitianos e 200 mil venezuelanos, considera o texto do pacto “uma espécie de camisa de força” em relação à política de imigração de cada nação.

Em uma resposta a esses países, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou na abertura do encontro no Marrocos que pretende combater as "mentiras e mitos" que envolvem o acordo. "Não devemos sucumbir ao medo", ​disse ele.  ​

De acordo com o secretário-geral, o pacto não permitirá que a ONU imponha políticas de migração aos Estados.

No último dia 16, o papa Francisco expressou apoio ao pacto, apelando à comunidade internacional a trabalhar "com responsabilidade, solidariedade e compaixão" em relação aos migrantes.

Pesquisador do Instituto de Guerra e Paz da Universidade Columbia de Nova York e doutorando em Ciência Política pela USP,  Gustavo Macedo observa que os países contrários ao pacto são “muito poucos” em comparação com o total dos que o aprovaram. “A Rússia entrou, a China, a Índia, a Turquia, que é um dos países que mais recebem refugiados também”, lembra.

Segundo ele, alguns dos governos que se retiraram querem “emprestar a credibilidade de outros países”, como os EUA. “Trump foi eleito com um discurso contrário às migrações. É fundamental para seu discurso populista que ele tenha uma agenda testa de ferro. Saindo do pacto global, ele faz barulho”, diz.

Para Macedo, além de não ser vinculante, o pacto traz “o básico do aceitável” em relação aos direitos dos migrantes e é fundamental para rever uma ultrapassada legislação internacional sobre esse tema. “É um pacto de intenções, que aponta para um direcionamento de futuras negociações”, afirma.

​Os objetivos do pacto preveem, por exemplo, que o migrante que estiver irregular no país não poderá ser deportado imediatamente —terá o caso analisado individualmente. O texto diz ainda que ele terá acesso a justiça, saúde, educação e informação.

O documento proíbe também deportações coletivas e discriminação na análise sobre a permanência ou não do migrante no país.

E recomenda que a detenção de migrantes seja o último recurso, e que, se necessária, a pessoa fique o menor tempo possível detida. Os países também vão analisar dados e benefícios da migração e a contribuição dos migrantes ao desenvolvimento sustentável.

Pelas estimativas da ONU, há mais de 258 milhões de imigrantes no mundo, e esse número deve continuar crescendo nos próximos anos. Desde 2000, pelo menos 60 mil deles morreram na tentativa de entrar em outro país.

Cronologia

13.jul.2018: Texto do pacto é aprovado por 192 países (apenas EUA ficam de fora)

18.jul: Hungria se retira do acordo por considerar que é "perigoso para o mundo"

Out: Áustria, República Tcheca e Croácia dizem que não vão assinar pacto

Nov: Polônia e Israel anunciam que se retiram do acordo

9.dez: Chile critica documento e anuncia que não irá à conferência para sua adoção

10 e 11.dez: Na conferência intergovernamental para a adoção do pacto, em Marrakech, 164 países, inclusive o Brasil, aderem ao documento

10.dez: O futuro chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, diz que governo Bolsonaro deixará o pacto

16.dez: Papa Francisco expressa apoio ao documento

18.dez: Premiê belga, Charles Michel, renuncia após perder apoio de ministros contrários ao pacto

19.dez: Pacto é aprovado formalmente na Assembleia Geral da ONU, com 152 votos a favor, 5contrários e 12 abstenções

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