Descrição de chapéu The Washington Post

'Romeu e Julieta' indianos desafiam sistema de castas no país

Homens e mulheres são assassinados por se casarem fora de ordem social definida pelo nascimento

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Joanna Slater
Miryalagua (Índia) | Washington Post

Eles eram jovens, encantadores e apaixonados como num sonho.

Pranay Perumalla entrou no salão do casamento com um terno azul-escuro, o rosto iluminado por um sorriso e segurando pela mão sua noiva, Amrutha Varshini. O casal passou enormes guirlandas de flores em volta do pescoço um do outro e parentes jogaram grãos de arroz amarelo que se prenderam em seus cabelos escuros.

Mas mesmo enquanto celebravam eles já corriam perigo.

Casamento do jovem casal indiano Pranay Perumalla e Amrutha Varshini - Reprodução

Numa tarde ensolarada menos de um mês depois, o casal saiu de uma consulta médica na pequena cidade no sul da Índia onde cresceram.

Um homem se aproximou por trás deles com uma grande faca de açougueiro na mão direita. Ele acertou Pranay duas vezes, na cabeça e no pescoço, matando-o instantaneamente.

Pranay, 23, era um "dalit", termo usado para descrever pessoas que antes eram conhecidas como "intocáveis". 

Amrutha, 21, pertence a uma casta superior. Sua família rica e poderosa via a união do casal como uma humilhação inaceitável. Seu pai, T. Maruthi Rao, ficou tão enfurecido que contratou assassinos para matar o genro, segundo registros policiais.

Embora a sociedade indiana esteja mudando, não o faz com rapidez suficiente para casais como Amrutha e Pranay, cujo casamento desafiou um antigo sistema de discriminação e hierarquia.

Mesmo com a Índia tirando milhões da pobreza, aumentando as taxas de educação e construindo uma das economias que mais crescem no mundo, a influência das castas —uma ordem social enraizada nas escrituras hindus e baseada em uma identidade determinada pelo nascimento— permanece generalizada.

Esse sistema é ainda mais forte no casamento. Um estudo de 2017 revelou que apenas 5,8% dos casamentos indianos são entre pessoas de castas diferentes, porcentagem que pouco mudou em quatro décadas.

Os resultados surpreenderam os pesquisadores, que esperavam ver "mais mistura entre as diferentes castas", disse o estatístico Tridip Ray, principal autor do estudo. "Infelizmente, isso não está acontecendo."

Na Índia, transgredir tais fronteiras às vezes provoca violência. Desde o final de junho, houve relatos de assassinatos de homens e mulheres que se casaram fora de suas castas nos Estados de Gujarat, Tamil Nadu, Madhya Pradesh e Andhra Pradesh.

A filha de um político do partido governante da Índia publicou recentemente um vídeo nas redes sociais buscando proteção de seu pai depois que ela se casou com um homem dalit contra a vontade de sua família.

Tais represálias violentas são "praticadas em nome da tradição e da honra", disse Uma Chakravarti, renomada historiadora e especialista em castas e gêneros.

Mas os motivos são muito mais profundos, disse. Se uma mulher pode escolher com quem quer se casar —incluindo um homem dalit—, ela "desestabiliza todo o sistema" que perpetua a desigualdade.

Casamento do jovem casal indiano Pranay Perumalla e Amrutha Varshini - Reprodução

Um amor proibido

Em uma manhã recente, Amrutha —uma jovem magra, com rosto em forma de coração—  estava sentada na sala de estar da casa onde mora com os pais de Pranay.

Ao lado dela havia uma tela mostrando imagens de câmeras de circuito fechado: a porta da frente, a rua, a esquina onde uma grande mangueira se ergue sobre a casa. Seu filho gorducho de 6 meses, com o mesmo sorriso do pai, estava em seu colo.

A casa fica perto do limite de um bairro dalit e representa a estabilidade da classe média conquistada pelo pai de Pranay, Balaswamy, que trabalhou como balconista na Life Insurance Corporation da Índia nas últimas três décadas. 

Amrutha cresceu a cinco minutos de carro dali, em um grande prédio de propriedade de seu pai, rico empreendedor imobiliário nesta cidade de 100 mil habitantes cercada por moinhos de arroz, no Estado de Telangana.

Os dalits, que representam quase 17% da população indiana, de mais de 1,3 bilhão, estão na base da hierarquia de castas da Índia. Após séculos de subjugação, eles invadiram a política, o ensino superior e os negócios, em parte por meio da ação afirmativa.

Mas, como mostra a história de Pranay e Amrutha, um mínimo de mobilidade ascendente não significa que eles possam se casar com quem escolherem ou viver onde quiserem.

Eles continuam a fazer o trabalho mais estigmatizado e perigoso da Índia. Enfrentam discriminação no mercado de trabalho e enormes obstáculos para possuir terras.

A Índia "deu um voto a cada pessoa", disse Paul Divakar, secretário-geral da Campanha Nacional sobre Direitos Humanos Dalit. Mas não "deu a cada ser humano o mesmo valor".

Quando Amrutha começou o ensino médio, seus pais lhe disseram para não fazer amizade com meninas de castas mais baixas, particularmente dalits, que são oficialmente chamadas de Castas Programadas.

A família de Amrutha é Arya Vysya, grupo que faz parte da casta komati, tradicionalmente uma comunidade comercial.

As complexidades do sistema de castas indiano estavam longe da mente de Amrutha quando ela foi assistir a um filme com um grupo de amigos da nona série.

Ela reconheceu Pranay, jovial e atlético, da escola, onde ele estava um ano à sua frente. Depois começaram a trocar mensagens e conversas por telefone.

Sua amizade crescente teve consequências imediatas. Quando o pai de Amrutha descobriu, disse a jovem, bateu nela pela primeira vez —mas não pela última.

Ele tomou seu celular e laptop e mudou-a para uma escola diferente. Nos seis anos seguintes, Amrutha e Pranay se encontrariam apenas brevemente em algumas ocasiões.

Para o pai de Amrutha, o casamento de sua única filha era uma obsessão. "Eu posso até casar você com um mendigo que pertença a uma casta superior", Amrutha lembra-se dele lhe dizendo. "Mas não quero que você se case com alguém de uma casta inferior, seja lá quem for."

Quando os dois estavam na faculdade —Pranay cursando engenharia e Amrutha, moda—, ela ficou com medo de que seus pais manobrassem para casá-la com outra pessoa. Ela disse a Pranay que queria fugir.

Em 30 de janeiro de 2018, quando sua mãe foi descansar à tarde, Amrutha pegou uma mochila que tinha preparado. Continha um vestido de cor creme que ela ganhara de aniversário, seus certificados escolares e sua carteira de identidade. Ela desceu as escadas para a rua, onde Pranay estava esperando, como havia prometido.

Um assassino brutal

Amrutha e Pranay estavam com medo, mas tinham um plano. Enviaram seus pedidos de passaportes e estudaram para um teste de proficiência em inglês.

Pretendiam ir para a Austrália e talvez realizar o sonho de Pranay de começar um negócio —um estúdio de moda ou até mesmo uma fazenda de gado leiteiro.

O casal havia se casado na presença de apenas alguns amigos em um templo em Hyderabad, dirigido pelo Arya Samaj, grupo reformista hindu conhecido por sua abertura à união entre castas.

Cerca de cinco meses depois, Amrutha descobriu que estava grávida, então adiaram a ideia de sair de casa. Eles também decidiram organizar uma recepção para celebrar seu casamento.

Centenas de pessoas participaram das festividades em 17 de agosto de 2018, mas os pais de Amrutha estavam notavelmente ausentes. Rao, seu pai, já havia começado a planejar o assassinato de Pranay, segundo documentos judiciais.

No mês anterior, ele concordou em pagar US$ 150 mil para que seu genro fosse morto, usando um líder político local como intermediário. 

Rao, 57, passou uma foto do casal, do convite para a festa, para facilitar a identificação dos Pranay, afirmam os documentos.

Em 14 de setembro, Amrutha, Pranay e sua mãe, Premalatha, estavam deixando o hospital Jyothi após uma consulta com o obstetra de Amrutha. Em um vídeo capturado por uma câmera de circuito fechado, o casal parecia relaxado enquanto conversava e caminhava em direção à rua.

O assassino se aproximou por trás deles e deu dois golpes de facão. O vídeo mostra Amrutha levantando as mãos à cabeça em choque e confusão, depois correndo, chorando, de volta ao hospital em busca de ajuda.

Antes de desmaiar, ligou para o pai. "Alguém atacou Pranay", disse ela. "O que você fez?"

Uma comunidade que dá apoio

O assassinato dividiu Miryalaguda. Centenas de pessoas, na maioria dalits, chegaram à casa da família de Pranay após sua morte para oferecer apoio. Eles discutiram a instalação de uma pequena estátua do jovem em sua memória.

Mas outros aderiram à causa do pai de Amrutha. "O assassinato aconteceu porque o amor deles começou quando estavam na nona série, e ele foi morto porque o amor deles não foi aprovado", disse Bhupathi Raju, presidente honorário da Associação Arya Vysya, na cidade vizinha de Nalgonda.

Ele formou uma Associação de Proteção aos Pais e reuniu centenas de pessoas para visitar Rao enquanto ele estava na prisão.

Um advogado em Miryalaguda, Shyam Sunder Chilukuri, formou seu próprio grupo similar.

"Este é um incidente em que um sujeito de [Casta Programada] a intimidou e se casou com ela", disse ele. "Há uma chance de que outras filhas de pessoas abastadas sejam presas em nome do amor" pelo que ele chamou de "malfeitores".

Chilukuri disse que seu grupo não foi formado para apoiar o pai de Amrutha. Ele parou por um momento.

"Você quer conhecê-lo?" Ele pegou seu telefone e ligou para Rao, que está sob fiança até o início do julgamento, que deve começar em setembro.

O pai de Amrutha estava na esquina perto de um pequeno café. Um homem baixo e barrigudo, de bigode e óculos de aro dourado, Rao sentou-se brevemente com o repórter em uma pequena mesa de plástico, mas se recusou a falar oficialmente, citando conselho jurídico.

Seu advogado, Ravinder Reddy, recusou-se a comentar. No principal documento de acusação, de 56 páginas, a polícia cita evidências esmagadoras ligando Rao ao assassinato e disse que ele confessou o crime em 30 de setembro.

A.V. Ranganath, superintendente de polícia do distrito de Nalgonda, disse que o político que atuou como intermediário entre Rao e os assassinos inadvertidamente ativou o recurso de gravação automática de chamadas em seu telefone Android. Essas gravações serão "bastante úteis" no tribunal, disse Ranganath.

O pai de Pranay, Balaswamy, 53, disse que a família quer ver Rao punido para impedir futuros assassinatos.

Enquanto ele falava, embalava o neto Nihan no braço, segurando o queixo do bebê com uma das mãos para dar um beijo afetuoso em sua bochecha. Balaswamy pode ser visto usando exatamente o mesmo gesto para Pranay em um vídeo feito durante o casamento de seu filho há menos de um ano.

Quando chegou a hora de o bebê do casal nascer, a família decidiu que, por razões de segurança, era melhor ir a um hospital em Hyderabad, cidade grande a três horas de distância.

Mas quando a família procurou um apartamento temporário lá, disse Balaswamy, vários proprietários se recusaram a alugar para eles ao saber que eram dalits. A discriminação de castas é algo que "enfrentamos habitualmente", disse ele.

Amrutha diz que hoje é como se os pais de Pranay fossem os dela. "Meu pai foi o motivo da morte dele", disse ela. Mas os pais de Pranay "sabem como nos amávamos".​

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