Superlotação em prisões de Idaho expõe encarceramento em massa nos EUA

Taxa de detenções a cada 100 mil habitantes, uma das maiores do país, é mais que o dobro da do Brasil

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São Paulo

Cinquenta dias antes da eleição americana, a Folha começou a publicar a série de reportagens “50 estados, 50 problemas”, que se debruça sobre questões estruturais dos EUA e presentes na campanha eleitoral que decidirá se Donald Trump continua na Casa Branca ou se entrega a Presidência a Joe Biden.

Até 3 de novembro, dia da votação, os 50 estados do país serão o ponto de partida para analisar que problemas o próximo —ou o mesmo— líder americano terá de lidar.

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No próximo dia 30 termina o contrato de dois anos firmado entre o departamento penitenciário de Idaho, no noroeste dos EUA, e um presídio privado no Texas, a mais de 2.000 quilômetros de distância, para onde foram transferidos 651 presos que não cabiam nas instituições de correção do estado.

Com uma das taxas de encarceramento mais altas do país —734 presos por 100 mil habitantes, mais que o dobro da do Brasil—, Idaho não conseguiu solucionar a superlotação de seu sistema prisional. E o jeito foi contratar mais de 1.000 vagas, agora em outra penitenciária privada, no Arizona.

Para o diretor do departamento penitenciário de Idaho, Josh Tewalt, a contratação de vagas em presídios de outros estados não pode ser chamada de plano ou estratégia, mas de medida emergencial.

Policiais na cidade de Boise, no estado de Idaho, do lado de Lincoln Auditorium
Policiais na cidade de Boise, no estado de Idaho, do lado do Lincoln Auditorium - Brian Myrick - 25.ago.20/Idaho Press via Reuters

"É matemática", disse ele a uma TV local. "A capacidade do sistema carcerário do estado não acompanhou o crescimento da população prisional, mas a intenção do governo agora é reduzir a demanda nas prisões e, ao mesmo tempo, fazer ajustes estruturais para trazer essas pessoas de volta para o estado."

A população prisional de Idaho quintuplicou no últimos 35 anos, apesar de os índices de criminalidade estarem em queda há 25 anos, seguindo uma tendência nacional.

Nos EUA, ao longo dos mesmos 35 anos, a população prisional pouco mais que triplicou. E, ainda que venha baixando desde 2010, a cifra mantém o país como aquele que mais prende e que tem maior população atrás das grades do mundo —2,3 milhões de pessoas—, seguido de China e Brasil.

"Após atingir o pico da superpopulação entre 2009 e 2010, o sistema prisional norte-americano passou a focar a implementação de programas de penas alternativas, além da redução e da substituição de penas nos casos de infrações menos graves da lei de drogas", explica a advogada Robin Long, diretora legal do Innocence Project Idaho, projeto que busca provar a inocência de pessoas presas injustamente.

"Infelizmente, esse mesmo movimento não ocorreu com a mesma intensidade em Idaho."

Ali, mais de um terço (35%) dos presos foi condenado por infrações das leis de drogas, que tiveram sentenças mínimas obrigatórias instituídas em 1992. Em 2019, primeiro ano do republicano Brad Little como governador de Idaho, 35% dos novos detentos haviam sido enquadrados por posse —e não tráfico— de drogas.

"A história da guerra às drogas liderada pelos EUA e o encarceramento em massa estão intimamente ligados", explica o cientista político Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, especializado em segurança.

Essas ligações começaram na administração do presidente Richard Nixon, que declarou guerra às drogas em 1971, e foi encampada por Ronald Reagan, cujos mandatos viram a população carcerária americana dobrar.

"A guerra contra as drogas e as políticas de encarceramento em massa há muito tempo ressoam em boa parte do Partido Republicano. A tolerância zero era emblema do mantra de 'lei e ordem' adotado pelos conservadores americanos", diz.

Para Muggah, o fenômeno do encarceramento em massa nos EUA se revela em toda a sua complexidade quando desagregado por raça, apontando que negros são punidos desproporcionalmente, num fenômeno amplamente descrito no documentário "A 13ª Emenda".

Em Idaho, por exemplo, enquanto a taxa de encarceramento de brancos é de 701 presos por 100 mil habitantes brancos, entre negros é de 3.252/100 mil. Nacionalmente, o índice entre a minoria é de 1.134/100 mil. Em 2018, esse número entre homens negros era 5,8 vezes maior que entre brancos.

"Esse índice incrivelmente alto para negros de Idaho é reflexo de uma questão nacional, mas que se apresenta tão pronunciada por aqui devido à pequena proporção de afro-americanos [1,2% da população] no estado", explica Long, do Innocence Project.

Muggah chama a atenção para o fato de presos não votarem. "Em alguns estados, mesmo egressos do sistema prisional não podem votar. E isso quer dizer que punições mais severas beneficiam indiretamente o Partido Republicano, uma vez que afro-americanos tradicionalmente votam no Partido Democrata."

A forte presença de penitenciárias privadas nos EUA também é apontada como fator de aumento da população carcerária no país: quanto mais presos, mais recursos e maior lucro.

Para Muggah, "apesar dos apelos por reformas no sistema, o próximo presidente terá de lutar para resistir às profundas inclinações políticas, econômicas e culturais de um país viciado em sua guerra contra as drogas e no encarceramento como solução".

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