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Saara Ocidental é novo dano colateral dos acordos de paz de Israel

Depois dos palestinos, é a vez dos saaraouis serem rifados em processo promovido por Trump

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São Paulo

Se há uma boa notícia aparente, entre tantos desastres, na política externa de Donald Trump é a onda de acordos de paz patrocinados pelos Estados Unidos entre Israel e seus adversários no mundo árabe.

Como não há almoço grátis, para ficar no chavão, a conta dos sucessos e das promessas de paz tem sido paga por grupos menos favorecidos na negociação.

Refugiada saaraoui com seu filho no campo argelino de Smara, durante visita da Folha em 1997
Refugiada saaraoui com seu filho no campo argelino de Smara, durante visita da Folha em 1997 - Igor Gielow - 9.nov.1997/Folhapress

O caso mais evidente é o dos palestinos, paulatinamente abandonados pelos líderes árabes.

Trump primeiro bolou um plano mirabolante que na prática consolida o domínio de Israel sobre seu entorno estratégico e cria um arremedo de Estado palestino ainda menos funcional do que o arranjo existente hoje.

Boa parte da culpa, é evidente, recai sobre a liderança palestina, corrupta e carcomida por divisões faccionais. Mas o fato é que nem ela foi chamada à mesa.

O dano colateral da vez, no acordo anunciado com o Marrocos, é o povo saaraoui, que desde 1975 busca um lugar sob o escaldante sol do deserto do Saara.

Madri administrava o chamado Saara Espanhol desde 1884, quando o ocaso da ditadura franquista levou a uma saída desordenada dos chefes coloniais. O vizinho Marrocos, de olho em expansão territorial e no rico potássio do subsolo saaraoui, entrou no vácuo.

Só que havia estabelecida uma guerrilha, a Frente Popular de Liberação de Saguia el Hamra e Rio do Ouro, que já lutava contra os espanhóis. O resultado foi uma guerra civil que se arrastou até 1991, quando os EUA mediaram um cessar-fogo.

Os marroquinos estabeleceram bizarros muros no deserto, cuja seção principal de 1.800 km separa a área rica em minerais para si. Ela é uma mistura de areia, pedaços de alvenaria, arame farpado, tudo salpicado de minas terrestres.

Dos 560 mil saaraouis, talvez 60% morem na área ocupada pelo Marrocos, e o restante, na autoproclamada República Democrática Árabe do Saara Ocidental, de inspiração marxista.

Há ainda entre 90 mil e 200 mil refugiados em quatro campos administrados pelas Nações Unidas em torno de Tindouf, na vizinha Argélia, país rival do Marrocos.

A soberania sobre a região foi a moeda de troca que o rei marroquino Mohammed 6º cobrou dos EUA para aceitar o acordo com Israel.

Como no caso de outro país que fez as pazes com Tel Aviv, os Emirados Árabes Unidos, a negociação formaliza anos de relações quase amistosas. O Marrocos inclusive aceitava a presença de turistas israelenses, uma raridade no mundo muçulmano.

Também aceitaram estabelecer laços com Israel o Bahrein e o Sudão, país este que também fez suas exigências particulares.

Governado na prática por militares, após o fim de uma outra ditadura de 30 anos em 2019, o Sudão colocou em suspensão seu acerto com o Estado judeu até que o Congresso americano aprove a imunidade contra acusações de terrorismo por parte de suas lideranças —muitas delas suspeitas de genocídio na região de Darfur.

Para complicar a avaliação rósea da iniciativa de Trump, que deverá sofrer ajustes, mas ser mantida sob Joe Biden, há a questão de que ela serve tanto para promover a paz como para incitar a guerra —no caso, com o Irã, adversário figadal dos países árabes de maioria sunita.

Nunca é demais lembrar que no começo deste ano EUA e Irã estiveram à beira de um conflito aberto.

O movimento todo reconfigura o Oriente Médio como o conhecemos. No mês passado, o premiê israelense, Binyamin Netanyahu, encontrou-se secretamente com o herdeiro saudita, Mohammed bin Salman. O príncipe quer limpar sua imagem, desgastada pela guerra no Iêmen e pelo assassinato de um jornalista crítico ao governo.

Há anos os dois países ensaiam uma aproximação, e tudo o que se vê até aqui é a preparação para o que será vendido como um grande momento da paz.

Verdade, mas também fecha o círculo de inimigos de Teerã, o que pode levar tanto a conflitos por erro de cálculo como, mais certamente, à busca da bomba atômica pelos aiatolás já insinuada novamente.

Se ela vier, Israel deixa de estar sozinho no clube nuclear da região, e certamente a Arábia Saudita seguirá o mesmo caminho —há anos é especulado um acordo secreto para que o Paquistão transfira tecnologia da bomba para Riad.

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