Se há uma boa notícia aparente, entre tantos desastres, na política externa de Donald Trump é a onda de acordos de paz patrocinados pelos Estados Unidos entre Israel e seus adversários no mundo árabe.
Como não há almoço grátis, para ficar no chavão, a conta dos sucessos e das promessas de paz tem sido paga por grupos menos favorecidos na negociação.
O caso mais evidente é o dos palestinos, paulatinamente abandonados pelos líderes árabes.
Trump primeiro bolou um plano mirabolante que na prática consolida o domínio de Israel sobre seu entorno estratégico e cria um arremedo de Estado palestino ainda menos funcional do que o arranjo existente hoje.
Boa parte da culpa, é evidente, recai sobre a liderança palestina, corrupta e carcomida por divisões faccionais. Mas o fato é que nem ela foi chamada à mesa.
O dano colateral da vez, no acordo anunciado com o Marrocos, é o povo saaraoui, que desde 1975 busca um lugar sob o escaldante sol do deserto do Saara.
Madri administrava o chamado Saara Espanhol desde 1884, quando o ocaso da ditadura franquista levou a uma saída desordenada dos chefes coloniais. O vizinho Marrocos, de olho em expansão territorial e no rico potássio do subsolo saaraoui, entrou no vácuo.
Só que havia estabelecida uma guerrilha, a Frente Popular de Liberação de Saguia el Hamra e Rio do Ouro, que já lutava contra os espanhóis. O resultado foi uma guerra civil que se arrastou até 1991, quando os EUA mediaram um cessar-fogo.
Os marroquinos estabeleceram bizarros muros no deserto, cuja seção principal de 1.800 km separa a área rica em minerais para si. Ela é uma mistura de areia, pedaços de alvenaria, arame farpado, tudo salpicado de minas terrestres.
Dos 560 mil saaraouis, talvez 60% morem na área ocupada pelo Marrocos, e o restante, na autoproclamada República Democrática Árabe do Saara Ocidental, de inspiração marxista.
Há ainda entre 90 mil e 200 mil refugiados em quatro campos administrados pelas Nações Unidas em torno de Tindouf, na vizinha Argélia, país rival do Marrocos.
A soberania sobre a região foi a moeda de troca que o rei marroquino Mohammed 6º cobrou dos EUA para aceitar o acordo com Israel.
Como no caso de outro país que fez as pazes com Tel Aviv, os Emirados Árabes Unidos, a negociação formaliza anos de relações quase amistosas. O Marrocos inclusive aceitava a presença de turistas israelenses, uma raridade no mundo muçulmano.
Também aceitaram estabelecer laços com Israel o Bahrein e o Sudão, país este que também fez suas exigências particulares.
Governado na prática por militares, após o fim de uma outra ditadura de 30 anos em 2019, o Sudão colocou em suspensão seu acerto com o Estado judeu até que o Congresso americano aprove a imunidade contra acusações de terrorismo por parte de suas lideranças —muitas delas suspeitas de genocídio na região de Darfur.
Para complicar a avaliação rósea da iniciativa de Trump, que deverá sofrer ajustes, mas ser mantida sob Joe Biden, há a questão de que ela serve tanto para promover a paz como para incitar a guerra —no caso, com o Irã, adversário figadal dos países árabes de maioria sunita.
Nunca é demais lembrar que no começo deste ano EUA e Irã estiveram à beira de um conflito aberto.
O movimento todo reconfigura o Oriente Médio como o conhecemos. No mês passado, o premiê israelense, Binyamin Netanyahu, encontrou-se secretamente com o herdeiro saudita, Mohammed bin Salman. O príncipe quer limpar sua imagem, desgastada pela guerra no Iêmen e pelo assassinato de um jornalista crítico ao governo.
Há anos os dois países ensaiam uma aproximação, e tudo o que se vê até aqui é a preparação para o que será vendido como um grande momento da paz.
Verdade, mas também fecha o círculo de inimigos de Teerã, o que pode levar tanto a conflitos por erro de cálculo como, mais certamente, à busca da bomba atômica pelos aiatolás já insinuada novamente.
Se ela vier, Israel deixa de estar sozinho no clube nuclear da região, e certamente a Arábia Saudita seguirá o mesmo caminho —há anos é especulado um acordo secreto para que o Paquistão transfira tecnologia da bomba para Riad.
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