Polícia volta a atirar em manifestantes, e países vizinhos procuram soluções para crise de Mianmar

Bloco de nações do Sudeste Asiático se reuniu pela 1ª vez para tentar encontrar formas de restaurar a normalidade

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Rangoon (Mianmar) | AFP e Reuters

Enquanto países vizinhos se reuniam para buscar uma solução para a crise criada pelo golpe de Estado em Mianmar, as forças de segurança voltaram a usar munição letal contra manifestantes que pedem o fim do regime militar e a restauração da democracia.

Embora em menores proporções, em parte devido à violenta repressão contra os protestos, centenas de manifestantes voltaram a se reunir na principal cidade do país, Rangoon. A maioria usava capacetes, máscaras e escudos improvisados para se proteger de disparos de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo.

Não houve relatos de feridos em Rangoon, mas em Kale, no noroeste do país, testemunhas afirmaram que a polícia usou munição real para dispersar uma multidão depois que um grupo de manifestantes lançou pedras e outros objetos contra as forças de segurança.

Manifestantes reagem a bombas de gás lacrimogêneo lançadas por forças de segurança em Kale, em Mianmar - AFP

"Eles estavam agindo como se estivessem em uma zona de guerra", disse um professor, sob anonimato, à agência de notícias Reuters. Segundo os relatos, quatro pessoas ficaram feridas. Desde o início dos protestos, ao menos 21 pessoas morreram em decorrência da ação policial para conter os opositores ao regime.

De acordo com relatos de socorristas e médicos à agência de notícias AFP, cerca de 20 pessoas ficaram feridas em Kale, e ao menos três foram atingidas por munição letal e estão em estado grave.

A repressão a jornalistas também aumentou nos últimos dias, em que ao menos seis profissionais foram presos. Um deles foi detido enquanto transmitia, ao vivo pelo Facebook, a ação policial nas ruas de Myeik, no sul do país.

Todos foram acusados ​​de acordo com uma seção do código penal que considera crime publicar material que poderia fazer com que um soldado ou outro membro do serviço militar "se amotinasse ou de outra forma desrespeitasse ou deixasse de cumprir seu dever", segundo Tin Zar Oo, advogado de um jornalista da Associated Press que está entre detidos.

Nesta terça-feira, uma multidão se reuniu em um pequeno cemitério de Rangoon para o funeral de uma das vítimas atingidas no domingo. Nyi Nyi Aung Htet Naing tinha 23 anos e morreu após levar um tiro no estômago.

"Não haverá perdão para vocês até o fim do mundo", gritou a multidão, ao redor do caixão coberto de flores. Horas antes de sua morte, o estudante havia publicado uma mensagem em suas redes sociais: "De quantos cadáveres a ONU precisa para agir?"

Multidão durante funeral de Nyi Nyi Aung Htet Naing, morto durante protestos contra o regime militar em Mianmar - 2.mar.21/AFP

Tentando assumir um papel de mediação na crise, os países-membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) promoveram uma reunião entre seus ministros das Relações Exteriores, entre os quais Wunna Maung Lwin, o indicado pela junta militar de Mianmar para assumir o cargo após a deposição do governo civil.

A Asean é formada por Mianmar, Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Filipinas, Tailândia, Singapura e Vietnã.

A chanceler da Indonésia, Retno Marsudi, reforçou seu pedido por um esforço diplomático coletivo entre os países-membros do bloco, mas deixou claro que conta com a colaboração de Mianmar para resolver a crise.

"São precisos dois para dançar o tango", disse a ministra, após a reunião. "As boas intenções e a prontidão da Asean não terão sentido se Mianmar não abrir suas portas."

Ao mesmo tempo em que pediu a libertação dos presos políticos e a restauração da democracia, a ministra reiterou a promessa de que os países da Asean não interfeririam nos negócios uns dos outros.

"Devemos buscar colocar a democracia de volta nos trilhos", disse Marsudi. "A Indonésia sublinha que a vontade, o interesse e as vozes do povo de Mianmar devem ser respeitados."

O chanceler de Singapura, Vivian Balakrishnan, classificou como "indesculpável" o uso de força letal contra civis desarmados. Também fez um alerta aos colegas sobre a incapacidade do bloco de encontrar uma posição comum da Asean, o que, segundo ele, "enfatizaria fortemente nossa falta de unidade e minaria nossa credibilidade e relevância como organização".

Além de Marsudi e Balakrishnan, os representantes da Malásia e das Filipinas também pediram a libertação de Aung San Suu Kyi, que, antes de ser deposta, era conselheira de Estado de Mianmar e, na prática, a governante do país.

Junto com vários outros membros de seu partido, Suu Kyi foi detida no golpe de 1º de fevereiro e, até esta segunda-feira (1º), não era vista publicamente.

Ela agora enfrenta quatro acusações criminais. As duas primeiras, apresentadas ainda na semana da tomada de poder, foram de importação ilegal de seis walkie-talkies e de uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus.

Na audiência desta segunda-feira, a conselheira recebeu mais duas acusações: uma por ter supostamente violado uma lei de telecomunicações que estipula licenças para equipamentos, e outra por publicar informações que podem "causar medo ou alarme", prática vetada pelo código penal que data do período colonial.

Apesar dos esforços da Asean, fontes com conhecimento detalhado do que foi tratado na reunião disseram à Reuters que o bloco —composto por democracias, Estados comunistas, regimes autoritários e uma monarquia absoluta— não conseguiu chegar a um consenso nem traçar um caminho de retorno à normalidade em Mianmar.

Em um comunicado divulgado pela Tailândia, que preside a Asean, o grupo pediu a "todas as partes que se abstenham de instigar mais violência".

"Expressamos a disponibilidade da Asean para ajudar Mianmar de uma maneira positiva, pacífica e construtiva", informou o bloco.

Embora ainda de modo não oficial, o movimento da Asean atende ao pedido feito pela Organização das Nações Unidas, pelos Estados Unidos e pela União Europeia para que o bloco assuma esse papel de mediação com os militares que agora comandam Mianmar.

Ativistas pró-democracia, entretanto, têm feito críticas à atuação da Asean, alegando que o diálogo com as Forças Armadas funcionaria, na prática, como uma legitimação da tomada de poder.

Essa preocupação ganhou força nesta terça quando o diplomata-chefe da Malásia, Hishammuddin Hussein, propôs que um grupo de especialistas da Asean pudesse examinar as supostas discrepâncias encontradas na eleição de novembro vencida por Suu Kyi.

A Liga Nacional pela Democracia (LND), partido da conselheira, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento nas últimas eleições em Mianmar, realizadas em novembro do ano passado. A legenda, entretanto, foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras.

O Exército vem tentando usar supostas acusações de fraude no pleito como justificativa para a tomada de poder. Os militares também acrescentaram à narrativa o argumento de que a comissão eleitoral do país usou a pandemia de coronavírus como pretexto para impedir a realização de uma campanha justa. Dizem ainda que agiram de acordo com a Constituição e que a maior parte da população apoia sua conduta, acusando manifestantes de incitarem a violência.


CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

  • 1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente
  • 1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar
  • 1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência
  • 1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais
  • 1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder
  • 1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz
  • 1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições
  • 2008: Assembleia aprova nova Constituição
  • 2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido
  • 2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento
  • 2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro
  • 2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência
  • 2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar
  • 2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado
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