Descrição de chapéu The New York Times

Ludibriada, imprensa divulgou invasão terrestre da Faixa de Gaza que não ocorreu

Informação falsa pode ter sido usada por Israel para confundir membros do Hamas

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David M. Halbfinger
The New York Times

As forças militares israelenses anunciaram abruptamente depois da 0h de sexta (14) que suas forças terrestres haviam começado a “atacar na Faixa de Gaza”, dizendo-o no Twitter e em mensagens de texto enviadas a jornalistas. O anúncio foi confirmado por um porta-voz do Exército que fala inglês.

Várias organizações noticiosas internacionais, incluindo o New York Times, imediatamente alertaram seus leitores em todo o mundo que uma incursão ou invasão da Faixa de Gaza estava em curso, numa grande escalada das hostilidades israelo-palestinas.

Tanques israelenses perto da fronteira entre Israel e Faixa de Gaza
Tanques israelenses perto da fronteira entre Israel e Faixa de Gaza - Jack Guez - 15.mai.21/AFP

Esses relatos foram todos corrigidos em questão de horas: não havia ocorrido invasão alguma. Em vez disso, tropas terrestres tinham aberto fogo contra alvos na Faixa de Gaza a partir do território israelense, enquanto caças e drones continuavam o ataque a partir do ar. Um alto porta-voz militar assumiu a responsabilidade, que atribuiu ao caos da guerra.

Mas no final da tarde de sexta-feira várias emissoras israelenses importantes estavam divulgando que o anúncio incorreto não fora um acidente, mas parte de uma fraude elaborada.

A intenção, segundo elas, foi enganar os combatentes do Hamas, levando-os a pensar que uma invasão havia começado e a reagir de maneiras que expusessem um número muito maior deles ao que estava sendo descrito como um ataque israelense devastadoramente letal.

O porta-voz em língua inglesa das forças israelenses, o tenente-coronel Jonathan Conricus, insistiu que o anúncio falso tinha sido erro dele próprio, mas um erro cometido de boa fé. Em teleconferência tensa no início da noite de sexta-feira (14), ele disse a correspondentes internacionais que entendera errado informações que chegaram “do campo” e que as divulgou sem verificá-las corretamente.

Ao mesmo tempo, contudo, as forças israelenses estavam sendo elogiadas pela imprensa em língua hebraica por terem atraído combatentes do Hamas para uma rede de túneis no norte da Faixa de Gaza que foi atacada fortemente por cerca de 160 jatos de Israel, em uma investida furiosa de ataques aéreos que começou por volta das 0h de sexta-feira.

“Assim os túneis viraram armadilhas mortais para os terroristas na Faixa de Gaza”, declarou a estação noticiosa israelense Canal 12 no título de uma reportagem de seu repórter militar, que descreveu a difusão de desinformação a jornalistas estrangeiros como um “estratagema planejado”.

A imprensa israelense citou as IDF (Forças de Defesa de Israel) como tendo dito que o plano funcionara. A declaração não pôde ser confirmada independentemente.

Mas a possibilidade de os militares terem utilizado a imprensa internacional para matar mais adversários na Faixa de Gaza levou o coronel Conricus a ser fortemente questionado na teleconferência.

Autoridades israelenses insistiram que a teleconferência fosse realizada “off the record” (sem que os jornalistas pudessem identificar os participantes), mas um repórter do New York Times que não participou da conversa obteve uma gravação dela de outra organização de imprensa.

Representantes de The New York Times, The Washington Post, The Wall Street Journal, National Public Radio (EUA) e Agence France-Presse (AFP), todos os quais haviam equivocadamente noticiado uma invasão terrestre na sexta-feira, encheram Conricus de perguntas, querendo saber se tinham sido instrumentalizados pelos militares, por que levara horas para a notícia da invasão ser desmentida e como eles poderão confiar nas declarações dos militares de agora em diante.

O coronel Conricus, oficial veterano e porta-voz conhecido pela precisão em relação ao que ele sabe e não sabe, disse que não foi feita nenhuma “tentativa de enganar ninguém ou de levar vocês a escreverem algo que não fosse verdade”, acrescentando: “Posso entender que a impressão talvez seja diferente”. Ele qualificou o que aconteceu como “francamente embaraçoso”.

Mas o coronel Conricus, previsto para se aposentar das Forças Armadas no final de junho, também reconheceu que os militares de fato tentaram enganar os combatentes na Faixa de Gaza, usando táticas como deslocar com alarde um grande número de tanques e de outros veículos blindados para a fronteira, como se uma invasão estivesse de fato acontecendo.

O objetivo, disse, foi induzir as equipes dos mísseis antitanque do Hamas a emergir de seus esconderijos e começar a atirar contra as forças israelenses, permitindo assim que suas posições fossem detectadas e destruídas –além de induzir outros combatentes palestinos a entrarem na rede de túneis subterrâneos, que os generais de Israel acreditavam que agora poderiam destruir com ataques aéreos.

“Ninguém que está aqui nesta conferência é o público alvo”, disse o coronel Conricus. “O público alvo são os terroristas que esperamos que agora estejam mortos dentro dos túneis. A intenção das IDF foi criar uma situação que os fizesse descer para os túneis, para que pudéssemos atacá-los.”

Mas isso suscitou objeções de vários correspondentes, especialmente os de organizações que têm membros de suas equipes trabalhando na Faixa de Gaza, que disseram que isso os colocava em risco maior. O coronel Conricus se negou a ser entrevistado para esta reportagem.

O correspondente em Jerusalém da National Public Radio, Daniel Estrin, expressou frustração. “Se eles nos utilizaram, isso é inaceitável”, disse ele. “E se não o fizeram, então o que aconteceu de fato e por que a mídia israelense está divulgando que fomos ludibriados?”

Devido a seu papel vital na defesa das ações militares de Israel na corte de opinião internacional, o cargo de porta-voz do Exército tem sido muito almejado, funcionando como uma espécie de plataforma de lançamento de carreiras políticas. O escritório do porta-voz desempenhou um papel em outras táticas enganosas empregadas nos últimos anos, incluindo em 2019, quando foi encenada uma falsa evacuação médica, com soldados enfaixados e um transporte de supostos feridos a um hospital de helicóptero, para convencer a mídia libanesa de que um ataque de míssil do Hizbullah provocara baixas israelenses.

O escritório do porta-voz aguardou duas horas –o tempo suficiente para os combatentes do Hizbullah declararem vitória e se retirarem— antes de anunciar que nenhum militar israelense havia sido ferido na realidade. Mas Amos Harel, analista militar do jornal israelense Haaretz, considerou que envolver o escritório do porta-voz em uma iniciativa habitual para enganar jornalistas seria preocupante.

“É uma posição muito perigosa para as IDF assumirem –serem suspeitas de enganar a imprensa internacional intencionalmente—, especialmente quando estamos à beira de uma escalada com o Hamas e quando é tão crucial para Israel explicar suas ações para a mídia internacional”, disse Harel.

“Também é arriscado para os jornalistas. O Exército israelense talvez tenha esquecido que há jornalistas estrangeiros de ambos os lados da fronteira. Pode ser perigoso para eles se eles forem suspeitos de estarem sendo instrumentalizados em operações psicológicas de Israel.”

Ao longo da semana, o conflito também inspirou uma tempestade maior de desinformação nas redes sociais. Notícias falsas estão sendo fartamente compartilhadas em todo o mundo, às vezes com fotos ou vídeos incorretamente identificados ou descritos ou com rumores falsos sobre movimentos das tropas israelenses ou ameaças palestinas.

Especialistas em desinformação receiam que, em um ambiente tão carregado, o efeito de toda essa informação falsa –parte dela intencional, parte acidental— seja potencialmente letal, agravando as tensões entre israelenses e palestinos em um momento crítico.

Um fato que intensificou a confusão sobre a alegação específica sobre a Faixa de Gaza foi uma notícia divulgada na sexta-feira pelo Canal 10 israelense sobre a criação recente de uma Unidade de Engodo do Estado-Maior. Segundo o divulgado, a unidade teria sido ativada para levar o Hamas a acreditar que uma invasão terrestre estava em curso.

O anúncio falso sobre a invasão foi feito às 0h22 de sexta-feira em um comunicado em inglês expresso em termos vagos: “Tropas aéreas e terrestres das IDF estão atacando no momento na Faixa de Gaza”.

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A ambiguidade da palavra “na” não estava presente na versão em hebraico do comunicado, lançada alguns minutos antes. Mas, quando jornalistas ocidentais procuraram o coronel Conricus para verificar a informação, ele lhes garantiu que as tropas de Israel estavam dentro da Faixa de Gaza.

Em um momento da teleconferência de sexta-feira, o coronel Conricus tentou minimizar os danos, dizendo que a discrepância envolvia “apenas alguns poucos metros". "Não é uma diferença muito grande.”

Mas a discrepância entre as informações em inglês e em hebraico desencadeou uma corrida frenética nas redações israelenses e nas sucursais de jornais e emissoras estrangeiras no país para averiguar a situação em campo. À 1h43, Roy Sharon, correspondente militar da emissora pública israelense Kann News, divulgou informações confirmadas: “Esta não é uma invasão terrestre. Repito: não há invasão terrestre na Faixa de Gaza. Não entendo este comunicado estranho.”

Até então, segundo relatos israelenses, a operação militar já tinha sido concluída.

Tradução de Clara Allain.

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