Líbano vive pior crise econômica em mais de um século

Ainda assombrado por guerra civil de 15 anos que terminou em 1990, país passa por colapso financeiro

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Ben Hubbard
Trípoli (Líbano) | The New York Times

A sala de estar de Rania Mustafa lembra um passado não muito distante, quando o modesto salário de uma guarda de segurança no Líbano podia comprar um ar-condicionado, móveis elegantes e uma TV de tela plana. Mas com o agravamento da crise econômica do país ela perdeu o emprego e viu sua poupança evaporar. Hoje, ela pensa em vender os móveis para pagar o aluguel e luta para comprar comida, sem falar em eletricidade ou um dentista para consertar o molar quebrado de sua filha de 10 anos.

Para jantar em uma noite recente, iluminada por um único telefone celular, a família dividiu finos sanduíches de batata doados por uma vizinha. A menina mastigou só de um lado da boca para evitar o dente danificado. "Não tenho ideia de como vamos continuar", disse Mustafa, 40, em sua casa em Trípoli, a segunda cidade do Líbano depois da capital, Beirute.

O pequeno país mediterrâneo, ainda assombrado por uma guerra civil de 15 anos que terminou em 1990, está passando por um colapso financeiro que, segundo o Banco Mundial, pode ser classificado como um dos piores do mundo desde meados do século 19. Ele está comprimindo as famílias cujo dinheiro despencou em valor enquanto o custo de quase tudo disparou.

Pessoas participam de protesto no porto de Beirut, no Líbano, pedindo justiça para as vítimas da explosão que destruiu várias partes da cidade em 2020
Pessoas participam de protesto no porto de Beirut, no Líbano, pedindo justiça para as vítimas da explosão que destruiu várias partes da cidade em 2020 - Bilal Jawich - 4.ago.21/Xinhua

Desde o outono de 2019 no hemisfério Norte (primavera no Brasil), a libra libanesa perdeu 90% do valor, e a inflação anual em 2020 foi de 84,9%. Os preços dos bens de consumo quase quadruplicaram nos últimos dois anos, segundo estatísticas de junho do governo do país. Uma enorme explosão há um ano no porto de Beirute que matou mais de 200 pessoas e deixou grande parte da capital em ruínas só aumentou o desespero.

Na quarta-feira (4), o Líbano observou um dia de luto para marcar o aniversário da explosão. Órgãos do governo e a maioria das empresas fecharam para a ocasião. Multidões se reuniram em toda Beirute para relembrar o dia e denunciar o governo, que não conseguiu determinar o que causou a explosão e quem foi o responsável, muito menos responsabilizar alguém.

Depois de um momento de silêncio na rodovia que leva ao porto, milhares de manifestantes marcharam em direção ao centro da cidade, onde alguns dispararam fogos de artifício e atiraram pedras perto do Parlamento contra as forças de segurança, que responderam com disparos de gás lacrimogêneo. A explosão exacerbou a crise econômica do país, que vinha se formando havia muito tempo, e há pouco alívio à vista.

Anos de corrupção e políticas ruins deixaram o Estado profundamente endividado e o banco central incapaz de continuar sustentando a moeda, como fez durante décadas, devido à queda de fluxos de caixa estrangeiros para o país. Agora, a economia bateu no fundo, deixando escassez de alimentos, combustível e remédios. Todos, exceto os libaneses mais ricos, cortaram a carne da alimentação e fazem longas filas para abastecer os carros, suando durante as noites de verão devido aos longos cortes de energia.

O país há muito sofre com a escassez de eletricidade, legado de um Estado que não conseguiu garantir os serviços básicos. Para cobrir as lacunas deixadas pelo fornecimento de energia do Estado, os moradores contam com geradores privados movidos a diesel. Mas o colapso da moeda minou esse sistema de colcha de retalhos.

Como o combustível importado ficou mais caro, os cortes de energia na rede se estenderam de algumas horas por dia até 23 horas. Portanto, a demanda por energia dos geradores aumentou, junto com o custo do combustível para operá-los. O aumento de preços resultante transformou um utilitário essencial para negócios, saúde e conforto em um luxo que muitas famílias podem pagar apenas em quantidades limitadas, quando podem.

Em todo o Líbano, a escassez de combustível causou longas filas nos postos de gasolina, onde os motoristas esperam horas para comprar apenas alguns litros ou nenhum, se o estoque do posto acabar. O fornecimento de medicamentos também se tornou pouco confiável. O Estado deveria subsidiar as importações, mas a crise sobrecarregou igualmente esse sistema.

Em uma farmácia em Trípoli, uma fila se estendia da calçada até a caixa registradora, onde compradores ansiosos buscavam remédios antes fáceis de obter e que agora estão escassos, como para dores e pressão sanguínea. Outros produtos desapareceram completamente, como remédios para tratar a depressão. Uma compradora, Wafa Khaled, amaldiçoou o governo depois de não conseguir encontrar insulina para sua mãe e pagar cinco vezes mais do que pagaria há dois anos por comida para bebê e sete vezes mais por fórmula nutricional. "O melhor para nós seria algum país estrangeiro vir nos ocupar para termos luz, água e segurança", disse ela.

A crise pode causar danos permanentes a três setores que historicamente fizeram o Líbano se destacar no mundo árabe. Em um país que já foi chamado de Suíça do Oriente Médio, os bancos estão em grande parte insolventes, a educação sofreu um golpe porque os professores buscam melhores oportunidades no exterior, e os tratamentos de saúde se deterioraram à medida que os baixos salários causaram um êxodo de médicos e enfermeiras.

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O pronto-socorro do Centro Médico da Universidade Americana de Beirute, um dos melhores do país, passou de 12 para sete médicos e perdeu mais da metade de seus 65 enfermeiros desde julho de 2020, disse Eveline Hitti, chefe do departamento. Eles foram saindo em decorrência das ondas de Covid-19, a redução dos salários e a explosão no porto de Beirute no ano passado, que lotou o hospital de vítimas. "Você se pergunta: por que eu deveria sobreviver a isso?", disse Rima Jabbour, a enfermeira-chefe. Agora, os casos de Covid estão aumentando, assim como as intoxicações causadas por má refrigeração de alimentos e consumo excessivo de álcool.

Os líderes políticos do país não conseguiram desacelerar o colapso econômico. As autoridades têm dificultado a investigação sobre a explosão no porto, e um magnata bilionário das telecomunicações, Najib Mikati, é atualmente o terceiro político a tentar formar um governo desde que o último gabinete renunciou após a explosão.

Mustafa Allouch, vice-chefe do Movimento Futuro, um partido político proeminente, disse, como muitos outros libaneses, temer que o sistema político, destinado a dividir o poder entre várias seitas, seja incapaz de resolver os problemas do país. "Acho que não vai funcionar mais", disse ele. "Temos que procurar outro sistema, mas não sei qual é."

Seu maior medo é a "violência cega" que nasce do desespero e da raiva. "Saques, tiroteios, assaltos a residências e pequenas lojas", disse. "Por que isso ainda não aconteceu, não sei."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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