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Flávio Ferreira

Acaso me levou ao 11 de Setembro e à primeira reportagem

Tragédia me fez viver a situação mais agoniante da minha trajetória profissional como jornalista

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São Paulo

Um fim de tarde ao som da Brazilian Symphony Orchestra e sob as árvores do Central Park, na minha chegada a Nova York, em 7 de setembro de 2001, trouxe a sensação de que nos dias seguintes teria paz e ganharia fôlego para o projeto de migrar do direito para o jornalismo, após seis anos na advocacia.

Trabalhava como advogado em um escritório e à noite cursava o terceiro ano da faculdade de jornalismo. Resolvi fazer uma última viagem de férias para depois iniciar um pé de meia para a transição profissional.

Na manhã de 11 de setembro, ao ir tomar café no hostel em que eu estava hospedado, ouvi pessoas comentando sobre um acidente aéreo no World Trade Center. Voltei para o quarto, liguei a TV, e os canais davam a notícia. Só que minutos depois outro avião colidiu com a torre sul do WTC, e as manchetes na tela mudaram para “América sob ataque”.

Decidi ir para o local e percorri 7,5 quilômetros a pé, pois os transportes coletivos não estavam mais em operação. Quando cheguei, já havia vários bloqueios na área dos escombros, e na verdade acabei virando personagem, ao dar uma entrevista para uma rede de TV.

No dia seguinte, resolvi ir para a frente dos hospitais. Na entrada do Bellevue Hospital Center estavam os primos da brasileira Sandra Fajardo Smith, uma contadora de 37 anos que trabalhava em um escritório da seguradora Marsh & McLennan, no 98º andar da torre norte, e estava desaparecida.

Passei então a procurar veículos de imprensa interessados em publicar sobre a procura por Sandra.

Elisete Sargent (esq.) e Wanda Fajardo, respectivamente amiga e irmã de Sandra Fajardo Smith, mostram foto da brasileira morta no atentado ao World Trade Center, em Nova York
Elisete Sargent (esq.) e Wanda Fajardo, respectivamente amiga e irmã de Sandra Fajardo Smith, mostram foto da brasileira morta no atentado ao World Trade Center, em Nova York - Flávio Ferreira - 15.set.01/Folhapress

Por indicação de um brasileiro vendedor de passeios turísticos que tinha uma banquinha no hostel, fui procurar o editor de um jornal para a comunidade brasileira, The Brasilians, em busca de dicas e contatos.

Ao chegar à Redação do jornal, fui recebido pela secretária do editor, dona Cândida, com quem fiquei conversando por quase três horas, até que o jornalista me convidasse a entrar em sua sala. Ele, porém, disse que eu não tinha chance de trabalhar, pois os veículos já estavam com seus melhores profissionais na cobertura. “Vá aproveitar os museus e espetáculos que estão com os preços lá embaixo.”

Quando saí da sala, contei a dona Cândida sobre as palavras desanimadoras, e ela disse: “Trabalhei muitos anos no consulado brasileiro, conheço o atual assessor de imprensa, e ele pode te ajudar”.

No dia seguinte, ele me colocou na entrevista coletiva do consulado. Ao final do evento, procurei a jornalista Teté Ribeiro, que estava trabalhando para a Folha. Ela sugeriu falar com o então correspondente do jornal em Nova York, Sérgio Dávila, marido dela e atual diretor de Redação da Folha.

Fui ao apartamento deles, e Dávila mostrou interesse pela história. Ele consultou o jornal, que me ofereceu um pagamento como freelance. Disse então que iria a uma lan house escrever o texto, mas Dávila respondeu: “Não precisa, escreva aí no meu laptop mesmo”.

Com o título “Família diz que perdeu esperanças”, foi minha primeira reportagem publicada na imprensa. Semanas depois, Sandra foi a primeira brasileira a ter a morte reconhecida de forma presumida pela Prefeitura de Nova York, com a emissão de uma certidão de óbito.

Também foi nesse período que vivi a situação mais agoniante de toda a minha trajetória profissional. Em uma palestra oferecida pela companhia que empregava Sandra, destinada aos familiares dos funcionários desaparecidos, um especialista em acidentes aéreos explicou que os escritórios da empresa estavam na zona de impacto direto do avião com a torre norte, entre o 93º e o 99º andares.

Ao fim, disse que o Boeing 767 estava abastecido com muito combustível e que o calor gerado pela colisão era suficiente para incinerar corpos. Assim, concluiu, não havia chance de sobrevivência entre os que estavam nos escritórios, e, além disso, os familiares não iriam ter os corpos de seus parentes para enterrar.

O silêncio pesado foi rompido por choros de todos os cantos. Foi quando a expressão “nó na garganta” ganhou uma representação aguda, deixando em mim uma memória física duradoura daquele momento.

Mas em meio a essa e a outras situações de tristeza lancinante, esse meu começo na imprensa ficou marcado pelos gestos de solidariedade de muitas pessoas, que me abriram as portas de um consulado e até de sua própria casa. A ajuda de dona Cândida foi o apoio mais inesperado, o imponderável dentro do imponderável, uma inspiração que me acompanha, já há 20 anos, no trabalho como repórter.

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