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Descoberta do estreito de Magalhães alargou o mundo

Na chamada 'cauda do dragão', tudo que parece estar terminando talvez esteja só renascendo

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As águas do estreito de Magalhães, que une os oceanos Atlântico e Pacífico Marcio Pimenta/Folhapress

Eduardo Bueno

Eis o estreito que escancarou o mundo.

A frase ecoa um dos tantos paradoxos que cercam o labirinto de ilhas e baías, de meandros e becos, de canais e geleiras através do qual os navegantes europeus descobriram que o mundo deles era menos do que a metade do mundo real —e que a Terra era redonda e que o Atlântico mais parecia uma piscina se comparado ao imenso oceano que, em mais uma das ironias que cercam aquela "descoberta", o intrépido Fernão de Magalhães ainda assim optou por batizar de Pacífico.

Em meio a uma jornada épica de fome e suplícios, de superação e desditas, Fernão de Magalhães, um português ressentido, naturalizado espanhol, manco e zarolho —e um dos maiores navegadores de todos os tempos—, decidiu chamar o último recanto do planeta de Terra do Fogo, e seus habitantes, de patagões, embora nem aquela terra nem aquele povo fossem nem uma coisa nem a outra.

Seja como for, não restam dúvidas de que foi Magalhães quem colocou no mapa esse emaranhado de fiordes e bancos de areia, de infindas enseadas e falsas passagens.

O labirinto que conecta as duas metades do mundo, o sinuoso estreito que já houve quem tenha mais apropriadamente chamado de Cauda do Dragão. O lugar onde, feito um tapete puído, o continente se esfarela e lança seu último suspiro, compondo uma canção de fogo e gelo, uma sinfonia de terras relutantes e de águas que tanto batem até que furam.

Um mundo inclemente. A não ser, é claro, que você seja um Tehuelche, um Selk’nam (ou um Ona), um Yaghan, um Haush ou um Alacaluf —nativos que, em função de suas fogueiras ardentes, avistadas por Magalhães e sua tripulação, entrariam para a história com o nome de fueguinos, habitantes da assim batizada Terra do Fogo.

Eles eram —de certa forma ainda o são— os ocupantes originais do pedaço mais impiedoso do continente. E foi em meio àquele universo de sons e cores espectrais, do torvelinho de ventos, areias e marés, que os "fueguinos" construíram sua vida material e espiritual, seu conjunto de crenças, seus costumes ancestrais, seu lugar no mundo.

E se ali o mundo físico parece se decompor, esboroando-se pedaço a pedaço, torrão a torrão, cubo de gelo por cubo de gelo, tudo a se precipitar, ora com um rugido, ora com um gemido, essa é também a metáfora da forma como se descompôs a vida dos nativos após o desembarque dos europeus —momento a partir do qual aquela finisterra se tornou também o fim do mundo, como uma avant-première do apocalipse.

No entanto, tudo que parece estar terminando talvez esteja só renascendo. Afinal, no momento em que um atônito, enregelado e famélico Fernão de Magalhães transpôs o estreito que tornou o planeta muito mais largo, o que de fato ruiu foram as concepções geográficas do Velho Mundo de onde ele vinha.

Grupo selk´nam. Región entre Río Grande y Lago Yehuin, Isla Grande, Tierra del Fuego. Fotografia de Alberto María De Agostini. 1915. Fotografia gentilmente cedida pelo museu Maggiorino Borgatello, Punta Arenas, Chile. EXCLUSIVA PARA ESPECIAL DE MUNDO. NÃO USAR SEM CONSULTAR A EDITORIA
Grupo Selk'nam na região entre Rio Grande e Lago Yehuin, na ilha Grande da Terra do Fogo, em 1915; foto exibida no museu Maggiorino Borgatello, em Punta Arenas - Alberto María De Agostini - 1915/Museu Maggiorino Borgatello

E se o novo mundo que naquele instante nasceu não se tornou mais pacífico, ao menos revelou-se definitivamente redondo —embora alguns chatos ainda achem que a Terra é chata como eles.

Mas a Terra é redonda e gira. E assim, todo santo dia, o Sol lança suas chamas na cauda do dragão.

Este projeto é apoiado pelo Pulitzer Center on Crisis Reporting

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