Descrição de chapéu América Latina

Indígenas da Terra do Fogo lutam por reconhecimento para provar que não foram extintos

Nos 501 anos da descoberta pelos europeus do estreito de Magalhães, etnia Selk'nam quer provar para o Estado chileno que não foi extinta

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José Luis Vásquez Chogue, Selk'nam chileno, na primeira vez em que visitou a terra dos seus ancestrais, a Terra do Fogo Marcio Pimenta/Folhapress

Marcio Pimenta

Jornalista, fotógrafo, artista visual e explorador

Nina Radovic Fanta

Antropóloga cultural, vive na Patagônia

Porvenir (Chile)

Este projeto é apoiado pelo Pulitzer Center on Crisis Reporting

​"Ter de me explicar, de me pensar, é algo violento." A reflexão de Miguel Pantoja, morador de Rio Grande, cidade argentina na Terra do Fogo, ecoa sentimentos de toda uma geração que, como ele, tenta entender, resgatar e reconstruir sua identidade —a identidade de um povo. "Não sou descendente, sou Selk’nam."

Pantoja é membro da Comunidad Rafaela Ishton, estruturada na década de 1980 como parte de uma luta pelos direitos desse povo indígena sul-americano, também conhecido como Ona. A começar pelo reconhecimento de que ele não foi extinto: trata-se de um povo vivo.

A Argentina, onde o grupo de Pantoja foi um dos primeiros do tipo a obter jurisdição legal, reconheceu em 1995 os Selk’nam como povo indígena. Hoje, mais de 600 famílias, somando cerca de mil pessoas, identificam-se assim no país. No Chile, porém, o Estado não legitima a existência dos Selk’nam como povo. A Comunidad Covadonga-Ona, que obteve jurisdição legal em 2015, batalha pela inclusão da etnia na lista das principais reconhecidas pela Lei Indígena 19.253, de 1993.

No Censo de 2017, 1.144 chilenos se identificaram como Selk’nam. A Covadonga-Ona, que conta com mais de 50 membros e suas famílias, totalizando cerca de 200 pessoas, espera que o reconhecimento seja confirmado no início de 2022, prazo dado pelo Estado à comunidade para provar que está viva.

A história desse povo remonta há 10 mil anos, quando um grupo se estabeleceu nessa última fronteira continental, a "finis terrae", no extremo sul da América do Sul.

Há 501 anos, o navegador português Fernão de Magalhães, liderando uma expedição espanhola, descobriu uma passagem marítima na região, então desconhecida pelos europeus. Tateando em busca de uma passagem para as Índias, a nau Victoria já estava abaixo do paralelo 52 quando, sob o nevoeiro, foram avistadas fogueiras —sinal de presença humana. Os navegantes não sabiam, mas aquela terra se chamava Karukinka (nossa terra), e o fogo era aceso pelo povo Selk’nam para enfrentar o frio e cozinhar.

Magalhães deu ao local o nome de Terra do Fogo em homenagem às chamas e à fumaça das muitas fogueiras dos nativos na costa da ilha Grande avistadas da sua embarcação. Ao estreito que separa o arquipélago do continente e liga o oceano Atlântico ao Pacífico (também batizado pelo navegador) deu-se o nome de Magalhães. Sua descoberta uniu o mundo, na primeira globalização da sociedade moderna.

Muito antes que a Terra do Fogo fosse dividida entre Argentina e Chile (em um tratado de 1881), diversos aventureiros tentaram ocupar Karukinka. Era um ambiente selvagem e inóspito, de curtos verões e longos invernos, habitado por grupos nômades: Selk’nam, Tehuelche, Yagane, Haush e Kawésqar.

Primeiro, vieram exploradores que buscavam ouro —e com eles epidemias de tuberculose, sífilis e infecções respiratórias, as mesmas armas biológicas que dizimaram outros povos ameríndios.

Depois, no século 19, chegariam outros europeus e seus descendentes, dessa vez para ficar. Eram fazendeiros, que viram na região o lugar perfeito para a criação de ovelhas e a produção de lã e carne, e missionários salesianos. O encontro entre quem trazia a cultura de plantas e animais domesticados com caçadores-coletores significou uma sentença de morte para estes últimos. Uma espécie de genocídio que, em 20 anos, provocou o extermínio quase completo da população da Terra do Fogo. Quase.

A invasão custou aos Selk’nam sua terra e a liberdade da cultura nômade. Os conflitos com os fazendeiros, que viam na propriedade privada um salto para o progresso, acirraram-se com o abate pelos indígenas das ovelhas domesticadas —presas mais fáceis do que guanacos selvagens.

Caçadores de recompensa cortavam as orelhas de Selk’nam flagrados atrás de ovelhas, como prova para receber o pagamento; reincidentes tinham a cabeça decepada.

O conflito era desequilibrado, e logo os homens indígenas foram exterminados. Idosos, mulheres e crianças acabaram capturados e vendidos como servos domésticos ou enviados para as missões salesianas em Rio Grande (setor argentino) e na ilha Dawson (setor chileno).

As mulheres foram repetidamente estupradas e forçadas a se casar com não nativos. Doenças, desnutrição, evangelização, perda de cultura e separação das famílias dizimaram a população.

Quando os fazendeiros chegaram, havia cerca de 4.000 Selk’nam; em 1930, eram pouco mais de cem. A etnia foi dada como extinta nos livros e na história escrita pelos vencedores.

Relatos dos salesianos descrevem os Selk’nam como um povo de habilidades incríveis. Eram capazes de enxergar muito além do que os europeus conseguiam avistar com binóculos e dotados de fenomenal capacidade auditiva. Aprendiam outros idiomas com facilidade, exibiam capacidade criativa acima da média e talento para pintura e desenho. Seu imaginário levou a histórias e a uma cultura religiosa admiráveis. Além disso, eram reconhecidamente amáveis e gentis.

Um século e ditaduras se passaram sem que o genocídio Selk’nam fosse abordado na Argentina e no Chile. Isso começou a mudar na década de 2010, quando a internet conectou usuários que buscavam suas origens. Agora, juntos, os Selk’nam encaram o processo de reescrever o relato oficial, de descolonizar e desnaturalizar a perspectiva histórica, recuperar e ressignificar o que aconteceu.

Eles criaram centros —como Rafaela Ishton, na Argentina, e Covadonga-Ona, no Chile— nos quais as experiências, as histórias e as memórias de família são compartilhadas, e a verdade é confrontada.

"Eu sempre soube que era uma Selk’nam, mas isso não significava viver como tal ou entender como fazê-lo. Existem camadas complexas", diz Hema’ny Molina, presidente da comunidade chilena. "Durante muitos anos houve uma sensação de vazio e solidão, pois não sabíamos da existência de outras famílias. Com quem vou falar? Para quem vou contar? As pessoas vão acreditar em mim?"

Na última década, muitos empreenderam jornadas emocionais e físicas para conhecer a trágica história dos ancestrais. "Nosso primeiro vislumbre como Selk’nam é sempre doloroso, porque o que contam nos livros não é a história que conhecemos", afirma Molina, que vive em Santiago. "A maioria de nós passa por uma busca espiritual para preencher o vazio, o sentimento de não se encaixar, de não pertencer, até encontrarmos a nossa cultura. As respostas estão ali, embora não estejamos na Terra do Fogo."

A maioria dos Selk’nam mora longe da Patagônia desde que as crianças sobreviventes foram levadas do extremo sul. A luta por reconhecimento conta com a ajuda de pesquisadores da Universidad Católica Silva Henríquez e da Universidad de Magallanes. Alejandro Núñez Guerrero, diretor desta em Porvenir, no Chile, tem costurado acordos para que mais estudos de campo sejam realizados e para que os Selk’nam estejam mais presentes no local onde primeiro se estabeleceram.

Uma pesquisa recente, por exemplo, atestou que a primeira estância dos colonizadores foi construída no lado chileno da Terra do Fogo, não no argentino, como se imaginava.

Nosso primeiro vislumbre como selk’nam é sempre doloroso, porque o que contam nos livros não é a história que conhecemos

Hema’ny Molina

presidente da Comunidad Covadonga-Ona, no Chile

Os poucos Selk’nam que permaneceram na Patagônia foram marcados fortemente por essa história. Os sobreviventes, como a bisavó de Miguel Pantoja, criaram os filhos sem enfatizar a etnia.

"Para proteger as gerações seguintes, os mais velhos não transmitiram o idioma. Por isso não falo a língua Selk’nam", diz ele. Ainda hoje, alguns habitantes da ilha Grande não assumem a ascendência. "O estigma da morte era tão forte que os Selk’nam não queriam ser indígenas", completa Molina. Negar a etnia foi uma forma de sobreviver.

Hector Chogue, ex-vice-presidente da comunidade Covadonga-Ona, e seu irmão José Luis Vásquez Chogue, secretário do grupo, descobriram ser Selk’nam há três anos, ao ver o nome do avô em um caderno de registros de nascimento dos salesianos da ilha Dawson. A recente jornada de autodescoberta se tornou também um périplo de reuniões com políticos chilenos para incorporar os Selk’nam à Lei Indígena. "É difícil dizer quem sou, porque o Estado não nos reconhece", diz José Luis.

Nesse ínterim, todos estão aprendendo a ser Selk’nam. José Luis esteve pela primeira vez na Terra do Fogo em outubro —jornalistas não puderam acompanhar a visita. "Foi uma emoção e uma energia que eu nunca havia experimentado. Tentei ver e viver o lugar com os olhos do meu avô", diz.

Os irmãos Chogue e sua família ficaram sabendo há poucos anos que seu sobrenome é de origem francesa, proveniente do homem que, na década de 1840, adotou seu avô, batizado pelos salesianos como Carmelo. "O que aconteceu com os Selk’nam não pode ser esquecido pela sociedade chilena", afirma Hector, que se diz preparado para fazer a etnia deixar de ser anônima. "Temos a responsabilidade de tornar visível a nossa cultura."

Mas lutar pelo reconhecimento como Selk’nam não significa querer ser visto como indígena do passado ou peça de museu. A busca é por uma identidade de alguém que também esteja integrado à sociedade moderna, em uma jornada para reconstruir a história familiar. Hema’ny Molina está interessada na verdade como ela é, sem noções românticas.

"As pessoas querem nos ver como antes, mas crescemos como todo mundo. Temos celulares, computadores, empregos, pagamos impostos", diz ela. Pantoja reforça a necessidade de que as pessoas abandonem estereótipos raciais. "Apesar de tudo, não morremos, mas nos transformamos. Estamos vivos e presentes em nossa terra."

É difícil dizer quem sou, porque o Estado não nos reconhece

José Luis Vásquez Chogue

secretário da Comunidad Covadonga-Ona

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