Sequestro de jornalistas oferece amostra de como funciona detenção de migrantes na Líbia

Inteligência do país africano bateu e ameaçou equipe de reportagem; leia terceira parte de especial

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Ian Urbina
Trípoli (Líbia) | The Outlaw Ocean Project

No dia 23 de maio, pouco antes das 20h, eu estava sentado no meu quarto de hotel, falando ao telefone com minha esposa, quando ouvi uma batida na porta. Estava em Trípoli há alguns dias para investigar a história de Aliou Candé. O jovem migrante da Guiné-Bissau havia sido interceptado pela Guarda Costeira da Líbia em fevereiro deste ano quando tentava alcançar a Europa pelo Mar Mediterrâneo e foi mandado para uma das piores prisões para migrantes da Líbia: Al Mabani.

A Líbia tem sido uma parceria eficaz, embora brutal, nos esforços da Europa para interromper o fluxo de migrantes africanos para suas costas. A Europa tem financiado o trabalho da Guarda Costeira da Líbia para capturar migrantes no Mediterrâneo e não tem feito nada enquanto dezenas de milhares de migrantes capturados são levados para condições terríveis dentro das dezenas ou mais de prisões de migrantes que a Líbia criou como parte de seus esforços em nome da Europa.

A prisão secreta de migrantes na Líbia chamada de Al Mabani
A prisão secreta de migrantes na Líbia chamada de Al Mabani - Pierre Kattar - 18.mai.21/The Outlaw Ocean Project

Al Mabani emergiu em 2021 como uma das mais ultrajantes dessas prisões —um lugar superlotado de violência, abandono e uma variedade de crimes que vão de extorsão e trabalhos forçados a assassinato.

Uma vez na Líbia, eu e três colegas passamos uma semana investigando a prisão e o que aconteceu com Candé dentro dela. Lançamos um drone sobre a instalação, capturando imagens alarmantes de maus-tratos, e entrevistamos outros migrantes que estiveram com Candé em Al Mabani.

Nós tínhamos medo de estarmos sendo monitorados o tempo todo, e eu tinha a nítida impressão de que os funcionários do hotel e nossos seguranças particulares estavam relatando nossos movimentos às autoridades. Naquela noite, quando abri a porta após ouvir as batidas, uma dúzia de homens armados entrou, e um deles, apontando uma arma para a minha testa, gritou: "Deite no chão!". Eles colocaram um capuz na minha cabeça e me deram socos e chutes. Em seguida, arrastaram-me para fora do quarto.

Al Mabani foi criada no início deste ano sob a supervisão de Emad Al-Tarabulsi, um líder sênior de uma milícia que se proclama Agência de Segurança Pública. A milícia tem ligações com a tribo Zintan, que ajudou a derrubar Muammar Gaddafi. Hoje, o grupo está alinhado com o Governo de Unidade Nacional, reconhecido pela ONU, e Tarabulsi serviu por um breve período como vice-chefe de Inteligência.

Ele construiu a prisão em um canto da cidade controlado pela milícia e nomeou Noureddine Al-Ghreetly, um comandante de fala mansa, para dirigi-la —Tarabulsi não respondeu aos pedidos de comentário.

Anteriormente, Al-Ghreetly havia supervisionado uma prisão de migrantes chamada Tajoura, em uma base militar na periferia leste de Trípoli. Em julho de 2019, durante a última eclosão da guerra civil, uma bomba atingiu a base militar, destruindo os hangares onde os migrantes estavam detidos. Mais de 50 foram mortos, incluindo seis crianças. A maioria dos sobreviventes acabou em Al Mabani.

Em 2015, a União Europeia (UE) criou o Fundo Fiduciário de Emergência para a África, que já gastou quase US$ 6 bilhões. Apoiadores argumentam que o programa oferece ajuda financeira a países em desenvolvimento, mas muito de seu trabalho envolve pressionar países africanos a adotar restrições mais severas à imigração e financiar as agências que as aplicam.

Em 2018, autoridades do Níger supostamente enviaram uma "lista de compras" solicitando doações de carros, aviões e helicópteros em troca de ajuda na promoção de políticas anti-imigrantes. O dinheiro do fundo é distribuído a critério do ramo executivo da UE, a Comissão Europeia, e não está sujeito ao escrutínio do Parlamento. Um porta-voz do Fundo Fiduciário me disse: "Nossos programas têm como objetivo salvar vidas, proteger os necessitados e combater o tráfico humano e o tráfico de migrantes".

Em 2017, a Itália, apoiada por fundos da UE, assinou um memorando de entendimento com a Líbia afirmando "a determinação resoluta de cooperar na identificação de soluções urgentes para a questão dos migrantes clandestinos que cruzam a Líbia para chegar à Europa pelo mar".

O Fundo Fiduciário direcionou US$ 500 milhões para o ataque da Líbia à migração. Marco Minniti, à época ministro do Interior da Itália, disse em 2017 que "o que a Itália fez na Líbia é um modelo para lidar com os fluxos migratórios sem erguer fronteiras ou barreiras de arame farpado". Salah Marghani, ministro da Justiça da Líbia de 2012 a 2014, me disse que o objetivo do programa é claro: "Tornar a Líbia o bandido". "Fazer da Líbia o disfarce de suas políticas, enquanto os bons humanos da Europa dizem oferecer dinheiro para ajudar a tornar este sistema infernal mais seguro." Minniti não quis fazer comentários.

Em seu acordo inicial com a Líbia, a Itália prometeu ajudar a financiar e tornar segura a operação de detenção de migrantes. Hoje, as autoridades europeias insistem que não financiam diretamente os locais.

Os gastos do Fundo Fiduciário são obscuros, mas seu porta-voz me contou que o órgão envia dinheiro só por meio de agências da ONU e ONGs internacionais que oferecem "apoio vital a migrantes e refugiados detidos", incluindo "cuidados de saúde e psicossocial, assistência em dinheiro e itens não alimentares".

A UE admite que as prisões de migrantes são brutais. O porta-voz do Fundo Fiduciário também disse que "a situação nesses centros é inaceitável". "O atual sistema de detenção arbitrária deve acabar." No ano passado, Josep Borrell, vice-presidente da Comissão Europeia, afirmou que "a decisão de deter migrantes arbitrariamente é de exclusiva responsabilidade do governo líbio".

Para Tineke Strik, membro do Parlamento Europeu, isso não isenta a Europa da responsabilidade: "Se a UE não financiasse a Guarda Costeira da Líbia e seus recursos, não haveria interceptação e não haveria encaminhamento para esses centros de detenção horríveis". Ela também apontou que a UE envia fundos para o Governo de Unidade Nacional, cuja diretoria de combate à migração ilegal supervisiona os centros de detenção. Também argumentou que, mesmo que a UE não pague a construção de instalações ou os salários de atiradores, o dinheiro indiretamente apoia grande parte de sua operação.

O Fundo Fiduciário compra os barcos que capturam migrantes, os ônibus que os levam às prisões e os SUVs que os caçam quando fogem. As agências da ONU financiadas pela UE construíram chuveiros e banheiros em várias das instalações e pagam cobertores, roupas e produtos de higiene que os migrantes recebem quando chegam. Quando os detidos adoecem, as ambulâncias compradas pelo Fundo Fiduciário os levam ao hospital. E, quando eles morrem, o dinheiro da UE paga os sacos que armazenam os cadáveres e o treinamento no manejo dos corpos. Alguns desses esforços tornam as prisões mais humanas, mas, em conjunto, também ajudam a manter esse brutal sistema, que existe em boa parte devido às políticas da UE que mandam os migrantes de volta para a Líbia.

Essas prisões, além de cumprirem uma promessa à Europa, também rendem dinheiro para as milícias líbias que as dirigem. Um dos golpes mais fáceis é o "desvio de ajuda", por meio do qual as milícias desviam dinheiro ou suprimentos de grupos humanitários destinados aos detidos. Além disso, as leis do país permitem que estrangeiros não autorizados, independentemente da idade, sejam forçados a trabalhar no país sem remuneração. Um cidadão líbio pode buscar migrantes em uma prisão mediante o pagamento de uma taxa, tornar-se seu "guardião" e supervisionar seu trabalho por determinado período de tempo.

Em 2017, a CNN transmitiu imagens de um mercado de escravos na Líbia, no qual os migrantes eram vendidos para trabalhar na agricultura; os lances começavam em 400 dinares (R$ 500, na cotação mais atual), por pessoa. Neste ano, mais de uma dúzia de migrantes de vários centros de detenção, alguns com apenas 14 anos de idade, disse à Anistia Internacional ter sido forçada a trabalhar em fazendas ou em casas particulares e a limpar e carregar armamento em acampamentos militares.

Também segundo a lei líbia, estrangeiros —incluindo migrantes econômicos, requerentes de asilo e vítimas de tráfico ilegal— podem ser detidos indefinidamente, sem acesso a um advogado. Como aconteceu com Candé. E como aconteceu comigo e com a minha equipe.

Eu não tinha sido o único a ser sequestrado naquela noite. Minha equipe tinha sido interceptada quando ia jantar perto do hotel. Meia dúzia de homens mascarados e armados bloqueou a van que a levava, bateu no motorista e vendou meus colegas. Fomos todos levados a uma sala de interrogatório em uma prisão secreta, onde fui socado novamente na cabeça e nas costelas. Também ameaçavam minha equipe.

"Você é um cachorro!", gritou um deles com o nosso fotógrafo, Pierre Kattar, batendo no rosto dele. Eles sussurraram ameaças sexuais à única mulher da equipe, a cineasta holandesa Mea Dols de Jong: "Quer um namorado líbio?". Após algumas horas, removeram cintos, anéis e relógios e nos colocaram em celas.

Desde então, descobri —comparando imagens de satélite com o pouco que vimos da área circundante— que fomos detidos numa prisão secreta a centenas de metros da embaixada italiana. Os captores nos disseram fazer parte do Serviço de Inteligência da Líbia, uma agência do Governo de Unidade Nacional, que também supervisiona Al Mabani, embora tenha ligações com a milícia chamada Brigada Al-Nawasi.

Eu fui colocado em uma cela isolada, com um banheiro, um chuveiro, um colchão de espuma e uma câmera instalada no teto. Todos os dias eu era questionado em uma sala de interrogatório por horas a fio. "Sabemos que você trabalha para a CIA", dizia um homem. "Aqui na Líbia, a espionagem é punida com a morte." Às vezes, ele colocava uma arma na mesa ou apontava para a minha cabeça.

Para meus captores, as medidas que eu havia tomado para proteger a mim e à minha equipe se tornaram prova da minha culpa. Por que eles usavam dispositivos de rastreamento e carregavam dinheiro e cópias de seus passaportes em seus sapatos? Por que eu tinha dois "dispositivos de gravação secreta" em minha mochila (um Apple Watch e uma GoPro) junto com um pacote de papéis intitulado "documento secreto" (uma lista de contatos de emergência intitulada "documento de segurança")?

O fato de eu ser jornalista era menos uma defesa e mais um crime secundário. Meus captores me disseram que era ilegal entrevistar migrantes sobre abusos em Al Mabani. "Por que você está tentando envergonhar a Líbia?", perguntaram. Cada vez mais desesperado, desmontei parte do encanamento do banheiro para tentar afrouxar as barras da janela. Também batia na parede da minha cela e ouvia Kattar, o fotógrafo, bater de volta, o que de alguma forma achava reconfortante.

Por sorte, minha esposa havia ouvido o meu sequestro pelo telefone e alertou o Departamento de Estado dos EUA. Junto com o serviço de relações exteriores holandês, a agência começou a pressionar o Governo de Unidade Nacional para nos libertar. A certa altura, fomos retirados das celas para gravar um vídeo como "prova de vida". Os carcereiros nos disseram para lavar o sangue e a sujeira dos rostos e nos sentaram num sofá em frente a uma mesa com refrigerantes e doces. Mandaram-nos sorrir e nos instruíram a dizer que estávamos sendo tratados com humanidade. "Falem e ajam normalmente."

Depois de dias, a milícia concordou em nos deixar ir. Fomos obrigados a assinar documentos de "confissão" escritos em árabe em papel timbrado do Departamento de Combate à Hostilidade e com o nome do major general Hussein Muhammad Al-A’ib. Quando perguntamos o que diziam os documentos, nossos captores riram. Eles ficaram com nossos computadores, discos rígidos, telefones, dinheiro, equipamentos de filmagem e minha aliança de casamento.

A experiência —profundamente assustadora, mas misericordiosamente curta— ofereceu um vislumbre do mundo da detenção por tempo indeterminado na Líbia. Muitas vezes pensei no encarceramento de Candé, que durou meses, e no seu resultado terrível.

Este é o terceiro artigo de uma série produzida por The Outlaw Ocean Project, cujo diretor é Ian Urbina, em parceria com a Folha. O especial examina a parceria da União Europeia com a Líbia na captura e detenção de migrantes que tentam chegar à Europa. O Outlaw Ocean Project é uma organização jornalística sem fins lucrativos com base em Washington cujo foco são problemas ambientais e de direitos humanos que ocorrem em alto-mar.

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