Congoleses como Moïse estão entre imigrantes mais mal remunerados no Brasil

Língua é barreira, e racismo e carência de políticas de inserção dos refugiados também pesam

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Guarulhos

No ano em que Moïse Mugenyi ​​Kabagambe, jovem negro espancado até a morte no Rio, chegou ao Brasil, 73 cidadãos da República Democrática do Congo receberam registro de residência no país, a maioria sob a condição de refugiados. Era 2011, e desde então a cifra anual sempre foi maior, com raras exceções.

Nos últimos 12 anos, de 2010 a 2021, 2.015 congoleses foram registrados no Brasil, de acordo com levantamento do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) feito a pedido da Folha.

O número real de imigrantes do país localizado na região central da África, porém, é maior. Como o reconhecimento da condição de refugiado pode demorar anos, o OBMigra estima que pelo menos outros 1.400 congoleses tenham chegado ao Brasil nesse período e ainda não recebido registro de residência.

Homens jogam partida de damas em Goma, cidade da República Democrática do Congo
Homens jogam partida de damas em Goma, cidade da República Democrática do Congo - Guerchom Ndebo - 18.jan.22/AFP

Parte importante da comunidade de imigrantes no Brasil e uma das principais nacionalidades a ter a condição de refugiado reconhecida no país nos últimos anos, junto a venezuelanos e sírios, os congoleses, porém, estão entre os mais mal remunerados.

O pagamento médio a um imigrante da República Democrática do Congo no mercado de trabalho formal brasileiro foi de R$ 1.862 em 2020, menos que a média geral dos imigrantes (R$ 4.878) e abaixo inclusive da média dos imigrantes africanos (R$ 2.698). Os dados são do último relatório anual do OBMigra.​

A única nacionalidade mais mal remunerada é a de haitianos, com média de R$ 1.696. A diferença fica ainda mais latente quando o escopo da análise são imigrantes do Norte global. Portugueses, por exemplo, recebem em média R$ 8.738, e americanos, R$ 22.425.

Os números mostram que o rendimento médio total do imigrante no Brasil foi reduzido nos últimos anos —de R$ 10.926 em 2011, caiu para R$ 4.878 em 2020, com valores já deflacionados. O OBMigra analisa que a queda tem relação direta com a mudança na composição da força de trabalho, já que a última década foi marcada pelo aumento da imigração de cidadãos de países do Sul global.

Tadeu de Oliveira, coordenador de Estatísticas do observatório, afirma que o Brasil tem dificuldade em assegurar uma inserção digna do imigrante na sociedade, ainda que o país tenha se tornado mais receptivo em termos da legislação. "Embora tenham qualificação profissional, muitos imigrantes que chegam em situação de vulnerabilidade sofrem uma diferenciação. A formação profissional não é reconhecida, na maioria das vezes. Quando o tom da pele é negro, entra ainda o racismo estrutural, outro componente da xenofobia, como no caso do Moïse."

O jovem foi morto a pauladas em um quiosque da Barra da Tijuca, onde trabalhava. A família afirmou que Moïse havia ido ao local cobrar duas diárias atrasadas, e levantou a hipótese de que por isso ele foi morto, ainda que parentes não tenham citado a suposição em depoimento à polícia. Os três suspeitos do crime negam que a motivação do espancamento tenha sido a cobrança da dívida trabalhista.

Há, ainda, a barreira linguística. Congoleses e haitianos falam em sua maioria francês, língua oficial de seus países. Oliveira diz faltar uma política clara que estabeleça um sistema de tradução —para que eles sejam mais bem acolhidos quando chegam— e que crie condições para que aprendam o português.

Migrantes da RDC, em geral, desembarcam no Brasil em busca de trabalho, mas também à procura de segurança, algo raro em seu país. Em depoimento ao jornal O Globo a mãe de Moïse, a comerciante Lotsove Lolo Lavy Ivone, relatou que a família fugia de um conflito étnico quando veio para cá.

Aqui, vale uma diferenciação importante: o mesmo gentílico (congolês) é usado para se referir aos cidadãos da República Democrática do Congo e aos da República do Congo, países distintos, ainda que fronteiriços. A migração do Congo para o Brasil ocorre em volume bem menor que a com origem na RDC.

Em guerra quase que constante desde que conquistou a independência da Bélgica, em 1960, a RDC convive com outros tipos de tensão além da étnica. "Criou-se uma cultura de guerra, quase permanente, que tem a ver com disputas econômicas, principalmente em torno do coltan [mineral usado em produtos eletrônicos, como aparelhos celulares]", diz Bas'Ilele Malomalo, professor da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira).

A começar pelo fato de o país ter vivido sob o jugo de uma ditadura por mais de três décadas, de 1965 a 1997, logo após se tornar independente. O líder era Mobutu Sese Seko (1930-1997), cujo legado foi uma economia em frangalhos e um histórico de abusos de direitos humanos. A primeira grande guerra do país —que então se chamava Zaire— foi justamente para derrubá-lo, entre 1996 e 1997.

Já a segunda guerra congolesa, esta com contornos internacionais, chegou a ficar conhecida como "a guerra mundial da África" e envolveu diferentes países que fazem fronteira com a RDC. À época comandado por Laurent-Desiré Kabila, o país assistiu a rebeldes apoiados pelos governos de Uganda e Ruanda tentarem derrubar o governo, enquanto Angola, Namíbia e Zimbábue o apoiavam.

O conflito, que durou de 1998 a 2003 e deixou uma estimativa de 3 milhões a 5,4 milhões de mortos, expôs aquilo que, até hoje, está no centro das disputas travadas na RDC: a riqueza mineral, concentrada na parte leste do território congolês, na fronteira com Ruanda e Uganda. Recursos naturais, como ouro, diamantes, manganês e o coltan, transformaram-se numa espécie de economia de guerra.

A instabilidade não se encerrou com assinaturas de acordos de paz. A convivência com grupos armados segue expondo os congoleses à violência. Um dos principais grupos que têm desestabilizado o país são as Forças Democráticas Aliadas (FDA), formadas no leste da RDC em 1995 por dois grupos de oposição ao governo de Uganda. Inicialmente, o grupo chegou a contar com o apoio congolês.

A violência escalou, e em 2013 os militares da RDC iniciaram uma grande ofensiva contra o grupo. Em 2015, a FDA, considerada uma organização terrorista pelos Estados Unidos e formada por mil combatentes, de acordo com estimativas das Nações Unidas, prometeu lealdade ao grupo terrorista Estado Islâmico (EI), embora não seja clara a real ligação entre os grupos.

O volume de ataques, com consequências a civis, cresceu nos últimos anos. O Monitor de Segurança Kivu, que mapeia distúrbios na turbulenta região oriental do país, calcula quase 14 mil mortes e mais de 7.200 pessoas sequestradas —ou que estariam desaparecidas em meio aos conflitos— desde 2017.​

O país é hoje comandado por Félix Tshisekedi, eleito num pleito com acusações internacionais de fraude. Bas'Ilele Malomalo, da Unilab, diz que o presidente tem levado adiante uma leve recuperação econômica iniciada pelo antecessor, Joseph Kabila, mas que não foi capaz de traduzi-la em desenvolvimento humano.

A pandemia de coronavírus também não ajudou —1.278 pessoas morreram oficialmente no país por Covid, cifra reconhecidamente subnotificada. "Há um crônico problema de liderança. Os líderes não conseguem fortalecer o Exército e a máquina da administração pública. Também não têm sido capazes de expandir a economia do extrativismo para outros setores", afirma Malomalo.

No Brasil desde 1997, o professor universitário veio com a ajuda de um convento para estudar. Graduou-se em teologia, fez mestrado em ciências da religião e doutorado em sociologia. Foram raras as vezes em que voltou para a República Democrática do Congo. "Temia pela minha vida. Lá, não me sinto seguro."

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