Descrição de chapéu China Brics Rússia

Aliadas na ascensão do PC Chinês, Moscou e Pequim quase foram à guerra em 1969

Conflito entre países marcou o mundo na Guerra Fria; reaproximação só veio em 1989

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São Paulo

Na segunda-feira passada (28), Xi Jinping e Vladimir Putin trocaram amabilidades durante uma videoconferência na qual foi renovado o tratado de amizade entre China e Rússia.

"Como o mundo entrou em um período de turbulência e mudanças, e a humanidade enfrenta riscos diversos, a estreita cooperação sino-russa traz energia positiva à comunidade internacional", disse o líder chinês, no poder desde 2012.

Putin e Xi Jinping durante encontro dos Brics realizado no Brasil
Putin e Xi Jinping durante encontro dos Brics realizado no Brasil - Ramil Sitdikov - 13.nov.19/Sputnik via Reuters

O Tratado de Boa Vizinhança e Cooperação Amigável entre a República Popular da China e a Federação Russa, disse o chefe do Kremlin, tem "um papel estabilizador nas questões globais, em um contexto de intensificação geopolítica". O texto fora assinado pela primeira vez há 20 anos pelo próprio Putin, um jovem presidente, e o mandarim comunista da ocasião, Jiang Zemin.

Como apontou na semana retrasada documento da Otan, a aliança militar liderada pelos Estados Unidos, Pequim e Moscou estão mais próximas do que nunca —inclusive no campo da segurança, o que tanto Putin quanto Xi reforçam a cada rodada de conversas recentes. Nem sempre foi assim.

Um dos pontos agudos da Guerra Fria foi o rompimento entre a União Soviética, superpotência ao lado dos EUA, e a China que emergiu socialista da guerra civil em 1949.

O cisma sino-soviético é um grão de sal sempre lembrado por analistas das relações ora amistosas entre russos e chineses, que de todo modo visam confrontar as ações de Washington em nível global.

Ele teve origem em desconfianças antigas, que remetiam a disputas fronteiriças que se estendiam desde o século 17. Parte do mito fundador do Estado comunista chinês, sob o comando de Mao Tse-tung (1893-1976), era o de uma luta popular contra o passado de humilhações impostas por potências estrangeiras às dinastias que comandavam a China.

A Rússia havia sido uma delas, ao asseverar suas fronteiras na Sibéria e estender seu império até o oceano Pacífico. Mesmo já em sua encarnação soviética, quando a China ainda era fragmentada, houve duas intervenções armadas pontuais de Moscou no vizinho, em 1929 e 1934.

Mas Mao também era um marxista-leninista radical e um fiel seguidor dos desígnios do ditador Josef Stálin (1878-1953), tendo tido apoio soviético ao seu agora centenário Partido Comunista Chinês. Assim, inicialmente a fundação da República Popular foi um gol geopolítico do comunismo liderado por Moscou, união que logo seria testada na Guerra da Coreia (1950-53), na qual ambos apoiaram o norte socialista.

A morte de Stálin em 1953 mudou as regras de engajamento. Nos três anos seguintes, após consolidar seu poder, o sucessor Nikita Khrushchov (1894-1971) trabalhou para iniciar a chamada desestalinização do regime. Em 1956, num famoso discurso, os crimes brutais de Stálin foram enfim denunciados pelo novo líder ao mundo. Mao não gostou: considerava tal movimento uma traição aos princípios revolucionários e um revisionismo histórico.

Aos poucos, os dois países foram se estranhando. Apesar de sua retórica inflamada e os momentos de grave crise que passou com o Ocidente, como no embate acerca dos mísseis posicionados em Cuba em 1962, Khrushchov trabalhava pela chamada coexistência pacífica.

Um veterano de Stalingrado, ele sabia o preço da guerra. São vários os relatos de seu horror ante a posição de Mao, que havia sugerido que um conflito nuclear global seria útil para varrer a metade capitalista do mundo.

Além disso, o novo líder buscava uma política que ultrapassasse a "revolução pela revolução" e, por isso, patrocinou avanços científicos como o lançamento do satélite Sputnik em 1957 e mais acesso a bens de consumo para os soviéticos.

Mao, comandando milhões de paupérrimos camponeses, tinha outras prioridades. Em 1960, num encontro de líderes comunistas em Bucareste, na Romênia, os líderes trocaram acusações públicas sobre o rumo de suas revoluções —Moscou se via desafiada no papel de farol do socialismo.

O líder chinês suspeitava, com razão, que os soviéticos queriam ver a China enfraquecida ao tentarem mantê-la fora do clube nuclear. Ao negociar um tratado contra testes atmosféricos de ogivas atômicas, Khrushchov e o Ocidente na prática queriam tolher os chineses.

Pequim havia recebido ajuda para desenvolver sua bomba das mãos de Stálin em 1951, em troca de fornecimento de urânio, matéria-prima das armas. Ao fim, com muito esforço, a bomba chinesa só foi explodir em 1964, e hoje o país tem o terceiro arsenal do mundo, bem atrás de russos e americanos.

Em 1959, Moscou passou a dar apoio à Índia em suas escaramuças fronteiriças com os chineses, que descambaram para uma guerra em 1962 —vencida por Mao, mas inconclusa, como os choques nos Himalaias no ano passado demonstram.

Em 1961, Moscou e Pequim romperam relações. Mao chamaria Khrushchov de covarde e entreguista por não ter ido à guerra nuclear na crise de Cuba.

A animosidade diminuiu um pouco após o líder soviético ser derrubado num golpe palaciano, em 1964, mas a radicalização do regime maoísta com a Revolução Cultural de 1966 afastou um reatamento.

A rixa teve forte impacto nos meios intelectuais esquerdistas mundo afora, particularmente na Europa. O movimento de maio de 1968 na França tinha a China maoísta como fonte inspiradora, e a defesa tardia do stalinismo esposada por Mao gerou conflitos em lugares tão distantes quanto o Brasil.

Houve fissuras em todo o mundo comunista. A Albânia rompeu com Moscou para unir-se a Pequim, que por sua vez era crítica da Iugoslávia e seu não alinhamento. Conflitos anticoloniais eram ora financiados pelos soviéticos, ora pelos chineses.

Em 1969, contudo, a disputa quase escalou para uma guerra total. Por mais de seis meses, houve ataques mútuos em pontos de sua longa fronteira, de mais de 4.380 km. Mas o foco chinês se voltava para outro lado. Tanto Mao quanto os Estados Unidos viram uma oportunidade na rixa com Moscou. A China precisava de capital, e Washington, abrir uma segunda frente rival de Moscou.

A visita de Richard Nixon (1913-94) a Mao em 1972, que levou ao reatamento diplomático entre os países sete anos depois, acabou por mudar o mundo: provocou a integração da economia chinesa ao capitalismo global, engendrada pelo sucessor de fato do líder, Deng Xiaoping (1904-97).

A morte de Mao em 1976 e o pragmatismo de Deng acabaram por esfriar o conflito com os soviéticos, que já entravam em sua fase agônica como superpotência.

Houve ainda um outro soluço em 1979, quando a China invadiu o Vietnã, que era apoiado pelos soviéticos, e deu ajuda aos rebeldes muçulmanos contra a ocupação do Afeganistão por Moscou.

Os países retomaram relações plenas apenas quando Mikhail Gorbatchov presidia sobre o ocaso do regime de 1917, em 1989.

Na reencarnação da Rússia, a China já começava seu caminho para se tornar a segunda potência econômica mundial. Assim, o passado foi deixado para trás, e um tratado em 2004 encerrou de vez as pendências fronteiriças.

O reequipamento militar chinês, hoje bem mais independente, foi calcado em material russo. Há limites, contudo, à percebida aliança, e Putin é um aluno cioso de sua história: nas duas vezes em que firmou tratado com rivais poderosos, em 1807 e 1941, a Rússia acabou invadida.

Saindo do campo militar e indo ao econômico, com Xi transbordando audácia geopolítica, não é preciso muita imaginação para antever quem seria o sócio majoritário de tal casamento.

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