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Yuval Noah Harari

Por que Vladimir Putin já perdeu esta guerra

Para Yuval Noah Harari, Rússia pode conquistar a Ucrânia, mas ucranianos mostraram que não vão deixar os russos ficarem com ela

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Yuval Noah Harari

Historiador israelense e autor de "Sapiens: Uma Breve História da Humanidade".

Menos de uma semana depois de iniciada a guerra, parece cada vez mais provável que Vladimir Putin caminha para uma derrota histórica. Ele pode vencer todas as batalhas, mas ainda assim perder a guerra.

O sonho de Putin de reconstruir o Império Russo sempre se baseou na mentira de que a Ucrânia não é uma nação de verdade, de que os ucranianos não são um povo de verdade e de que os habitantes de Kiev, Kharkiv e Lviv sonham em ser governados por Moscou. É uma mentira absoluta.

A Ucrânia é uma nação com mais de mil anos de história, e Kiev já era uma grande metrópole quando Moscou nem sequer tinha status de vilarejo. Mas o déspota russo já contou sua mentira tantas vezes que parece acreditar em si mesmo.

Civis ucranianos carregam fuzis em ponte explodida por ataque russo em Kiev - Aris Messinis - 1.mar.22/AFP

Quando planejou sua invasão da Ucrânia, Putin pôde contar com muitos fatos conhecidos. Sabia que, em termos militares, a Rússia supera a Ucrânia de longe. Sabia que a Otan não enviaria tropas para socorrer a Ucrânia. Sabia que a dependência europeia do óleo e gás russos faria países como a Alemanha hesitarem em impor sanções duras.

Baseado nesses fatos conhecidos, seu plano era atacar a Ucrânia com força e rapidez, decapitar seu governo, instalar um regime fantoche em Kiev e enfrentar as sanções ocidentais.

Mas esse plano encerrava uma grande incógnita. Como os americanos foram descobrir no Iraque e os soviéticos aprenderam no Afeganistão, é muito mais fácil conquistar um país do que conservá-lo sob controle depois. Putin sabia que tinha o poderio suficiente para conquistar a Ucrânia. Mas será que a população ucraniana simplesmente aceitaria o regime fantoche de Putin? O líder russo apostou que sim.

Afinal, como explicou inúmeras vezes a quem estivesse disposto a ouvir, a Ucrânia não é uma nação de verdade e os ucranianos não são um povo de verdade. Em 2014, os habitantes da Crimeia praticamente não opuseram resistência aos invasores russos. Por que 2022 seria diferente?

Está ficando mais claro a cada dia que passa que Putin está perdendo a aposta. O povo ucraniano está resistindo com todas suas forças, ganhando a admiração do mundo inteiro —e ganhando a guerra. Muitos dias sombrios estão pela frente. Os russos ainda podem conquistar toda a extensão da Ucrânia. Mas para vencer a guerra, os russos teriam que conservar a Ucrânia em suas mãos, e isso eles só poderão fazer se os ucranianos permitirem. Parece cada vez mais improvável que isso aconteça.

Cada tanque russo destruído e cada soldado russo morto fortalecem a coragem dos ucranianos para resistir. E cada ucraniano morto intensifica o ódio que os ucranianos sentem dos invasores. O ódio é a mais cruel das emoções. Mas para nações oprimidas, é um tesouro oculto. Enterrado no fundo do coração, é capaz de conservar a resistência viva por gerações.

Para recriar o Império russo, Putin precisa de uma vitória relativamente sem sangue, que leve a uma ocupação relativamente isenta de ódio. Pelo fato de estar derramando mais e mais sangue ucraniano, Putin está garantindo que seu sonho jamais se realize. Não será o nome de Mikhail Gorbatchov que será inscrito na certidão de óbito do império russo: será o de Putin. Gorbatchov deixou russos e ucranianos sentindo-se como irmãos; Putin os converteu em inimigos e assegurou que de agora em diante a nação ucraniana se defina em oposição à Rússia.

Em última análise, as nações são erguidas sobre histórias. Cada dia que passa acrescenta mais histórias que os ucranianos vão relatar não apenas nos dias sombrios pela frente, mas nas décadas e gerações ainda por vir. O presidente que se recusou a abandonar a capital, dizendo aos EUA que precisa de munição, não de uma carona; os soldados da ilha da Cobra que disseram "vá se f..." a um navio de guerra russo; os civis que tentaram barrar tanques russos, sentando-se em seu caminho. Esses são os relatos com os quais nações são construídas. A longo prazo, essas histórias valem mais que tanques.

O déspota russo deveria saber disso tão bem quanto qualquer um. Criança, ele cresceu ouvindo histórias sobre atrocidades alemãs e a bravura russa no cerco de Leningrado. Agora está produzindo histórias semelhantes, mas tomando para si o papel de Hitler.

As histórias de bravura ucraniana fortalecem a determinação não apenas dos ucranianos, mas do mundo inteiro. Dão coragem aos governos de países europeus, à administração dos EUA e até aos cidadãos oprimidos da Rússia. Se ucranianos ousam barrar um tanque com suas mãos apenas, o governo alemão pode ousar lhes fornecer alguns mísseis antitanque, o governo americano pode ousar cortar o acesso da Rússia ao sistema Swift e cidadãos russos podem ousar manifestar publicamente sua oposição a esta guerra sem sentido.

Todos nós podemos ser inspirados a ousar fazer alguma coisa, quer seja fazer uma doação, acolher refugiados ou ajudar com a luta online. A guerra na Ucrânia vai moldar o futuro do mundo inteiro. Se deixarmos que a tirania e a agressão vençam, todos nós sofreremos as consequências. Não vale a pena continuar como meros observadores. É hora de dar um passo à frente e dar a cara para bater.

Infelizmente, é provável que esta guerra dure muito tempo. Assumindo formas diferentes, é bem possível que continue por anos. Mas a questão mais importante já foi decidida. Os últimos dias comprovaram para o mundo inteiro que a Ucrânia é uma nação muito real, que os ucranianos são um povo muito real e que eles decididamente não querem viver sob um novo império russo. A principal questão que resta é quanto tempo será preciso para essa mensagem penetrar as muralhas espessas do Kremlin.

O que se sabe da guerra da Ucrânia e a invasão russa

Perguntas e respostas sobre o conflito

  1. O que quer Putin com a invasão da Ucrânia?

    A prioridade do presidente russo é evitar que a Ucrânia, ou qualquer outro país ex-soviético, entre na Otan e, de forma secundária, na União Europeia.

  2. O que a Otan tem a ver com o conflito?

    Em 2008, a aliança militar ocidental prometeu incorporar a Ucrânia e a Geórgia. Isso levou a Rússia a invadir a Geórgia meses depois e bloquear a adesão do país ao grupo.

  3. Como o Ocidente reagiu à invasão?

    Governos da Europa e dos EUA endureceram sanções contra a Rússia, enviaram armas ao Exército ucraniano e excluíram bancos russos da plataforma financeira global Swift.

  4. Como as sanções afetaram a economia da Rússia?

    O rublo caiu a mínimas históricas desde a invasão. Para conter a desvalorização da moeda, o Kremlin proibiu residente da Rússia de transferir dinheiro para o exterior.

  5. O que os russos pensam da guerra?

    Embora Putin mantenha apoio popular relevante, diversos ativistas, celebridade e até oligarcas ligados ao Kremlin criticaram a guerra, e milhares de manifestantes foram presos.

  6. Quem é Zelenski, presidente da Ucrânia alvo de Putin?

    O ator e comediante de 44 anos foi eleito líder do país após ficar famoso interpretando um presidente ucraniano em uma série de TV. Agora, lidera a resistência à invasão russa.

  7. A Ucrânia já não estava em guerra civil antes da invasão?

    Sim. Em 2014, após a queda do governo aliado do Kremlin em Kiev, Putin anexou a Crimeia e insuflou uma guerra civil no leste ucraniano que estava congelada nos últimos anos.

  8. Qual a posição do Brasil sobre o conflito?

    O presidente Jair Bolsonaro (PL) defendeu a neutralidade sobre a crise na Ucrânia. Já a diplomacia do país tem se manifestado na ONU contra a invasão pela Rússia

Tradução de Clara Allain

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