Brasileiro na Turquia ajuda afegãos em situação irregular a tentar emigrar

Jovens fugiram do Talibã e querem obter refúgio no Brasil e nos EUA; produtor cedeu até o apartamento

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Duque de Caxias (RJ)

No meio do caminho entre o Afeganistão sob jugo do Talibã e países como Estados Unidos, Canadá e Brasil, um brasileiro tem sido o ponto de apoio para afegãos que fugiram do grupo fundamentalista e tentam emigrar para um futuro de mais segurança.

O produtor audiovisual Lucas Cabral Ferreira, 38, que mora em Istambul desde 2018, cedeu o próprio apartamento para esses jovens e ainda os ajuda com comida, aulas de idioma e com a documentação e os vistos, já que todos vivem na Turquia em situação irregular.

Jovens afegãos em posto de controle na fronteira com o Paquistão - AFP - 14.ago.21

Natural de Boa Esperança (MG) e criado em Campinas, Ferreira foi pela primeira vez para Istambul em 2014, numa viagem a turismo com a esposa e os dois filhos. Lá, viu despertar um interesse pelo terceiro setor ao se sensibilizar com os efeitos da crise migratória causada pela guerra civil na Síria.

O mineiro então começou a organizar caravanas de voluntários brasileiros para ajudar ONGs que prestavam assistência a refugiados do Oriente Médio na Grécia e na Turquia. Em 2018, decidiu expandir o projeto e alugou um salão no bairro de Tarlabasi para abrigar sua própria instituição, batizada de Borders of Love. Desde então, oferece aulas de inglês e jiu-jítsu para turcos de baixa renda e sírios.

Em outubro passado, por meio de um amigo norueguês, ele ficou sabendo da jornada de dois irmãos afegãos, de 14 e 16 anos, que estavam indo para a Turquia a pé e não tinham onde ficar quando chegassem. Ferreira decidiu encontrá-los e ceder seu apartamento —ele alugou um imóvel maior para onde se mudou com a família, a dez minutos de caminhada, no bairro de Ümraniye.

O produtor audiovisual, com outros brasileiros voluntários, toma conta dos dois, levando-os para fazer compras e cuidar da documentação do processo de visto para os EUA e o Canadá, países onde os irmãos pretendem se instalar.

Os jovens, que não revelam o nome por questão de segurança, fizeram o caminho por conta própria, durante 23 dias, passando por Paquistão e Irã. Eles deixaram a província de Kunduz, no norte do Afeganistão, incentivados pelo irmão mais velho, Habibullah Hussaini, 26, que hoje mora na França. Eles contam que o pai, que era policial, foi assassinado pelo Talibã em 2016 e a mãe morreu dois anos depois, de um ataque cardíaco. Com a irmã, obrigada a se casar aos 17 anos, não têm mais contato.

"Lucas e a família entraram na nossa vida como anjos. Quando eu mandei meus irmãos irem para a Turquia, eu não tinha plano, só orava para que Deus os protegesse", diz Habib, que trabalhava numa rádio afegã e deixou a família em 2015, com medo que o Talibã o perseguisse por causa da profissão. Ao sair do Afeganistão, ele passou por seis países até chegar à Dinamarca, onde foi acolhido por uma família por três anos. Com medo de ter a permissão para ficar em Copenhague negada, se mudou para a França.

Os pais adotivos dele foram os responsáveis por contatar o amigo de Ferreira pedindo ajuda para os irmãos. "Estou muito feliz por eles estarem na Turquia em segurança, mas preocupado com o que vem. Meus irmãos precisam ir para um país da Europa, para o Canadá, EUA, Brasil, onde possam ter um futuro."

Ferreira vê a instabilidade política do Afeganistão deixando mais jovens em vulnerabilidade e os pedidos de ajuda se multiplicarem. Em novembro, o brasileiro resgatou um afegão de 21 anos que, depois de ter pagado coiotes para levá-lo à Turquia, estava em uma casa superlotada havia mais de um ano, com outros imigrantes em situação irregular, sem acesso regular a comida.

"Todos que eu peguei só tinham uma sacolinha e a roupa do corpo", conta. Hoje, o afegão tenta viajar para o Brasil, onde estão seus pais, que fugiram após a tomada de Cabul pelo Talibã. Depois de três meses de espera, o visto humanitário foi concedido pela embaixada brasileira no final de março. Agora a preocupação é conseguir um documento que possa ser apresentado à companhia aérea permitindo que a viagem se dê mesmo sem um certificado de vacinação contra a Covid.

Essa modalidade de acolhida para afegãos foi regulamentada em setembro, a exemplo do que se dá com sírios, haitianos e, mais recentemente, ucranianos. Mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares têm prioridade. As embaixadas em Islamabad (Paquistão), Teerã (Irã), Moscou (Rússia), Ancara (Turquia), Doha (Qatar) e Abu Dhabi (Emirados Árabes) processam os pedidos —o Brasil não possui representação diplomática no Afeganistão.

Ainda em novembro, Ferreira recebeu um outro afegão, de 14 anos. Ele e a família estavam refugiados no Irã e pagaram coiotes para os levarem à Grécia, mas na fronteira com a Turquia a polícia os separou: o jovem entrou no país, mas os pais e os irmãos tiveram que voltar.

Na empreitada com o mineiro para reunir os documentos e tentar vistos está Cristian Alfradique, 27, que mora na Turquia desde 2019 e é gerente de uma empresa de importação e exportação. Por causa do trabalho, ele viaja constantemente —inclusive para o Irã— e tem tentado criar uma rede de contatos que possa ajudar a família do garoto a ir para o Brasil antes dele.

"Não adianta eu levar o filho se a família não conseguir chegar. Ele ficaria no orfanato por tempo indeterminado, sem falar inglês tão bem, num país em que não conhece o idioma, com cultura e clima diferentes", diz.

O produtor audiovisual Lucas Cabral Ferreira, que tem uma ONG na Turquia e ajuda jovens afegãos a fugir do Talibã e chegar ao Brasil e aos EUA. Ele posa com a mulher, Joziane, e os filhos. Foto: Divulgação
O produtor audiovisual Lucas Cabral Ferreira, com a mulher e os filhos - Divulgação

Enquanto os pais do afegão tentam o contato com a embaixada brasileira em Teerã, Alfradique, que conseguiu a guarda do adolescente, e Ferreira tentarão a concessão de um visto turco para o inquilino.

Mais recentemente, em janeiro, uma adolescente de 16 anos chegou ao apartamento alugado de Ferreira. Levada por coiotes, que segundo ela a estupraram e roubaram durante o caminho, a afegã agora tenta dar início ao processo de visto humanitário para o Brasil. O produtor se comunica com a família dela, que emigrou para o Irã, para tentar achar saídas —a falta de documentos tem sido uma barreira.

Por enquanto, Ferreira e a mulher, Joziana, 38, têm ajudado a adolescente a aprender inglês e arcam com as despesas de saúde. A família deve desembolsar cerca de R$ 5.000 para o tratamento bucal dela, que nunca tinha usado escova de dentes antes de ser acolhida em Istambul.

"Ela está começando a ler, evoluindo bem. De vez em quando, me abraça e diz que me ama."

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