Descrição de chapéu América Latina

Em julho, saímos às ruas de Cuba de forma ingênua, afirma opositor

Para Manuel Cuesta Morúa, parte da oposição cubana pensa, de forma errônea, que mudanças ocorrerão no curto prazo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Havana

Sorridente, olhar incisivo e posições claras. Manuel Cuesta Morúa, 59, aparece pontualmente em um café de Havana para ser entrevistado. Sem medo de mostrar o rosto num país assustado com a própria sombra, discorre com naturalidade sobre suas últimas detenções. Uma delas nos protestos de 11 de julho passado e outra em 15 de novembro, quando uma tentativa de repetir as manifestações fracassou.

"O que mais nos preocupa hoje são os abusos de direitos humanos por meio de sentenças desproporcionais e os relatos de tortura e desaparecimentos", diz. Nos últimos meses, o regime condenou com penas de até 25 anos de prisão centenas de ativistas, algumas dezenas dos quais menores de idade.

"Estou com o foco nisso, em conseguir uma anistia a essas pessoas. Há muito a ser feito em Cuba. Pode parecer em um ritmo lento para quem está no exterior, mas as coisas estão se movendo", conta.

O historiador e opositor cubano Manuel Cuesta Morúa durante passagem por São Paulo, em 2016
O historiador e opositor cubano Manuel Cuesta Morúa durante passagem por São Paulo, em 2016 - Marcus Leoni - 24.fev.16/Folhapress

As condições materiais que levaram aos atos de 11 de julho estão melhores ou piores hoje em Cuba? O desabastecimento de alimentos e remédios continua muito ruim e, com a inflação [77,3% segundo dados oficiais do regime, que não contabilizam as movimentações do mercado negro], a situação dos mais pobres, seja nas províncias ou na periferia de Havana, é terrível. As condições estão muito piores.

Os pilares da economia cubana estão muito corroídos: o turismo, que recentemente começou a se recuperar após a crise gerada pela pandemia, mas de modo incipiente, a medicina, que já ficou para trás em seu vanguardismo histórico, e as remessas do exterior, que diminuíram, devido à Covid.

Então as condições para uma nova explosão social existem. O que a impede? As altas e desproporcionais condenações a manifestantes do 11J deixaram todos amedrontados, além da repressão daqueles dias. Os números oficiais não são confiáveis, mas sabemos, pela reclamação das famílias, que há desaparecidos. O regime pode dizer que fugiram do país, que estão escondidos, mas como ter certeza de que não estão mortos?

E temos uma repressão que é lenta, vem acontecendo desde julho. Joga-se com a imprevisibilidade. Não prenderam você hoje, mas podem fazer isso amanhã. Sua casa pode ser cercada, você pode ficar sem internet ou ser exposto pelos veículos estatais. E enquanto isso vamos ouvindo relatos dos libertados, de que estão aplicando tortura. Como conviver com essa incerteza? É muito difícil.

Obviamente as pessoas estão com medo, além de a situação material —de comida e de remédios— ter piorado, fazendo com que as preocupações se limitem, para muitos, por ora, a resolver esses problemas. O regime age como sempre. Repressão, brutalidade, depois um afrouxamento que permite a você sair do país ou até ajudá-lo a sair. Depois vem uma sensação de calma. A diferença é que de fato algo se rompeu em 11 de julho, e uma próxima explosão social será diferente.

Em que sentido? Insisto que devemos tentar esgotar a via cívica e legal, ou seja, fazer respeitar o que está na Constituição. E, nesse sentido, a liberação dos presos políticos, uma anistia, é o que devemos buscar. Por isso estamos trabalhando com as famílias dos presos. Com eles estamos preparando um documento, a ser levado publicamente ao governo, pelo indulto a essas penas, ao respeito dos menores de idade.

É difícil para quem está fora de Cuba imaginar que ainda resta um caminho pela via institucional, mas eu creio ser necessário insistir para que esse passo seja respeitado se queremos construir uma cidadania. Não nos serve de nada um enfrentamento aberto, desorganizado e com ainda mais violência.

Foi por isso que o movimento do 15 de novembro foi anunciado e convocado com antecipação, porque respondia a algo que a Constituição nos garante, o direito a manifestação pacífica. Serviu para mostrar ao mundo que quem não respeitou suas próprias regras foi o regime, que reprimiu com brutalidade algo que a Carta garante. Faremos a mesma coisa com esse pedido geral de anistia aos que exerceram o direito de se manifestar garantido constitucionalmente e receberam condenações absurdamente desproporcionais e maus tratos, incluindo menores de idade, algo que contraria tratados internacionais.

E se isso não funcionar? Se vamos sair às ruas outra vez, temos de sair pacificamente, mas não de forma ingênua. Saímos assim em 11 de julho. Saímos como estávamos, com a cara descoberta, o que permitiu que nos identificassem e fossem atrás de quase todos os que apareceram em imagens. Saímos com sandálias, que não permitem correr muito, de bermudas, como vivemos aqui. Da próxima vez, defendo cara tapada, roupa apropriada —não para responder à violência, mas para não ser presa fácil como fomos.

Muitos questionaram o anúncio prévio da manifestação de 15 de novembro como razão de seu fracasso, por avisar o regime do que aconteceria. O resultado foi o esperado? Sim, no sentido de que mostramos à opinião pública internacional que estamos atuando dentro de uma lei do próprio regime —a Constituição de 2019 garante o direito de reunião— e pressionamos o governo a se mostrar ainda mais brutal e a admitir que a versão mais "humana" ou democrática que a gestão queria vender era uma farsa.

E também no sentido de educar as novas gerações no civismo. Não vamos conseguir nada da noite para o dia e não achávamos que conseguiríamos no dia 15 de novembro. Mas o trabalho aqui é lento, e a hora agora é de construir consciência cívica. As coisas tomam tempo, temos uma geração impulsionando os protestos que quer mudanças rápidas, eu não creio que seja esse o caminho.

O senhor acha que [o ex-líder do Archipiélago, grupo que virou o rosto das manifestação de 11 de julho] Yunior García, que fez um acordo com o regime e se refugiou na Espanha, não entendeu isso? Nós organizamos o 15N juntos, Yunior estava presente o tempo todo, mas é dos que pensam que com uma manifestação derruba-se um governo e se constrói uma nação. Não julgo sua atitude como ser humano, de não aguentar o assédio, de pensar em sua família e acabar pedindo para sair. Pode acontecer com qualquer um. Mas ele foi afoito, queria mudar tudo rapidamente. Viu que não seria possível e foi embora, frustrando toda uma geração que via nele uma opção. Ele tem o legítimo direito de ir embora se não aguenta a pressão, mas o fez de modo a abandonar quem se arriscou pelo movimento.

Faz diferença que ainda exista um Castro vivo e apoiando a Revolução? Apenas simbolicamente e para uma geração. Não deveria ser a nossa preocupação imediata, a qual deveria ser entender as divisões internas e como ganhar espaço onde demonstram fraqueza. Por isso chamo a atenção para reforçar o civismo, não para o cultivo da brutalidade.

Temos de instalar com mais força debates que a Revolução classificava de superados, mas que sempre estiveram presentes —o racismo, por exemplo. Somos uma sociedade racista sem um movimento negro vigoroso. As mulheres, que na América Latina agora avançam em seus direitos, tampouco estão organizadas aqui. Essas movimentações precisam surgir.

Agora, por exemplo, há uma investida das igrejas, especialmente a evangélica, contra o aborto e o casamento homossexual. Não digo que tenhamos que abandonar o ato de protestar contra o regime totalitário, mas nos falta construir pilares de cidadania por trás dessas demandas, porque estamos falando da Cuba de amanhã. Tiramos os ditadores e o que temos para construir o país? Por isso creio que o trabalho é lento e há que se avançar em diferentes caminhos.


Manuel Cuesta Morúa, 59

Formado em história na Universidade de Havana, com pós-graduação em política, economia e relações internacionais, foi professor na mesma instituição, até ser expulso, em 1991, devido ao seu ativismo. Em 1993, começou a trabalhar na Comissão de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional e, em 2002, fundou o Arco Progressista, organização social antigoverno hoje nomeada Plataforma Nuevo País. É membro da Associação de Estudos Latino-Americanos, com sede na Universidade de Pittsburgh (EUA). Em 2016, recebeu o prêmio Ion Ratiu, do Woodrow Wilson Center. É, ainda, autor de "Ensayos Progresistas desde Cuba" (2014) e "Cuba, Poesia, Arte e Sociedade: Seis Ensaios" (2008), entre outros livros.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.