Protestos sociais catalisam imprensa antirracismo nos EUA

Projetos reforçam tradição de veículos segmentados e querem superar visão de que negros são sempre vítimas

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Washington

Simone Sebastian estava exausta. Trabalhando no jornal The Washington Post, um dos mais influentes dos Estados Unidos, sentia que precisava traduzir suas experiências para um público que não tinha passado pela mesma vivência. É uma mulher negra em um país que ainda vive o legado da escravidão.

Quando soube que as jornalistas Lauren Williams e Akoto Ofori-Atta estavam fundando um site de notícias voltado ao público afro-americano, decidiu trocar de emprego. "Passei minha carreira toda pensando em como explicar para leitores brancos as questões que afetam os negros", diz. "É libertador não ter mais que fazer isso e saber que meu público me entende."

Sebastian é agora diretora editorial do Capital B, um dos principais projetos americanos de um modelo de jornalismo antirracista; outra iniciativa que vem chamando a atenção é a "ressurreição" do famoso jornal abolicionista Emancipator, originalmente de 1820.

Manifestantes em Minneapolis celebram condenação de ex-policial Derek Chauvin em caso envolvendo o assassinato de George Floyd - Chandan Khanna - 20.abr.21/AFP

Os EUA têm uma tradição longa nesse tipo de imprensa voltada a grupos específicos da população, em especial aqueles de origem africana. O período recente, porém, é de especial efervescência. Um dos catalisadores foi a morte de George Floyd, um homem negro estrangulado por um policial branco em maio de 2020. O assassinato levou a uma onda histórica de protestos populares, reforçando o movimento Black Lives Matter (vidas negras importam).

"Em 2020, eu tentei dar a dimensão daquele momento para os meus colegas de Redação", diz Sebastian. "É um desafio ter que explicar algumas coisas para pessoas brancas, que não passaram pelas mesmas coisas que a gente. Jornalistas brancos não entendem o que isso significa, porque passaram as suas carreiras escrevendo para pessoas que se parecem com eles."

O Capital B é uma organização sem fins lucrativos financiada por doações, com cerca de 20 funcionários. O site tem duas equipes principais, em Washington, capital do país, e Atlanta (Geórgia), histórica para a luta dos negros e cidade natal de Martin Luther King. A cobertura se concentra em temas centrais à vida da população negra, com implicações claras em um sistema de racismo estrutural: justiça, saúde, educação, política, clima e finanças.

Uma das metas é ir além das histórias que representam afro-americanos apenas como vítimas. "Quando a imprensa trata dessa experiência, é sempre com a mensagem de que é difícil ser negro nos EUA", diz Sebastian. "Queremos contar também como pessoas negras estão ajudando suas comunidades, como têm tido sucesso apesar dos obstáculos, de maneira que suas experiências possam ser replicadas. São coisas que não aparecem na grande imprensa."

Jornalistas como ela têm escolhido veículos como o Capital B não só pela oportunidade de contar essas histórias sob essa ótica. Alguns buscam empresas em que vejam possibilidade reais de crescer, sem ter de lidar com o racismo das hierarquias que os desfavorecem. "Repórteres negros são escanteados e acabam presos em posições mais baixas."

De maneira similar ao Capital B, o Emancipator surgiu como resultado dos debates sociais de 2020, alimentados pela morte de Floyd. O site é a reinvenção de um famoso jornal abolicionista criado em 1820, no Tennessee, que circulou por alguns meses marcando o país com sua abordagem antiescravidão radical. A "ressureição" é um projeto do jornal The Boston Globe e da Universidade de Boston sob a batuta de Deborah Douglas e Amber Payne.

Payne conta que a ideia de reviver o jornal surgiu principalmente de conversas com colegas, que não queriam apenas cobrir as mesmas notícias que os grandes jornais já acompanhavam. "Nos perguntamos o que aconteceria se tivéssemos uma Redação antirracismo", conta.

O termo "antirracismo" é chave. Douglas afirma que o Emancipator não é uma publicação negra, já que o termo pode ser excludente. "Todos estão envolvidos. Queremos diluir o poder do patriarcado e da supremacia branca, que impacta todo o mundo. Usamos esse eco do passado, o movimento abolicionista, como porta de entrada para discutir nosso lugar de fala, tratando do aspecto racial e também de suas intersecções."

Nesse sentido, Payne diz que o Emancipator vai além de dizer que tal e tal coisa são racistas nos EUA —o que a imprensa tradicional já faz. "Queremos explicar para o leitor o que isso significa", afirma. Ela dá o exemplo de uma série de reportagens sobre disparidade racial de renda com que o site recentemente estreou. "Todo mundo sabe que esse é um legado da escravidão, mas não é só isso. Tem a ver com as leis de propriedade, com a concentração de poder, com a demarcação de quais bairros têm acesso ao crédito. Isso não é por acaso, faz parte do tecido social, de como os sistemas foram criados."

O Emancipator tem hoje quatro funcionários em tempo integral. Apesar de estar baseado em Boston e ter um enfoque nessa comunidade, o site publica também notícias nacionais e internacionais. Países como o Brasil, com questões raciais e sociais semelhantes às dos EUA, estão no radar.

Iniciativas como o Capital B e o Emancipator mantêm vivo um importante legado da imprensa americana na visão de Lynette Clemetson, diretora do Wallace House na Universidade de Michigan –casa que abriga a prestigiosa bolsa Knight-Wallace para jornalistas.

A jornalista Simone Sebastian, diretora editorial do Capital B - Divulgação

Ela foi uma das responsáveis pelo projeto Root, iniciativa de jornalismo negro do Washington Post. "Para termos uma imprensa independente forte, precisamos ter uma grande variedade de tipos de jornalismo", afirma.

"Se você olhar para a história do jornalismo nos EUA, verá que foi apenas na segunda metade do século 20 que ocorreu a consolidação dos grandes veículos. Na maior parte do tempo, o jornalismo americano era um coletivo selvagem e bagunçado de diferentes tipos de vozes, de pontos de vistas e de públicos. Éramos, mais do que tudo, uma cacofonia."

O preocupante é que os temas debatidos pelo Emancipator de hoje não parecem datados, mesmo dois séculos depois da criação do jornal que o inspirou.

"Esses assuntos não soam como algo histórico, e sim como algo atual", afirma Clemetson. Certamente houve um progresso importante desde o fim do Emancipator. "Mas há pessoas e forças que querem nos puxar para trás. Hoje, estamos lutando para decidir se os EUA vão continuar seguindo adiante —ou se vamos nos mover para trás."

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