Biden se vê entre petróleo e direitos humanos em controversa viagem à Arábia Saudita

Visita surpreendente a Riad é outra reviravolta provocada pela Guerra da Ucrânia

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Riad, Washington e Dubai | Financial Times

Nos primeiros meses do ano, quando militantes apoiados pelo Irã lançaram ataques à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos, o sentimento de frustração com os EUA era forte nos países do Golfo.

Há anos as monarquias veem Washington como seu parceiro de segurança tradicional. Mas, para elas, os EUA estavam se mostrando pouco preocupados com a ameaça enfrentada por suas nações, com armas cada vez mais sofisticadas mirando suas cidades, seus aeroportos e sua estrutura petrolífera.

O presidente dos EUA, Joe Biden, durante reunião bilateral com o líder brasileiro, Jair Bolsonaro, em Los Angeles
O presidente dos EUA, Joe Biden, durante reunião bilateral com o líder brasileiro, Jair Bolsonaro, em Los Angeles - Jim Watson - 9.jun.22/AFP

Quando Joe Biden ordenou a entrega de bilhões de dólares em armamentos à Ucrânia para ajudá-la a combater a invasão russa, os países do Golfo enxergaram o fato como mais uma prova de que Washington não tratava seus parceiros de longa data com o respeito que eles consideram merecer.

Enquanto sauditas e árabes estavam aborrecidos com questões de segurança, o governo Biden tinha suas próprias frustrações. Estava furioso com a resistência dos líderes do Golfo em extrair mais petróleo para suavizar a alta dos preços e a recusa em se distanciar de Vladimir Putin, com quem vêm estreitando laços.

Assim como a agressão da Rússia injetou novo ânimo na aliança transatlântica, ela expôs o desgaste da parceria de décadas entre Washington e os dois países do Golfo e colocou em foco as tensões em torno do alicerce sobre a qual a colaboração foi erguida: as garantias de segurança dadas pelos EUA aos países ricos em petróleo, em troca do engajamento deles com a estabilidade dos mercados energéticos globais.

"A guerra tem sido uma bênção e uma maldição para o Golfo. Eles veem que a América está de volta, não está se isolando e pode se mobilizar quando quer", diz Sanam Vakil, do think tank Chatham House. "A má notícia é que, quando os EUA se mobilizam em apoio a outro país, isso é um tapa na cara deles."

Em vez de uma ruptura, porém, os EUA e seus aliados no Golfo decidiram tentar resolver suas diferenças. A Casa Branca anunciou na terça (14) que em julho Biden visitará a Arábia Saudita, onde se reunirá com o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o líder de fato do maior país exportador de petróleo do mundo.

É uma reviravolta surpreendente para um presidente que prometeu tratar o reino saudita como pária e dialogar com o rei Salman, não com seu filho MbS, como é conhecido o príncipe herdeiro. Dado que as agências de inteligência americanas afirmam que MbS autorizou uma operação para "capturar ou matar" Jamal Khashoggi, jornalista assassinado quatro anos atrás por agentes sauditas, Biden enfrentará críticas domésticas por abandonar seus princípios em nome do esforço para isolar a Rússia.

Para muitos diplomatas e observadores, a visita de Biden à Arábia Saudita é sinal da atração duradoura do pacto de energia em troca de segurança que tem definido o relacionamento dos EUA com o Golfo.

Washington precisa de ajuda para limitar o impacto da Guerra da Ucrânia sobre os preços do petróleo, e ao mesmo tempo os países do Golfo continuam fortemente dependentes da assistência militar americana, de defesas antimísseis até caças-bombardeiros. "Esta é uma oportunidade para os EUA reorganizarem as coisas, para tranquilizarem a região e saber por que seus parceiros estão preocupados com o engajamento americano", diz uma pessoa informada sobre as discussões que terão lugar no Golfo.

Neste mês, a Arábia Saudita parece ter preparado o terreno para um potencial encontro, quando enfim acordou com seus aliados da Opep+ um aumento modesto na produção de óleo cru. Biden descreveu a iniciativa como "positiva". Alguns dos assessores do presidente vêm pressionando-o há meses a deixar de lado sua indignação moral e buscar uma reaproximação, argumentando que para ter estabilidade energética vale a pena aceitar as consequências de um engajamento com MbS.

A Casa Branca cogitou anteriormente organizar um encontro entre Biden e MbS na cúpula do G20, em Roma, em outubro passado, mas esses planos provisórios foram cancelados quando o príncipe optou por não participar da cúpula, de acordo com pessoas familiarizadas com o assunto.

Encorajados pela influência que exercem nos mercados energéticos, sauditas e emiradenses devem querer sinais de apoio concreto, não só garantias verbais do engajamento dos EUA. Uma das prioridades de sua agenda será um esforço para selar parcerias de segurança mais formais com os americanos, incluindo maior cooperação militar e de inteligência para enfrentar a ameaça de mísseis e drones.

Quando o ex-diplomata americano Dennis Ross, veterano do Oriente Médio e defensor de um relacionamento "equilibrado" com a Arábia Saudita, fez uma visita recente a Riad, detectou um clima de "orgulho ferido". A mensagem, segundo ele, foi "não nos tome como algo garantido, não pensem que vocês podem simplesmente nos ditar o que fazer, não nos humilhem".

Mas Ross diz que também houve um reconhecimento do relacionamento estratégico de longa data entre os dois países. "Ouvi que as coisas ainda não estão como eles querem, ‘ainda temos perguntas e ainda nos preocupa a possibilidade de esta administração americana se afastar da parceria’", disse Ross. "E, mesmo que a administração atual não o faça, como saber o que fará a próxima?"

O medo que alguns no Golfo têm de que os EUA se afastem da parceria foi agravado no ano passado, quando os americanos retiraram defesas antiaéreas da Arábia Saudita para manutenção e rotação.

O general Kenneth McKenzie, chefe do Comando Central dos EUA, disse em março a um comitê da Câmara: "Temos trabalhado em cooperação estreita com nossos aliados do Golfo para ampliar a capacidade de autodefesa deles", acrescentando que a Arábia Saudita ainda tem mais de 20 baterias antimísseis Patriot. Mas Riad interpretou a retirada de alguns sistemas como sinal de uma suposta politização do relacionamento, especialmente por parte de democratas progressistas.

"Tanto a Arábia Saudita quanto os Emirados Árabes consideram que, quando estavam se sentindo realmente ameaçados, não viram urgência de nossa parte em reagir", afirmou Ross. "Se essa percepção é justa ou não é irrelevante, sob muitos aspectos –é o que eles acreditam." Mas ele pensa que a crise com a Rússia levou Washington a reconhecer a importância estratégica da Arábia Saudita e dos Emirados, os únicos produtores de petróleo com capacidade de elevar significativamente sua produção de óleo cru, no momento em que Biden procura isolar Putin e estabilizar os mercados energéticos.

Num sinal da mudança no clima diplomático, os Emirados e os EUA estão redigindo um novo acordo de segurança, embora nada tenha sido finalizado, disse uma pessoa informada sobre as discussões.

Um alto funcionário dos EUA diz que Washington "está em debates regulares com os emiradenses sobre o fortalecimento de nossa parceria de defesa, para prevenir e responder a quaisquer ataques futuros".

Além de buscar maior apoio para estabilizar os mercados energéticos, é provável que Biden também busque algum movimento saudita em relação a Israel, que o presidente também visitará. Representantes israelenses disseram que as discussões antes da visita de Biden incluíram o potencial de Riad aumentar os sobrevoos israelenses na Arábia Saudita, que não tem relações diplomáticas formais com Israel, mas coopera discretamente com o Estado judaico em questões de segurança e inteligência.

Mas não está claro até que ponto Biden estará disposto a reforçar o relacionamento de segurança com a Arábia Saudita, dado a potencial reação negativa de alguns democratas. Ao comentar as especulações de que Biden visitará a Arábia Saudita, um líder democrata, Adam Schiff, disse que ele não iria à Arábia Saudita nem apertaria a mão de MbS. "Esse é um homem que massacrou um residente nos Estados Unidos [Khashoggi], o retalhou em pedaços da maneira mais medonha e premeditada", disse ele, que preside o Comitê de Inteligência da Câmara, em entrevista à televisão americana neste mês.

Washington está lidando com uma geração de líderes do Golfo muito mais confiantes e assertivos, que vêm fortalecendo seus relacionamentos para se tornar mais independentes dos Estados Unidos. Esse é um dos fatores que levou Riad e Abu Dhabi a se aproximar de Rússia e China nos últimos anos, o que é mais um ponto de atrito em suas relações com Washington.

Biden desagradou aos líderes do Golfo em seus primeiros dias na Presidência, ao encerrar a ajuda de Washington à coalizão liderada pela Arábia Saudita que combate rebeldes houthis apoiados pelo Irã na guerra civil do Iêmen. Ele congelou as vendas de armas "ofensivas" à Arábia Saudita e revogou a designação de terrorista que a administração Trump havia imposto aos houthis. Autoridades em Riad enxergaram uma correlação entre as decisões de Biden e um aumento nos ataques houthis.

Os militantes estão em conflito com Riad desde 2015, quando a coalizão liderada pelos sauditas, que inclui os Emirados Árabes, interveio na guerra civil iemenita para apoiar o governo deposto. Riad e Abu Dhabi enxergam os houthis como representantes iranianos. Eles –e Washington também— acusam Teerã de fornecer mísseis e tecnologia sofisticada de drones aos houthis.

Nos primeiros meses deste ano, os rebeldes lançaram ataques quase semanais à Arábia Saudita, incluindo uma ação com mísseis sobre Jiddah em março, na semana em que a cidade sediava uma corrida de Fórmula 1. Em janeiro e em fevereiro eles disparam mísseis e drones contra Abu Dhabi.

Quando a vulnerabilidade de seu Estado foi exposta, o líder dos Emirados, xeque Mohammed bin Zayed, se enfureceu porque Biden não lhe telefonou para oferecer apoio. Em um gesto público extraordinário de frustração, o país usou sua vaga temporária no Conselho de Segurança da ONU para se abster na votação de uma resolução de condenação da Rússia apresentada pelos EUA em fevereiro.

A ameaça houthi diminuiu desde então, com uma trégua provisória no Iêmen ainda em vigor, e há um reconhecimento crescente em Washington de que Riad está buscando encerrar o conflito. Neste mês, quando a trégua foi prorrogada por mais 60 dias, Biden elogiou a "liderança corajosa" saudita.

Mas o sentimento que os Estados do Golfo têm de ser vulneráveis à agressão iraniana ainda não diminuiu, e o esforço de Biden para fechar um acordo com Teerã para reativar o acordo nuclear selado em 2015 acrescenta mais uma camada de complicação às relações entre os EUA e o Golfo.

Riad e Abu Dhabi temem que Washington esteja prestando pouca atenção ao desenvolvimento de mísseis do Irã e ao apoio de Teerã a militantes xiitas em toda a região, uma ameaça imediata à segurança deles.

O medo é de que Biden alcance um acordo para reativar o pacto nuclear abandonado em 2018 por Donald Trump e que isso provoque nova ousadia da república islâmica. Tanto os Emirados quanto a Arábia Saudita ouvem ecos da administração Obama, que firmou o pacto nuclear e desagradou Riad ao dizer que o reino saudita precisava encontrar uma maneira de "compartilhar a região" com seu arquirrival.

A frustração está longe de ser unilateral. Biden deixou claro seu repúdio ao assassinato de Khashoggi –diferentemente de Trump, ele divulgou as conclusões das agências de inteligência americanas sobre o crime— e a outras violações dos direitos humanos. Num debate presidencial em 2019, acusou os sauditas de "assassinar crianças", numa referência aparente à guerra no Iêmen, onde a coalizão liderada pelos sauditas tem atraído críticas generalizadas por ataques aéreos que fizeram milhares de vítimas civis.

Numa carta enviada a Biden na semana passada, Schiff e cinco outros democratas seniores exortaram o presidente a reiterar a cobrança de responsabilidade pelo assassinato de Khashoggi e a manter a suspensão do apoio ofensivo aos combates da coalizão liderada pelos sauditas no Iêmen.

O grupo de defesa dos direitos humanos Dawn, sediado em Washington e cofundado por Khashoggi, avisou que os esforços para reparar o relacionamento de Washington com Riad "sem um engajamento genuíno para priorizar os direitos humanos representam uma traição de suas promessas de campanha [as de Biden] e provavelmente animarão o príncipe herdeiro a cometer outras violações futuras".

A reputação dos Emirados em Washington é muito menos tóxica, mas o país não escapou de críticas por seu papel no Iêmen como parceiro de coalizão com os sauditas. Em separado, os emiradenses frustraram as autoridades americanas com outras iniciativas de sua política externa, entre as quais o apoio que brindaram ao general líbio renegado Khalifa Haftar e à Rússia durante a guerra civil líbia.

Os Emirados também provocaram mal-estar quando optaram por ser um dos primeiros Estados árabes a restaurar laços diplomáticos com o líder sírio, Bashar al-Assad. Quando o xeque Mohammed recebeu Assad em Abu Dhabi, em março, Washington se declarou "profundamente decepcionada".

Outro ponto de contenção tem sido as relações crescentes do Golfo com a China e seu apetite por tecnologia chinesa, incluindo as redes 5G da Huawei, a despeito do receio de Washington de a rede poder ser usada para espionar agentes americanos. Mais recentemente surgiu o receio de que os Emirados possam se tornar um ponto focal de dinheiro russo sujo e de evasão de sanções.

Apesar de todas as queixas, os EUA ainda conservam uma presença militar substancial na região.

Os Emirados são o segundo país depois dos EUA a possuir um sistema de defesa antiaérea Thaad. A primeira vez que um Thaad foi disparado em combate foi neste ano, para derrubar um míssil houthi contra Abu Dhabi. Enquanto isso, a Arábia Saudita deve se tornar o terceiro país a contar com o sistema, depois de o Departamento de Estado americano ter aprovado, em 2017, um acordo de US$ 15 bilhões para a venda de 44 lançadores de Thaad. Tom Karako, do think tank Center for Strategic and International Studies, diz que a Arábia Saudita está comprando tantos Thaads quanto o exército americano.

Os EUA também forneceram inteligência aos Emirados para os contra-ataques após as ações houthis contra Abu Dhabi, e a Quinta Frota da Marinha americana anunciou em abril uma nova força-tarefa que vai patrulhar as águas ao largo do Iêmen. O anúncio parece ter sido um gesto de reconhecimento das preocupações dos países do Golfo. Mas a mensagem vinda de Riad e Abu Dhabi é que eles querem mais.

Ambos os países vêm sinalizando que ainda não estão dispostos a romper seus laços com Putin, apesar dos esforços do Ocidente para isolar o presidente russo e não obstante o fato de a invasão ter exposto fraquezas nas forças militares russas. No início do mês, a Arábia Saudita recebeu o chanceler russo, Serguei Lavrov, numa reunião do Conselho de Cooperação do Golfo em Riad. A decisão de Putin de intervir na guerra civil síria em 2015 para apoiar Assad elevou o papel da Rússia no Oriente Médio, embora fosse do lado oposto ao dos Estados do Golfo. Somada às relações de Moscou com o Irã, Putin está sendo cada vez mais visto como um ator importante –e potencialmente como um adversário— na região.

Ross avisa que, mesmo que Biden se reúna com MbS, "não será como acender uma luz que fica tudo bem". "Uma das razões pelas quais estão protegendo suas apostas é que querem ter certeza de nosso apoio. Quanto mais puderem confiar em nós, mais poderão ajustar alguns de seus comportamentos", diz Ross. "Mas eles não vão de repente adotar a posição que queremos, só por ser a que queremos."

Andrew England , Samer Al-Atrush , Felicia Schwartz e Simeon Kerr

Tradução de Clara Allain

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