Descrição de chapéu The New York Times

Opositores em Mianmar combatem ditadura militar com ajuda de videogame

Criadores de jogo que permite matar soldados virtuais do regime doam dinheiro para a resistência na vida real

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Richard C. Paddock
The New York Times

Professor aposentado de história em Mianmar, Sein Lin nunca havia jogado videogame na vida. Mas um mês atrás, topou no Facebook com "War of Heroes - The PDF Game". Desde então, joga quase sem parar.

Para ele, que tem 72 anos, matar militares mianmarenses virtuais é uma maneira de participar da resistência na vida real às Forças Armadas do país, que tomaram o poder em um golpe de estado no ano passado e desde então já mataram milhares de civis. Desde que estreou, em março, "War of Heroes" já foi baixado mais de 390 mil vezes. Muitos se dizem motivados pela promessa dos criadores do game de doar os lucros às forças de resistência e a pessoas deslocadas pelos combates.

Jovens da Força de Defesa Popular exibem o jogo 'War of Heroes' em seus celulares, em Mianmar
Jovens da Força de Defesa Popular exibem o jogo 'War of Heroes' em seus celulares, em Mianmar - Divulgação 'War of Heroes'/The New York Times

"Não posso matar soldados que estão dizimando civis, mas matar no jogo também me dá satisfação", diz Sein Lin. "De um jeito ou de outro, jogando o game e clicando até morrer eu vou ajudar a revolução."

Conhecidas como Tatmadaw, as Forças Armadas locais governaram o país previamente por meio século e estão em guerra com a população há anos. Desde o golpe no ano passado, em que derrubou líderes eleitos, o regime vem reprimindo a dissensão, prendendo oposicionistas, metralhando manifestantes desarmados, bombardeando acampamentos de guerrilheiros e ateando fogo a milhares de casas.

Muitos adversários do regime se refugiaram na floresta, onde formaram a People’s Defense Force (Força de Defesa Popular), ou PDF, um exército de mais de 60 mil combatentes sob a liderança do clandestino Governo de Unidade Nacional. Um número semelhante de combatentes em áreas urbanas formou unidades guerrilheiras semiautônomas conhecidas como as forças de defesa popular locais.

"War of Heroes" foi criado por três desenvolvedores mianmarenses que fugiram do país antes da tomada do poder pelos generais, em 1º de fevereiro de 2021. Um deles, Ko Toot, diz que eles foram motivados a criar o jogo depois da prisão e do subsequente desaparecimento de colegas deles da indústria de tecnologia que se envolveram em protestos contra o golpe ou tiveram familiares envolvidos.

Uma versão paga do game foi lançada em meados de junho, e em questão de dias já aparecia regularmente nas listas dos dez games mais procurados na App Store da Apple nos Estados Unidos, na Austrália e em Singapura. "Mianmarenses em todo o mundo também estão baixando o game", diz Toot.

No game, os jogadores travam batalhas e matam soldados do regime. Eles vão subindo de escalão à medida que o game vai ficando mais difícil. Nos níveis mais altos, os jogadores podem atacar espiões civis, celebridades vira-casacas que apoiam a junta militar e até os próprios líderes golpistas.

A descrição do jogo diz: "Precisamos que você entre para as forças de resistência para proteger inocentes contra as forças militares do mal. Seu dever é se tornar o melhor combatente da liberdade".

A versão gratuita ganha dinheiro quando os jogadores assistem a anúncios. A versão paga o faz quando os jogadores baixam o game ou compram munição. Quem joga o suficiente para ganhar o equivalente a US$ 54 recebe um "certificado de realização" por participação na Revolução da Primavera, como são conhecidos os protestos em Mianmar, e por doar dinheiro. Os desenvolvedores dizem terem doado US$ 90 mil até agora. Mais ou menos um quinto desse total foi gasto com assistência a deslocados à força, e o restante foi doado a mais de duas dúzias de grupos de defesa locais.

Os jogadores em Mianmar precisam de uma VPN (rede privada virtual) para contornar as restrições de acesso à internet para o jogo. Para evitar serem detidos em postos de controle ou revistas policiais aleatórias, os jogadores desinstalam o game do telefone antes de sair e voltam a baixá-lo depois de voltar.

O jogo já atraiu alguns fãs inesperados, entre os quais um monge budista e um integrante das Tatmadaw.

Pyinnar Won Tha, 32, é monge em Lashio, cidade no nordeste de Mianmar, e jogador inveterado de "War of Heroes". Segundo ele, apesar de Buda ditar que não se deve matar seres vivos, os mianmarenses precisam se proteger da junta militar. "Jogar um jogo para a PDF contraria os ensinamentos de Buda, mas não me sinto culpado, porque estamos morrendo sob o regime", conta. "Se alguém ameaça nossa vida, precisamos matar esse alguém para nos defendermos. Se não, eles poderão nos matar a qualquer momento."

O monge diz que "War of Heroes" é o primeiro game de guerra que ele já jogou. Ele se tornou fã devido à promessa dos desenvolvedores de doar dinheiro a quem perdeu suas casas e a combatentes da resistência. "No verdadeiro budismo, os monges devem ser respeitados. Mas a junta militar tortura e mata monges", afirma. "Então é justo jogar, para lhes dar carma."

"War of Heroes" já virou tão popular que mesmo alguns soldados andam jogando. Desde o golpe militar, o número de desertores das Forças Armadas é crescente. Aqueles que continuam a integrar as Tatmadaw mas são contra o regime são conhecidos como "melancias": verdes, a cor dos uniformes do exército, por fora, mas vermelhos, a cor do movimento pró-democracia, por dentro.

Um soldado, cujo nome será suprimido para proteger sua segurança, disse que desertaria se pudesse, mas sabe que se o fizesse as Tatmadaw se vingaria de sua família. Assim, para ajudar a revolução, ele transmite informações sigilosas para as forças de segurança. E joga "War of Heroes".​

Tradução de Clara Allain

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