Podcast discute risco de Suprema Corte dos EUA reverter direitos além do aborto

Para analistas, conquistas como o casamento LGBTQIA+ podem entrar em pauta no tribunal

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São Paulo

A pergunta faz teoricamente sentido. Depois de recuar de sua decisão de 1973 sobre a constitucionalidade do direito ao aborto, até que ponto a Suprema Corte americana se prepararia para novos recuos? Entre eles, a união civil entre pessoas do mesmo gênero, o uso de métodos anticoncepcionais e o casamento de brancos e negros.

Por mais que parte dessas previsões talvez soe absurda hoje, a emissora pública de rádio e TV do Reino Unido, a BBC, ouviu sobre esses temas quatro especialistas em direito constitucional nos Estados Unidos.

O podcast "How the Supreme Court is Reshaping the US" (como a Suprema Corte está redefinindo os EUA) foi ao ar no dia 9. Em tempo, a interrupção voluntária da gravidez não passou a ser considerada ilegal, mas sua legalidade, em lugar de assegurada pela Constituição, estará agora sujeita à legislação de cada um dos 50 estados americanos.

Ativistas pró-aborto protestam em Santa Monica, no estado da Califórnia, nos EUA
Ativistas pró-aborto protestam em Santa Monica, no estado da Califórnia, nos EUA - Mario Tama - 16.jul.22/Getty Images/AFP

Como pano de fundo para essa guinada há a nomeação, pelo então presidente Donald Trump, de três juízes com perfil claramente conservador. Eles somam um terço dos nove com assento em plenário, levaram a uma maioria de 6 a 3 e, com isso, ao título do podcast.

O mais conservador dos debatedores, Jonathan Turley, professor da Universidade George Washington, diz que em tudo isso há um exagero. Com a nova composição, deixou-se de ter decisões tomadas com predominância aguada (não foi bem essa a palavra que ele usou, embora dê no mesmo) para se dispor de uma maioria sem ambiguidades.

Ele também afirma que, em 30 anos de acompanhamento acadêmico do tribunal, jamais assistiu ao recuo de determinados consensos, como é hoje o casamento interracial.

No polo oposto, Elizabeth Wydra, presidente de uma ONG progressista que faz o acompanhamento das votações na corte, afirma que os americanos têm tudo a temer: "Retiraram das mulheres o direito constitucional de disporem do próprio corpo. Depois disso, todos os demais direitos podem ser negados".

Ela toca num ponto bastante sensível, o vínculo que se estabeleceu entre o acesso ao aborto e a Emenda 14 da Constituição, que —em 1868, portanto no século 19— promoveu direitos que eram negados antes da Guerra Civil nos estados escravocratas do sul. Ou seja, direitos tão básicos quanto a liberdade de se trabalhar apenas em troca de salário.

Nesse quadro, o mediador do podcast, Paul Henley, diz que os cidadãos passam a ter dúvidas sobre se a Suprema Corte está realmente na direção de um consenso que caracterizaria o melhor sistema institucional do planeta —segundo uma noção muito antiga. Isso porque um número cada vez maior de pessoas agora diz acreditar que os juízes não refletem aquilo que elas pensam.

Jack Rakove, cientista político de Stanford e pensador claramente progressista, afirma que a atual reviravolta se deu porque os juízes se deram ao direito da reinterpretação constitucional, quando, em verdade, isso pode apenas ocorrer a partir do crescimento acachapante de uma das correntes ideológicas no Congresso.

Ou, de maneira ainda mais clara, "a Constituição se muda apenas por emenda, não por uma nova interpretação", disse o professor de direito constitucional Randy Barnett, da Universidade Georgetown.

Os conservadores têm clara atração por regras bem mais frouxas sobre o porte de armas —justamente uma das trombadas que os juízes acabam de dar no estado de Nova York, onde o porte em locais públicos era explicitamente proibido. Ora, a corte deliberou em sentido oposto, interpretando que o cidadão tem o poder de proteger sua integridade física por meio do porte de uma pistola ou revólver.

Há um último ponto nessa agenda de possíveis decisões, levantado barulhentamente por Donald Trump nas últimas semanas de seu mandato, em tentativa de reverter a votação majoritária de Joe Biden. Trata-se do próprio sistema eleitoral. Os participantes do podcast concluem que os nove juízes não se meterão em assunto tão cabeludo e continuarão a permitir que apenas estados tenham o direito de legislar sobre o sistema de votação.

Mas Elizabeth Wydra faz questão de deixar em aberta a hipótese mais pessimista. Ou seja, a de a nova maioria conservadora meter o bedelho para permitir, por exemplo, o que se deu num estado como a Geórgia nas últimas eleições presidenciais: Trump quis reverter sua condição de candidato minoritário para conseguir se impor no número dos chamados grandes eleitores, que são, ao final, os que decidem quem será o presidente.

How the Supreme Court is Reshaping the US

  • Onde Podcast da série The Real Story disponível no site da BBC (bbc.co.uk)
  • Duração 49 min. (em inglês)
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